Fast forward — saltemos para o fim da história. Não é preciso ser uma grande espingarda a matemática para saber somar. O Rui é bicampeão da Europa (2014, 2016). O Rui já foi vice-campeão do mundo (2011). O Rui é número 2 do ranking mundial. O Rui é número 3 do ranking olímpico. O Rui tem família, amigos e namorada com ele no Rio de Janeiro. O Rui levou algumas referências da Missão Olímpica à Arena Carioca 3. O Rui é aluno no quinto ano de Medicina na Universidade do Minho. O Rui compete com dinheiro que sai do próprio bolso. O Rui está grato e diz que deve tudo aos pais. O Rui termina em nono nos JO. O Rui levanta a voz pelo taekwondo para abrir caminho para quem vem atrás. O Rui tem 24 anos. O que se passa aqui? Acaso não é certamente e alguém vulgar não fala assim…
“De Bragança até ao ouro são nove horas de distância” — faltava acertar as contas. Estava escolhido o título da reportagem, assim mesmo, a reboque dos Xutos, depois do primeiro combate de Rui Bragança, porque o português tradicional é do pior, vai do inferno ao céu e vice-versa mais rápido do que Bolt cumpre os seus 100 metros. Quem entendia do assunto avisava para levar este rapaz de Guimarães a sério. Como não? Campeão da Europa. A forma como entrou na Arena Carioca 3 surpreendeu. Sorridente, feliz, realizado ainda antes de realizar, dizia adeus para quem o chamava. Parecia estar em casa.
TAEKWONDO: Rui Bragança 9.º classificado nos -58kg. O português não conseguiu uma vaga nas repescagens. pic.twitter.com/b4IFDRRJ3v
— Comité Olímpico de Portugal (COP) (@COPPORTUGAL) August 17, 2016
O primeiro rival, nos “oitavos”, era o colombiano Oscar Luis Muñoz Oviedo, um atleta de 23 anos, que ganhou uma medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 2012. Não era brincadeira. Surpreendeu a leveza no espírito de Bragança. Se estava a combater em -58kg, naquele momento parecia ter as 21 gramas de que falava Iñárritu. Todo ele era alma. Mas o rosto foi fechando. E fechando. E fechando. Até que trocou um cumprimento com o treinador e subiu para o campo de batalha.
Se estava a combater em -58kg, naquele momento parecia ter 21 gramas. Todo ele era alma.
Entrou primeiro do que o rival, talvez seja alguma mensagem, como alguém que está mais pronto. Cumprimentaram-se, curvando o tronco, com os olhos cravados no chão. O respeito e a cordialidade são sagradas nas artes marciais. Às vezes são tão amigáveis e respeitosos que causa alguma intriga como é que vão “aviar” um no outro a seguir. Capacete no sitio, vamos a isto.
Bastaram 20 segundos para Rui Bragança tocar na cabeça do colombiano. Ou seja, três pontos no bolso. Mas não aterraram facilmente no marcador lusitano, pois foi necessário o treinador do português pedir para se recorrer ao vídeo (quota), tal como acontece no futebol americano ou no ténis. Tinham razão, os portugueses. Três, oh.
“Vamos, Ruiiii”, ouviu-se pouco depois, com um sotaque português cheio de ginga. No dojang Bragança ia mudando de posição, dava meias voltas, saltava muito, vai berrando. A voz era estridente, prolongando-se por dois segundos. Uma espécie de “Auoooooooo”. O grito é denominado por “kihap”, que, se as pesquisas estiverem certas, significa que o atleta está focado. Se estás focado na tua energia, o resultado é o grito. Para não esquecer que poderá ter quilos de carga primitiva, pela capacidade que terá em intimidar o adversário ou demonstrar confiança. No ténis de mesa, por exemplo, muitos atletas gritavam (gritam?) “choooooo!”.
No dojang Bragança ia mudando de posição, dava meias voltas, saltava muito, vai berrando. A voz era estridente, prolongando-se por dois segundos. Uma espécie de “Auoooooooo”. O grito é denominado por “kihap”
Bragança estava com tudo, portanto, porque gritou várias vezes. Fez pouco depois o quarto ponto. Ouvia-se “Portugal, Portugal, Portugal” nas bancadas, num abraço entre portugueses e brasileiros, gostoso de se ver. Os colombianos deram um ar da sua graça. O primeiro round terminava, com um quatro-zero impecável para o português da Cidade Berço.
O colombiano chegava mais agressivo ao segundo round, mas rapidamente Bragança chegou ao 11-0. Até que se ouviu um enorme estrondo na Arena Carioca 3, em dois segundos que os olhos do Observador escaparam ao tapete. Era Rui que estava no chão, com cara de dor. A proteção que defende os dentes saltara também. Foi duro. O rosto de Bragança não enganava. Se pudesse ficava ali no chão, a adorar o descanso, a aproveitar a paz no corpo. Está atordoado, mas já está de pé.
Num ápice chegamos ao 13-2, falta pouco para o português ganhar pelo que antigamente chamávamos “capote”. Quando um atleta conquista uma diferença de 12 pontos, não é necessário esperar-se pelo fim do combate. Está feito. Seria assim o desfecho deste Portugal-Colômbia? A ver. No descanso do segundo round, Rui apoia-se nos joelhos, a ganhar fôlego e talvez a pensar ainda naquele pancada numa das pernas.
O português garantiu o fosso de 12 pontos a um minuto do final do terceiro round: 14-2. Estava sólido, notava-se bem, cheio de moral. Estava bem.
O português garantiu o fosso de 12 pontos a um minuto do final do terceiro round: 14-2. Estava sólido, notava-se bem, cheio de moral. Estava bem. O treinador, Hugo Serrão, era o que sorria mais. Rui agradece, toca no coração, aponta para amigos e família. Volta a tocar no coração, em dose dupla. Ele está bem. “Auoooooooooo”, dizemos nós.
Ao almoço, entre colegas, era só vaidade. Como há quem diga no futebol: já estávamos na fase vai-treze, já nem é vai-doze (vaidoso). Mais uma vez: uma vitória por “capote” ao medalha de bronze nos JO de Londres, daquele que é pela segunda vez campeão da Europa, não dava para segurar o entusiasmo.
ahhhh, os Jogos no Brasil… assim se espera por Rui Bragança (taekwondo) na Arena Carioca 3 #Rio2016 pic.twitter.com/Ar9yM2N7NY
— Hugo Tavares (@TabarezH) August 17, 2016
É curioso lembrar que estamos a seguir alguém que está no topo do mundo depois de ter escolhido o taekwondo como terceira opção. Tentou karaté aos seis anos, mas não havia meninos para treinar à noite. Decidiu tentar natação e até terá dado boas indicações, acabando por ser chamado para a competição, mas uma alergia ao cloro afastou-o dessa vida. O taekwondo entrou no seu dia-a-dia aos 13 anos.
É curioso lembrar que estamos a seguir alguém que está no topo do mundo depois de ter escolhido o taekwondo como terceira opção. Antes tentou karaté e natação
Rui Bragança estava a sul do mapa do torneio, por isso seria sempre o último a entrar no dojang da Arena Carioca 3. Até lá viram-se alguns combates, uns melhores do que outros, com samba pelo meio. Também se ouviu a clássica canção que ligamos a Rocky Balboa e uma que poderíamos ligar a Bragança: “I just can’t get enough, I just can’t get enough…”
O Observador muda a estratégia para o segundo combate, o dos “quartos” vs. Luisito Pie: ver perto dos portugueses que moram no coração de Bragança. Os pais estavam lá, o seu companheiro de treino e a namorada idem. Começavam a chegar algumas referências da comitiva portuguesa no Rio. Telma Monteiro e Vanessa Fernandes veem o combate lado a lado. Dulce Félix e Francisca Laia também estão por perto.
comitiva portuguesa e família estão com Rui Bragança na Arena Carioca 3 ???????? #RUintro16 pic.twitter.com/7TL1q80BQr
— Hugo Tavares (@TabarezH) August 17, 2016
“Ruuuuuuuui!”, ouve-se quando ele é anunciado. O grupo de portugueses ficou de pé durante largos segundos. São muitas as bandeiras verdes e vermelhas. O pai de Rui colocou a bandeira aos ombros. “Quase na cabeça”, berrou um amigo. “Não entrou!”, diz outro. Vão vivendo o combate com molas nos pés, tantos são os saltos que vão executando. Vibram, sofrem. É mais do que um combate, é a amizade ali à frente. “Portugal allez, Portugal allez, Portugal allez”, investe a grupeta toda.
Zero-zero no primeiro round trouxe alguma acalmia e palmas tímidas. Vão puxando por Portugal e batem nas cadeiras, não querem deixar de se fazer sentir, apesar da apreensão. Zero-zero no final do segundo round. Era o dominicano quem atacava mais. Bragança admitiria no fim que apostou mais no contra-ataque, pois, naquele caso, não se sentia confortável a jogar na antecipação.
Qualquer coisinha é digna de festejo, como aconteceu com uma advertência ao rival do português. Surpreendentemente, talvez por provocação por estar ali uma mancha lusa, foi ver muitos brasileiros a puxarem pelo dominicano. “Vai para Portugal, meu irmão!”, ouvia-se várias vezes.
Oops! Toque na cabeça de Bragança, três pontos para Pie. E foi, de facto, com o pé. “O primeiro a errar perdia. Fui eu. Aquele toque foi decisivo”, diria depois do combate. Há mãos na cabeça nesta curva da Arena Carioca 3. Há preocupação. Cheira-se a derrota, mas a toalha não cai. “Arrisca, Rui!!”, berra uma senhora com os decibéis no sitio. Uma pausa para colocar direito o sensor de contacto do dominicano permite ao português trocar umas indicações com o seu treinador. Ele abre os braços, sente-se que estava difícil. Parece impotente, aceitando o que estava a acontecer.
“Vamos, Rui!!”, gritava o pai. O dominicano ainda ofereceria um ponto ao português, por penalização, por evitar atacar e escapar-se pelo dojang. Nada feito, 3-1 para Pie (seria medalha de bronze). O primeiro olhar de Bragança vai para os seus, onde estava o Observador. Colocou os olhos aqui e fez uma vénia. Abraçou com força o treinador. Na bancada, depois de uma fugaz salva de palmas, as caras ficaram fechadas e as conversas, preocupadas. O pai agarrava-se ao telefone, talvez para perceber o filme da repescagem (Pie não chegaria à final e não permitira a Bragança regressar). Rui passou perto da sua gente, suspirou, sorriu e voltou a tocar no coração.
A seguir, com os jornalistas portugueses, diria, segurando as lágrimas, que o melhor que leva do Rio de Janeiro foi ter tido os pais, amigos e a namorada ali com ele. Lá está, a alma de alguém pouco vulgar.