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Um dia depois do ataque inédito do Irão a Israel, disparando centenas de drones e mísseis em direção ao território, o líder da Guarda Revolucionária Islâmica foi à televisão sublinhar a importância do ato. “De hoje em diante”, decretou Hossein Salami, “se o regime sionista atacar os nossos interesses, bens, pessoas ou cidadãos em qualquer altura, iremos contra-atacar a partir da República Islâmica do Irão.”
As declarações parecem confirmar aquilo que os analistas já intuíam na véspera: a decisão de atacar diretamente a partir de território iraniano, em vez de recorrer às milícias pró-Teerão espalhadas por vários países do Médio Oriente, sinaliza uma alteração de estratégia por parte do Irão no que diz respeito à sua política externa.
Mas o que explica que o regime do ayatollah Khamenei tenha optado por uma jogada tão arriscada, numa altura em que Israel perdia apoio internacional por causa da guerra em Gaza? As explicações assentam na leitura que os iranianos fazem das dinâmicas na região, onde Teerão quer ser a principal potência, mas também em fatores internos.
Desde 1979 que a teocracia instalada no Irão define Israel como “o pequeno Satã” (em parceria com o “grande Satã” Estados Unidos da América); agora, mais de 40 anos depois, a República Islâmica introduz uma mudança na dinâmica do Médio Oriente cujo impacto ainda está por conhecer.
A importância do “eixo de resistência” do Irão, assente nas milícias atacadas por Israel
“Os iranianos jogaram a sua cartada. Decidiram desmascarar o bluff de Israel”, resumia ao New York Times Sanam Vakil, analista do think tank Chatham House especialista no Médio Oriente. E porquê? “Sentiram que precisavam de o fazer, porque viam nos últimos seis meses um esforço persistente de os atrasar por toda a região.”
Em causa estão os vários ataques que Israel tem feito a algumas das suas figuras de relevo dentro da Força Al Quds, que coordena as várias milícias pró-Irão, e a estes mesmos grupos. O ataque ao consulado iraniano em Damasco, que Teerão invoca como justificação para ter agora retaliado, foi o mais recente episódio em que Telavive afetou a estratégia iraniana de reforçar os seus laços com grupos armados por toda a região.
Suzanne Maloney, que foi conselheira de várias administrações norte-americanas sobre o Irão, explica num ensaio publicado recentemente na revista Foreign Affairs como a rede que inclui Hezbollah, Hamas e outras milícias no Iraque e Síria são fulcrais para Teerão: “Um elemento-chave da estratégia na sua vizinhança é o cultivo de um ‘eixo da resistência’, uma rede informal de milícias regionais com estruturas de organização discretas, interesses combinados e ligações ao sistema de segurança e religioso do Irão”, escrevia no início de abril. “O fundador da República Islâmica, o ayatollah Ruhollah Khomeini, defendia que a exportação da revolução era necessária para assegurar a sua própria sobrevivência.”
Desde 1979 que essa estratégia não se alterou. Para além da “exportação da revolução”, as milícias pró-Teerão funcionam como uma rede de atores que agem por procuração, combatendo em conflitos na região no lugar do próprio Irão — é assim no Líbano, com o Hezbollah, mas também na Síria. E, é claro, com o Hamas na Faixa de Gaza.
A noite em que a “guerra-sombra” do Irão e de Israel ficou a um passo de se tornar uma guerra aberta
Com os ataques crescentes de Israel às figuras que mantêm esta rede em funcionamento, Teerão decidiu que tinha de agir. A que se soma o facto, como tinha apontado ao Observador o investigador Bruno Cardoso Reis na noite do ataque, de que o país quer combater “a ideia de que o Irão está a fazer muito pouco em relação ao Hamas e a Gaza”. Para manter o seu status como a maior potência islâmica da região, o regime achou que tinha de se envolver mais diretamente no conflito com Israel — até para salvar a face junto das suas milícias.
A ascensão dos “super-revolucionários” e a vaga de fundo a pedir reação
O plano externo, porém, não é o único fator que ajuda a explicar esta mudança de estratégia. Afinal, não é de agora que Israel ataca figuras de relevo da Al Quds, por exemplo. Mais: Israel já chegou a atacar o Irão no seu próprio território, com missões da Mossad que eliminaram cientistas pertencentes ao programa nuclear do país.
Desta vez, contudo, a pressão interna era muito maior. “Nunca vi um grau de pressão vinda de baixo como este ao longo dos últimos dez dias”, resumiu Ali Vaez, analista iraniano do Crisis Group, ao New York Times.
Nos media iranianos e nas redes sociais, várias figuras expressaram diretamente o desejo de retaliação depois do ataque ao consulado, como o jornalista Hossen Shariatmadari, que decretou que ataques a embaixadas israelitas seriam “um direito legítimo” do Irão, notou o Financial Times.
O clima explica-se em parte pela ascensão de um grupo de ultraconservadores mais jovens, que começam a ter influência direta nas instituições e a criticar abertamente os “patriarcas”, como lhes chamam. Uma investigação do Financial Times de março nota como várias destas figuras, como o apresentador de televisão tornado deputado Amir-Hossein Sabeti e o clérigo Hamid Rasaee, têm conquistado protagonismo. “Os super-revolucionários não são muitos em termos de números, mas as suas vozes estão a ser cada vez mais ouvidas”, resumiu ao jornal o político reformista iraniano Mohammad Sadegh Javadi-Hesar.
A influência dessas vozes consolidou-se particularmente nas eleições de 1 de março, com alguns deles a serem eleitos para o Parlamento e a derrotarem alguns dos conservadores mais antigos. Figuras tradicionais como o atual presidente do Parlamento ou o presidente do Conselho de Discernimento (que desenha algumas das políticas de fundo do país) tiveram maus resultados eleitorais face a estes novos nomes.
A vaga de neo-conservadores conseguiu até eleger membros para a Assembleia de Peritos, o órgão que terá a responsabilidade de nomear o sucessor do líder supremo quando o ayatollah Khamenei, de 84 anos, morrer.
Uma inflação galopante, manifestações reprimidas e o fantasma da guerra Irão-Iraque
Nas ruas de Teerão, multidões juntaram-se para exclamar “Morte a Israel” na noite dos ataques. Foi até pintado um mural na Praça da Palestina com a frase “O próximo estalo vai ser mais feroz”. Mas apesar de darem nas vistas, as manifestações não representam necessariamente a visão da maioria dos iranianos, que cada vez mais evitam expressar opiniões em público — não por acaso, as eleições de 1 de março tiveram uma participação eleitoral muito baixa.
Isto porque os iranianos enfrentam uma crise económica fortíssima, com uma inflação acima dos 50%, em parte alimentada pelas sanções internacionais. Na sequência do ataque deste sábado, a moeda iraniana, o rial, atingiu um valor de desvalorização histórico face ao dólar norte-americano. Ao longo do domingo, formaram-se filas nos postos de combustível do país e os supermercados encheram, notou o serviço persa da Deutsche Welle, por receio da população que os preços disparem em breve.
Os últimos anos na sociedade iraniana foram ainda marcados por ondas de contestação fortes, como os protestos relacionados com o véu islâmico na sequência da morte de Masha Amini, cruelmente reprimidos.
Apesar da crise interna, a liderança do Irão prefere apostar na projeção do país no plano externo — e continua a avançar com o seu programa nuclear, depois de o acordo alcançado internacionalmente ter caído com a saída dos EUA por decisão de Donald Trump. Mas os líderes iranianos têm noção de que uma escalada no conflito com Israel pode ser dificilmente aceite por parte da população, que teme uma guerra num contexto económico já de si difícil. O fantasma da guerra Irão-Iraque, que terminou em 1988 e foi o último conflito em que o país se envolveu diretamente, ainda assusta no país.
Teerão também não deseja guerra aberta. O equilíbrio entre “salvar a face” sem “perder a cabeça”
Sabendo disso, o regime procurou neste ataque a Israel manter um equilíbrio: demonstrar força, ao enviar uma chuva de drones e mísseis; mas, ao mesmo tempo, anunciar o ataque com antecedência, para evitar que viesse a provocar mortes.
Não por acaso, na manhã de domingo o general Mohammad Bagheri anunciou que o país optou por “uma ação punitiva” em vez de “um ataque massivo”, notou o Suddeutsche Zeitung. O equilíbrio para se poder gabar aos aliados sem, no entanto, provocar uma guerra aberta, é difícil. Como notou Suzanne Maloney no seu ensaio antes do ataque, a República Islâmica é ágil a “calibrar o risco” — mas um “erro de cálculo por qualquer um dos envolvidos, incluindo o Irão, pode fazer deflagrar um conflito muito mais lato”.
No fundo, em Teerão espera-se agora que a nova estratégia tenha trazido frutos e que não dê azo a uma escalada ainda maior. A decisão de subir a parada e atacar diretamente Israel foi ponderada pelo regime, pressionado interna e externamente. Como resumiu Karim Sadjapour, analista do Carnegie Endowment, ao Washington Post, o ayatollah e os seus conselheiros sabem que estão numa posição difícil: “Se fizerem de menos, podem não salvar a face. Mas se fizerem demais, podem perder as suas cabeças.”