Os dados das autoridades de saúde já revelam um impacto da vacinação contra a Covid-19 na situação epidemiológica em Portugal, revelou ao Observador o bioestatístico Milton Severo, do Instituto de Saúde Pública da Universidade Do Porto. Esse efeito é especialmente evidente em dois grupos populacionais: entre os profissionais de saúde, que foram os primeiros a ser vacinados, e nos idosos com 80 anos ou mais.
O caso do Hospital São João, no Porto, demonstra isso mesmo. Ao longo das duas primeiras vagas de Covid-19 em Portugal — uma ocorreu entre março e maio de 2020, outra entre outubro e dezembro do mesmo ano — a incidência de casos positivos entre os profissionais de saúde daquele hospital era sempre maior do que a incidência na generalidade da população na região Norte do país.
Mas com a introdução do processo de vacinação a 27 de dezembro e o desenvolvimento de uma imunidade contra a Covid-19, as realidades inverteram-se: a incidência entre os profissionais de saúde ficou sempre abaixo da generalidade da população, mesmo quando nem todos tinham sido inoculados. Os gráficos mostram que a terceira vaga também atingiu os profissionais de saúde, mas numa escala muito inferior.
A análise do Instituto de Saúde Pública concluiu que, duas semanas após o início da vacinação contra a Covid-19, a eficácia dentro do grupo de profissionais de saúde, contado mesmo com aqueles que ainda não tinham recebido a inoculação, já rondava os 50%. E olhando apenas para aqueles que, por estarem na linha da frente, já tinham sido vacinados, a eficácia disparava para as mesmas percentagens indicadas nos ensaios clínicos.
O mesmo fenómeno também terá ocorrido no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, onde os profissionais de saúde foram acompanhados pelo Instituto Gulbenkian de Ciência após terem sido vacinados contra a Covid-19. Carlos Penha Gonçalves, que lidera o estudo, confirmou ao Observador que houve uma grande descida nos casos entre os profissionais de saúde inoculados neste centro hospitalar.
Como a incidência em todo o país começou a decrescer, resultado das medidas de confinamento impostas até há pouco tempo, o cientista nota que a transmissão também decresceu nestes profissionais de saúde e que esse efeito não pode ser isolado do da vacinação. Certo é que as análises serológicas mostram que 99,8% dos vacinados naqueles hospitais desenvolveram anticorpos contra o vírus.
Mas as contas da incidência por faixas etárias demonstram que ocorreu o mesmo fenómeno entre o grupo da população sénior — que, por registar mais quadros clínicos graves de Covid-19, foi vacinada prioritariamente em Portugal. Somando todos os casos em cada faixa etária desde o início da epidemia, percebe-se que a incidência em quem tinha 80 anos ou mais só era ultrapassada pela registada nos grupos dos 20-24 e 25-29 anos.
Com o início da vacinação em função da idade, a incidência na faixa etária dos 80 anos ou mais, que até aqui era a terceira mais alta, passou a ser a mais baixa de todas. O último relatório de vacinação da Direção-Geral da Saúde diz que, desde 27 de dezembro até 14 de abril, 97% da população mais velha já tinha recebido a primeira dose da vacina e que 58% já estava completamente vacinada.
Mesmo durante a subida do R(t) — a taxa que indica quantas pessoas um infetado pode contagiar — acima de 1, essa diferença manifestou-se. Antes do processo de vacinação, o R(t) era muito semelhante em todas as idades e acompanhava sempre a taxa nacional — quando o R(t) nacional subia, o índice de transmissão subia em todas as faixas etárias; e quando diminuía também.
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Com a introdução das vacinas, mesmo com a subida R(t) nacional após o segundo desconfinamento, o mesmo índice limitou-se a estabilizar e depois a diminuir nos 80 anos ou mais. Nunca chegou sequer perto de 1. E mesmo o R(t) nos 70-79 anos foi o último a começar a crescer. Ou seja, a partir do momento em que os indivíduos nas faixa etárias mais avançadas estão mais vacinados, o R(t) desses grupos deixa de acompanhar os outros grupos.
Para estes dados contribui também o confinamento e todas as medidas que o governo impôs no país a fim de controlar a situação epidemiológica. Ainda assim, é possível subentender o efeito da vacinação de outras regras em vigor, explica Milton Severo: o confinamento (e o desconfinamento também) aplicou-se em todo o país e era independente da idade dos indivíduos, mas a evolução da incidência e do R(t) variou em função da faixa etária.
Ora, a única medida que se diferenciava tão significativamente entre as faixas etárias era mesmo a vacinação: o sucesso no controlo da Covid-19 foi maior nas populações que recebiam a vacina e mais modesto naquelas onde havia menos gente vacinada. Se as medidas do confinamento fossem as únicas a ter um impacto no país, esse efeito era semelhante em todas as faixas etárias.
A fim de saber mais sobre o impacto da vacinação na população, o Instituto Gulbenkian de Ciência prepara-se para, a partir da próxima semana, repetir o exercício realizado entre os profissionais de saúde nos trabalhadores docentes e não docentes. O objetivo é perceber como esse impacto varia em função dos grupos populacionais, mas também em função da vacina: enquanto a maioria dos profissionais de saúde receberam a vacina da Pfizer, o primeiro grupo de funcionários das escolas a serem vacinados recebeu a AstraZeneca — o segundo já recebeu uma diferente, depois da limitação da vacina da Oxford a maiores de 60 anos.
O instituto também tem marcada para terça-feira a apresentação dos resultados referentes à eficácia da vacinação num lar de Almeirim, onde praticamente todos os indivíduos receberam a vacina da Pfizer. Mas o estudo está em fase de alargamento e embarcará também uma clínica onde foi administrada a vacina da Moderna, assim como outros hospitais que já tenham distribuído AstraZeneca.
Cientistas calculam poupança de vidas com a vacinação
Mas não importa apenas vacinar: interessa também que a vacinação seja o mais veloz possível. O Instituto de Saúde Pública serve-se de uma série de equações para modelar os internamentos e as mortes que se poupam em determinados cenários: alimentando os cálculos com os valores do R(t), da taxa de letalidade e com a eficácia da vacinação, as equações revelam o impacto da vacinação na situação epidemiológica do país.
Descobriu-se que, mesmo com um R(t) na ordem dos 1,35 após o desconfinamento — muito acima do valor atual e nos níveis mais preocupantes da matriz de risco do Governo, o impacto da vacinação no ritmo em que ela está a decorrer preveniria 145 mil casos positivos de infeção pelo SARS-CoV-2, 9.000 internamentos por complicações relacionadas com a Covid-19 e 2.300 mortes pela doença provocada pelo coronavírus.
Mas se o ritmo da vacinação fosse mais rápido, mesmo com um R(t) tão alto como o teorizado pelos especialistas, já se poupavam 300 mil casos de infeção, 19 mil internamentos e 4.500 óbitos por Covid-19. Em Portugal, embora o ritmo da vacinação esteja constrangido pela capacidade de entregas das farmacêuticas e pelas contra-indicações que entretanto foram descobertas nos medicamentos, o R(t) é inferior a 1 e a poupança também é significativa.
Quão significativa, Milton Severo ainda não sabe responder. O Instituto de Saúde Pública está neste momento a preparar esses mesmos cálculos para apresentar as previsões na próxima reunião entre os decisores políticos e os conselheiros científicos no Infarmed. E os dados concretos relativos ao impacto da vacinação nos profissionais de saúde do Hospital São João estão a ser preparados para serem publicados num estudo científico.
De qualquer modo, apesar de se estar longe de chegar à imunidade de grupo que a União Europeia fixou como objetivo — só 20% da população portuguesa recebeu pelo menos a primeira dose e apenas 7% está completamente vacinada, longe dos 70% que se quer atingir até ao fim do verão —, Milton Severo acredita que a campanha de vacinação já está a ser capaz de controlar a incidência na generalidade da população.
O bioestatístico diz mesmo que, graças à proteção das vacinas, a existir uma quarta vaga, será “muito mais pequena que qualquer uma que tenhamos vivido até agora”. Nas vagas registadas até agora, os novos casos subiam, passado algumas semanas subiam também as mortes por Covid-19, depois os internamentos em enfermaria e, por fim, os casos em cuidados intensivos.
Mas com a campanha de vacinação a decorrer ao ritmo atual, a perspetiva é a de que, mesmo que haja um aumento de novos casos a que possamos chamar uma quarta vaga, as ondas referentes aos internamentos (tanto em enfermaria, como em cuidados intensivos) não a devem acompanhar tão de perto. É que os novos infetados tenderão a ser indivíduos mais jovens, que tipicamente têm menos necessidade de acompanhamento hospitalar.
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Portugal mimetiza, assim, alguns dos resultados que têm sido publicados no estrangeiro sobre o impacto real da vacinação no controlo da Covid-19. Em entrevista ao Observador, Adriano Bordalo, professor Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto no departamento de Estudos de Populações, fala de uma experiência que estudou a evolução das populações vacinadas e não vacinadas nos Estados Unidos.
Os milhares de voluntários, todos da mesma região do país, foram inoculados com a vacina da Pfizer/BioNTech e foram acompanhados ao longo do tempo. Após terem administrado a vacina a 40% da população dessa região, os resultados foram “particularmente interessantes”: a taxa de ataque — que se calcula dividindo o número de pessoas doentes pelo número de pessoas suscetíveis de apanhar a doença — passou para metade.
Mesmo focando apenas na parte da população mais suscetível à Covid-19 — os indivíduos com mais de 60 anos —, as melhorias na incidência da doença foram de 60%, as mortes também diminuíram em 70% e as entradas em unidades de cuidados intensivos decresceram 65%. “Isto significa que a vacinação em massa funciona, os primeiros dados científicos disponíveis na comunidade internacional indicam isto”, concluiu Adriano Bordalo.
O docente ressalva que estes dados não podem ser extrapolados para Portugal, uma vez que os resultados podem variar consoante as características da própria população ou a qualidade do serviço nacional de saúde, por exemplo, mas servem de “ponto de partida” para entender o que vai acontecer por cá e em toda a Europa. Com uma imunidade de grupo de 70%, estes resultados podem ser ainda melhores.
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Depois há o exemplo de Israel. Com cerca de 81% dos residentes completamente imunizados e o regresso à normalidade praticamente garantido no país, os israelitas estão um passo mais à frente e até já planeiam a administração da vacina em menores de idade e a eventualidade de vacinar a população novamente para manter a imunidade de grupo. Por lá, os primeiros efeitos da vacinação também se notaram nas faixas etárias vacinadas em primeiro lugar: as mais velhas.
Especialista teme emergência de doenças adormecidas
Mas mesmo ciente do sucesso da vacinação no controlo da Covid-19, em Portugal e pelo mundo, Adriano Bordalo já tem outras preocupações em mente. A poliomielite é uma delas. Até aos anos 1950, falava-se desta doença, provocada também ela por um vírus, como se fala hoje da doença causada pelo SARS-CoV-2: era “democrática”, porque afetava qualquer um, independentemente do nível socioeconómico.
A chegada da primeira vacina há 60 anos, distribuída num esforço conjunto entre a Organização das Nações Unidas, a Organização Mundial de Saúde, a UNICEF e os Rotários, permitiu libertar o mundo ocidental da poliomielite. Em agosto de 2020, o continente africano também foi considerado livre desta doença, que agora só subsiste em dois países fustigados pela guerra: Paquistão e Afeganistão.
O problema é que, com a paralisação da aviação à conta da pandemia, as campanhas de vacinação contra a poliomielite não foram realizadas e as vacinas, que estão guardadas em armazéns no mundo ocidental, não chegaram às populações que dela necessitam, em Moçambique e na Guiné, por exemplo. Adriano Bordalo, especialista neste tipo de fenómenos e conhecedor da realidade guineense e moçambicana, teme que isso simbolize um recuo no combate à doença.
Outro problema que pode estar no horizonte é o da malária, uma doença endémica da região banhada pelo rio Sado e que é transmitida de pessoa para pessoa através de determinadas espécies de mosquitos. A drenagem dos campos foi capaz de controlar as populações dos vetores da doença, mas as alterações climáticas e o surgimento de maior concentrações de corpos de água (como as barragens) podem contribuir para o seu ressurgimento.
É por isto que, para Adriano Bordalo, por mais bem sucedida que a vacinação da Covid-19 esteja a ser, poderá não haver muita margem para respirar de alívio: a natureza está em mudança e é preciso pegar nas lições que a pandemia trouxe para preparar o mundo para a próxima pandemia. A da cólera, por exemplo, já dura há 60 anos, infeta cinco milhões de pessoas por ano e mata 150 mil. É necessário combater essa também, acredita.