Índice
Índice
O míssil lançado contra o palácio da administração regional de Kharkiv na manhã de 1 de março ficou como um símbolo da destruição russa nesta guerra. Foi filmado por uma câmara de videovigilância numa esquina da praça da segunda maior cidade ucraniana, a seguir à capital, Kiev, e que é também a segunda cidade mais destruída nesta guerra, logo a seguir a Mariupol.
Este som deixou a cidade em sobressalto 460 vezes nos primeiros 76 dias da guerra, entre 24 de fevereiro e 11 de maio.
Em média, as sirenes ouviram-se de 4 em 4 horas.
Quando os residentes eram alertados por este alarme sonoro, já sabiam que os radares ucranianos tinham identificado possíveis ataques aéreos e deviam refugiar-se em bunkers, caves e outros abrigos.
Quando o perigo passava, os ucranianos recebiam um aviso oficial via Viber ou Telegram.
Nestes primeiros 76 dias de guerra, os residentes da segunda maior cidade ucraniana permaneceram 390 horas em alerta, sob risco iminente de um ataque aéreo. Mais de 20% do tempo, portanto, ou uma em cada cinco horas das suas vidas.
Kharkiv fica a apenas 40 km da fronteira russa, o que tornou a cidade mais vulnerável logo desde os primeiros dias da guerra. À saída da cidade em direção a norte, ainda resistem placas que apontam Moscovo: a capital russa ficaria a 800 km — se a fronteira entre os dois países em guerra ainda estivesse aberta.
Industrial
Kyivskyi
MoskowskyiSaltivskyi
Nemyshlianskyi
Novobavarskyi
Osnovyanskyi
Slobidskyi
Holodnogirskyi
Shevchenkivskyi
A Ucrânia está dividida em 24 oblasts, o equivalente a distritos, com o nome das respetivas capitais. Kharkiv é o distrito mais próximo, a norte, de Luhansk e Donetsk, na região do Donbass, onde a guerra com a Rússia tem sido mais intensa já desde 2014.
A maioria da população falava russo antes da invasão de 24 de fevereiro. E muitos dos residentes têm familiares do outro lado da fronteira.
A cidade de Kharkiv, onde antes da guerra viviam 1,5 milhões de habitantes, está dividida por nove bairros.
Este é o número de edifícios atingidos em cada bairro até 11 de maio. No total, foram 3504 prédios. A uma média de 46 por dia.
O bairro mais atingido pelos russos é o que tinha o nome associado à sua capital, Moscovo. A área de Saltivka, o maior dormitório de Kharkiv onde viviam 400 mil pessoas, ocupava praticamente todo este bairro e ainda partes de outros dois.
A 11 de maio, a câmara de Kharkiv decidiu alterar o nome do bairro: em vez de Moskowsky passou a chamar-se Saltivskyi, para cortar a ligação com o país agressor na toponímia da cidade. Outras três ruas mudaram de nome no mesmo dia, incluindo a Avenida Moskowsky, que foi substituída pela avenida Heróis de Kharkiv.
A seguir pode ver assinalada a vermelho no mapa a evolução dos ataques em cada mês, desde 24 de fevereiro até 11 de maio.
Fevereiro
Março
Abril
Maio
Voltar a casa depois das bombas e encontrar tudo destruído: “Porque é que Deus nos está a castigar?”
“Esta já é a minha segunda guerra”. Larissa nasceu há 81 anos em Kharkiv, em plena II Guerra Mundial. Tem memórias difusas de momentos da infância em que teve de se esconder com a avó numa cave, enquanto a mãe saiu para tentar arranjar comida, durante o confronto entre russos e nazis. Agora, oito décadas depois, é como se o mundo tivesse entrado em flashback: voltou a ter de se refugiar numa cave, para se proteger de bombardeamentos, na sequência de uma invasão que usa nazis como pretexto.
Larissa é uma das cinco residentes que restam neste prédio de nove andares em Saltivka, um dormitório colado a Kharkiv onde viviam 400 mil pessoas antes de dezenas de prédios de habitação terem sido bombardeados pelos russos, logo a partir da madrugada de 24 de fevereiro. Quem podia fugiu para outras partes de Kharkiv, para Lviv, ou mesmo para o estrangeiro. Ficaram os mais idosos, que não têm para onde ir, ou não querem mesmo sair. Dois dias antes, no início de maio, o prédio de Larissa tinha sido de novo atingido.
— Com tanto perigo, porque é que não se vai embora?
— Niet [Não]. Os meus familiares foram para outra zona de Kharkiv. Hoje bombardeiam aqui, amanhã pode ser lá. Já não tenho medo de nada.
Larissa não tem o elevador para a levar até ao seu apartamento no 5º andar. Não tem água, não tem luz, não tem televisão, não tem internet. Mas tem gás — para cozinhar e manter o aquecimento. E tem sobretudo Roman e a mulher — um casal de vizinhos que agora se tornaram quase nos seus melhores amigos. É este casal que a visita todos os dias para ver do que precisa, que lhe leva água a casa, que a ajuda a ir receber a pensão (depois de o posto dos correios ter sido bombardeado) e que lhe carrega a bateria do telemóvel em casa, de quatro em quatro dias, para continuar contactável.
Antes da guerra, Larissa podia passar por eles na rua e mal os cumprimentar. Agora não passa sem eles. “O mundo tem pessoas boas”, elogia, à porta do prédio quase destruído, e ao lado do casal amigo que a salva um bocadinho todos os dias.
“Tentamos ajudar os vizinhos, vamos perguntar do que precisam, fazemos o que podemos. Além da Larissa, ajudamos mais três idosos que vivem aqui sozinhos, duas mulheres e um homem. São os nossos novos amigos”, diz o vizinho altruísta.
Roman tem uma irmã a viver em Moscovo [a mãe de ambos era de origem russa]. Assim que a guerra começou, enviou à irmã os vídeos que mostravam a destruição nestes prédios em Saltivka, mas ela não se comoveu, disse apenas: “Isto acaba dentro de dias”. Uns dias mais tarde, Roman voltou a partilhar com a irmã fotografias de prédios bombardeados. E ela: “Isso não é obra dos russos, é dos ucranianos”.
Roman sabe que a irmã tem medo de ser escutada e que por isso não se alonga em conversas ao telefone. Mas está convencido de que também ela foi submetida à “lavagem cerebral da propaganda russa”. Espera conseguir voltar a vê-la quando a guerra acabar: “Ela tem mais de 60 anos, não é culpada pelo que está a acontecer. Nem sei se percebe tudo”.
Um carro pára à porta do prédio em Saltivka, com uma família que volta agora a ver a casa. Seguimos um casal e o filho até ao 6º andar. Vladimir, 52 anos, deixa-nos entrar, mas pede para esperarmos um pouco até recuperar o fôlego depois de subir tantos degraus, antes de começar a falar. Senta-se numa cama enquanto olha à volta. Não tem um vidro que não tenha sido estilhaçado. Tem estragos que vão exigir reparações avultadas na casa de banho e na cozinha. Mesmo assim, consegue relativizar: “Não está muito danificado. Muita gente não teve tanta sorte”.
Veja neste vídeo captado por drone como ficou um dos prédios de Saltivka, a zona mais atingida pelos bombardeamentos:
Vladimir, a mulher, Irina, e o filho, Yaroslav, 21 anos, viram literalmente esta guerra começar da janela de suas casas. Às 4h20 da madrugada de 24 de fevereiro, assim que sentiram uma enorme explosão, o filho ainda teve o reflexo de procurar uma explicação na internet, mas a rede tinha desaparecido. Só depois foram à janela e viram uma bola de fogo, por cima do supermercado onde Irina trabalhava — e continuou ainda a trabalhar após o início dos bombardeamentos. “Foi assustador. Só fecharam o supermercado dois dias depois”, recorda Irina, que foi entretanto despedida, com a promessa de voltar a ser contratada quando o supermercado reabrir.
Não saíram logo de casa, porque Vladimir ainda teve esperança de que não se repetissem explosões: “Ninguém esperava que bombardeassem zonas residenciais. Se querem lutar, vão para o campo e lutem.” Passaram os dias seguintes a dormir na cave, até deixar de ser possível, quando uma explosão gigante atingiu o edifício ao lado, a 5 de março.
Vladimir viu o filho atirar-se para o chão e proteger a cabeça. E decidiu que já bastava. Em 20 minutos pegaram nos bens essenciais e fugiram para casa do irmão, noutra zona do distrito de Kharkiv. Nem foi preciso ligar a avisar, ele sabia que o irmão os ia receber.
Em dois meses, esta é a terceira vez que voltam a casa para vir buscar roupa. A conversa é pontuada pelo estrondo de dezenas de pequenas explosões ao longe. Já nem ligam. Anseiam por voltar a casa de vez, assim que a guerra acabar, mas agora Vladimir acha que ainda vai demorar, o que aumentará o risco de o seu filho de 21 anos ser chamado para se juntar aos militares (apesar de não ter experiência). O rapaz diz que está pronto para aprender a combater, assim que for preciso. A mãe não está pronta para o ver partir e prefere que esse momento não chegue nunca.
Três prédios ao lado, na mesma rua de Saltivka, Tania, que faz 64 anos este domingo, não se atreve a subir os degraus até à sua casa no 9º andar. Não sabe se resistiria fisicamente à subida, não sabe se aguentaria emocionalmente ver a casa devastada, não sabe se sobreviveria a um novo bombardeamento que atingisse o edifício. “Claro que tenho medo de morrer. Toda a gente quer viver mais um bocadinho”.
Fica cá em baixo, chocada com o nível de destruição do prédio onde morava, enquanto o marido sobe para pregar tábuas de madeira no espaço onde deviam estar os vidros das janelas.
Também saiu daqui na sequência da grande explosão de 5 de março no prédio ao lado. Nesse dia, antes de se refugiar em casa de uma irmã mais afastada das bombas, ainda viu uma rapariga no chão com uma perna a sangrar, um homem com ferimentos nas costas, dois vizinhos mortos um pouco mais ao lado.
Emociona-se e chora, enquanto recorda estas imagens, prostrada a olhar para os escombros do prédio sem janelas. “Porque é que Deus nos castiga assim?” Ouviu dizer que Putin vai ser operado e espera que não acorde: “É um homem doente”.
Em Saltivka, até os nomes das ruas perderam o sentido. Uma das artérias onde mais prédios de habitação foram atingidos chama-se Rua da Amizade dos Povos. Olhando à volta, é só prédios do tempo da União Soviética, torres feias de dez andares numa gigantesca zona residencial, em que não se vislumbra nada que pudesse remotamente ser um alvo militar.
O armamento mais utilizado nos ataques russos em Kharkiv
Os mísseis 9M55K Smerch transportam bombas de fragmentação.
Este míssil é especialmente utilizado para destruir locais de armazenamento de armamento inimigo, postos de comando e colunas militares.
É utilizado, ainda, para atacar veículos blindados e sistemas de lançamento de mísseis.
A velocidade máxima é de aproximadamente 3.700 km/h.
O OTR-21 Tochka é um míssil balístico de curto alcance.
Este míssil é normalmente utilizado em ataques muito localizados em alvos táticos inimigos.
Os alvos usuais são postos de controlo, pontes, locais de armazenamento de armamento, aeroportos e colunas militares.
A velocidade máxima é de aproximadamente 1,8 km/s.
Os mísseis 9M27K Uragan transportam bombas de fragmentação.
Estes mísseis são normalmente utilizados para minar campos quando o inimigo está em retirada ou quando recupera terreno.
São utilizados, ainda, para cercar o inimigo num determinado território.
Esta técnica de cerco foi muito utilizada pela União Soviética no Afeganistão.
O 3M-54 Kalibr é um míssil de cruzeiro anti-navio.
A velocidade máxima é de 954 km/h a 3.459 km/h, conforme o submodelo. Este míssil é mais utilizado para atingir grandes alvos.
O facto de poder atingir velocidades supersónicas e hipersónicas dificulta a reação dos sistemas anti-mísseis inimigos.
Não obrigam a uma presença próxima do terreno sob ataque: na guerra na Ucrânia, estão a ser lançados junto à costa da Crimeia, no Mar Negro.
O míssil M-21OF Grad é altamente explosivo.
Estes mísseis destinam-se a ataques a céu aberto e sobre abrigos, para criar passagens em campos minados, contra artilharia hostil e para destruição de material blindado.
Foi concebido para atacar concentrações de infantarias e armamento, neutralizar colunas militares e destruir pontos de resistência e fortalezas.
A velocidade máxima é de cerca de 2.500 km/h.
O ataque ao mercado e o dilema cruel enfrentado pelos bombeiros
O mesmo acontece noutras zonas de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, e que é também a segunda mais atacada pelos russos (a seguir a Mariupol). Na zona de Pavlove Pole, um bombardeamento destruiu dois edifícios residenciais e um jardim de infância, que por sorte não tinha crianças. Estão lá as cadeiras e mesas pequenas, as camas para as sestas, o quadro, os desenhos e os brinquedos — tudo revolvido no meio dos destroços. Nas imediações, a única coisa que poderia eventualmente ser considerado um alvo militar é a antena da televisão, a uns 150 metros, que permanece de pé.
Outro grande ataque em Kharkiv atingiu o mercado Barabashovo, o maior da zona leste do país e o 14º maior do mundo. Cerca de 90 mil pessoas trabalhavam aqui, e 200 a 300 mil clientes regateavam diariamente os preços nas bancas que ocupavam uma área equivalente à de 120 campos de futebol. Era também um dos principais pontos de abastecimento alimentar à cidade.
Este vídeo captado por drone ajuda a dar uma ideia da destruição no mercado e da área que ocupava:
A 17 de março, dia em que o mercado foi bombardeado, uma gigantesca nuvem de fumo negro cobriu toda esta área. Um dos bombeiros enviados para controlar o fogo morreu no local, atingido por um segundo bombardeamento, o que ajudou a condicionar e atrasar as operações de socorro em geral, em todos os bombardeamentos.
Além de todas as dificuldades e do medo sentido pelos socorristas, passaram a ter de lidar com a crueldade do inimigo, que bombardeia quase sempre duas vezes o mesmo alvo, o que coloca muitas vezes o dilema a estes bombeiros entre entrar logo nos edifícios bombardeados pondo em risco a sua vida ou esperar pelo segundo bombardeamento, correndo o risco de atrasar o resgate de sobreviventes.
Segundo números oficiais adiantados ao Observador pelos serviços de emergência de Kharkiv, até ao início de maio os socorristas foram chamados a entrar em 2800 vezes, na sequência de bombardeamentos. Salvaram 250 pessoas de incêndios, 300 pessoas de escombros, algumas delas em operações de resgate muito complicadas, que duraram 7 horas.
Mas muitas vezes não chegaram a tempo ou não havia nada a fazer, pelo que recolheram 500 cadáveres. Morreram quatro bombeiros na sequência de bombardeamentos ou em explosões provocadas por minas.
Uma fotografia de Fábio Coentrão nos escombros do palácio da administração de Kharkiv
No centro da cidade também se registaram aparentemente falhas de pontaria. Um edifício de escritórios, com uma ourivesaria no rés-do-chão, foi violentamente atingido, enquanto a câmara municipal, mesmo ao lado, apenas terá registado quebra de vidros.
Outros alvos foram atingidos com maior precisão, como a sede da polícia, que está em escombros. O chefe da polícia de Kharkiv, Volodymyr Tymoshko, estava numa reunião no seu gabinete com o governador regional de Kharkiv, às 8h30 de dia 2 de março. “O impacto do primeiro rocket rebentou os vidros todos e fez-nos “voar” pelo gabinete”, descreveu ao Observador. “Foi imediatamente ordenado que toda a gente corresse para a cave, porque achávamos que havia a hipótese de ser lançado um segundo rocket. Quando chegámos à cave, sentimos o impacto do segundo rocket, o edifício ruiu [parcialmente] e nós ficámos meio debaixo dos destroços.”
Volodymyr Tymoshko tem no telemóvel várias fotos tiradas logo a seguir, onde aparece ainda com o rosto todo empoeirado. Para não dar informação ao inimigo, prefere não adiantar o número de polícias mortos e feridos neste ataque.
Na véspera, exatamente à mesma hora (8h30), tinha sido atacada a sede da administração regional de Kharkiv, talvez o alvo com maior visibilidade e importância, por razões simbólicas de ataque ao poder estatal ucraniano, por ficar no topo da segunda praça mais importante da cidade e por terem morrido 24 pessoas na sequência de dois bombardeamentos na manhã de 1 de março.
Este edifício de seis pisos em ruínas está acessível a quem quiser entrar. Transformou-se numa espécie de museu dos horrores desta guerra, onde abundam por entre os escombros os sinais da vida que havia na representação do governo em Kharkiv antes do bombardeamento. O tapete sumptuoso, em tons de azul e listas douradas, continua a cobrir a escadaria que liga o primeiro ao sexto andar. Mas está completamente coberto por entulho, vidros, documentos e objetos pessoais. O mesmo sucede ao longo dos vários gabinetes, corredores e salões nobres, exceto na ala que foi mais atingida, em que todos os pisos abateram.
Já tudo foi remexido e pilhado, mas ainda restam impressoras e computadores destruídos, candeeiros estilhaçados, molduras partidas, e dezenas de dossiês com documentação oficial. Um dos documentos no chão é a lista de projetos para serem financiados pelo orçamento regional, que previa a reconstrução de um telhado ou a criação de um jardim infantil — uma lista que terá de ser revista agora, assim que houver condições para reconstruir o país.
No piso de entrada, ainda permaneciam os sacos de trincheiras montados junto às janelas para proteger o edifício de uma invasão terrestre, mesmo ao lado do bengaleiro ainda cheio de peças de roupa, com uma bandeira ucraniana derrubada num canto.
Pelo chão, entre um verniz, uma máscara anti-covid, faturas, porcelanas, maços de cigarros vazios, copos, um termo e pacotes de sumo, sobressai uma fotografia gigante de Fábio Coentrão, num jogo da Seleção contra a Holanda, que se realizou em Kharkiv, durante o Europeu de 2012.
Uns metros de entulho e vidro mais à frente, o início de um texto em russo, numa folha rasgada: “Não é possível viver a tua vida de forma ideal; Não é possível não chorar…”
O regresso do professor de português de Kharkiv ao centro da cidade
O Observador fez a primeira incursão pela cidade acompanhado por Serhii Wakulenko, professor de português da Universidade de Kharkiv, que ainda não tinha vindo ao centro desde que começou a guerra, a 24 de fevereiro. “Para não complicar as coisas aos nossos guerreiros, mais vale ficar em casa. A guerra continua”, justifica ele, num português praticamente sem sotaque.
Serhii começou a aprender português por curiosidade através de um manual, de forma autodidata. Ainda no tempo da União Soviética, nos anos 80, pôde treinar a língua primeiro com estudantes moçambicanos, depois com alunos portugueses enviados pelo PCP para Kharkiv: “Foram eles que me deram as minhas primeiras lições de fonética”.
Enquanto tirava o doutoramento em Moscovo, frequentou um curso noturno de português, que lhe permitiu dominar a língua ao ponto de viver 3 anos na Parede, em Portugal, com uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Tornou-se também professor da disciplina opcional de Português na Universidade de Kharkiv, que juntou à sua especialidade em linguística ucraniana e polaca.
Já não ensina português há dez anos, e perdeu o contacto com os alunos, também por não usar redes sociais. Mas acha pouco provável que estejam a combater na guerra, porque a esmagadora maioria eram mulheres, que iam ser professoras do ensino secundário, e as mulheres ainda têm uma participação minoritária no exército.
Mora numa zona de Kharkiv que não tem sido tão fustigada pelos russos: o ataque mais próximo terá sido a 1 km de sua casa. Mas todas as noites ouve o som dos bombardeamentos e já se habituou. Armazenou comida que lhe permitirá sobreviver, caso a situação volte a complicar-se e deixe de poder ir ao supermercado, onde lamenta aliás a dificuldade crescente em encontrar vinhos portugueses. Também tem saudades de queijos da Serra e de Azeitão.
“Aqui já há alguns vidros partidos, mas vamos ver como está no centro”, diz Serhii, enquanto aponta, sucessivamente, a belíssima catedral do séc. XVII, a livraria encerrada onde comprava livros, a igreja que funcionava como cinema no tempo da União Soviética, a praça central quase deserta onde estariam milhares de pessoas se não fosse a guerra, as estações de metro que funcionam como abrigos, as estátuas tapadas, o edifício da Ópera que considera “horrendo”, as muitas lojas que permanecem fechadas, o restaurante onde se confeccionava a melhor comida típica da cidade, ou ainda o monumento da Bola, a escultura de uma bola de futebol erigida na praça onde, no tempo da União Soviética, se afixavam todas as páginas dos jornais para as pessoas lerem e discutirem as novidades dos seus clubes.
Apesar do nível de destruição que testemunhou no centro da cidade, Serhii ainda estava à espera de encontrar Kharkiv em pior estado, na sequência das notícias que foi lendo e ouvindo nas últimas semanas. “Com todas as notícias, imaginava uma paisagem muito pior. Achava que estaria tudo em ruínas e não é verdade, não conseguiram destruir tudo. Vemos muitos vidros partidos e edifícios seriamente danificados, mas vamos fazer a reconstrução e em alguns casos vai ficar mais belo”.
O professor de português não é um apoiante de Zelensky, ao contrário da maioria da população nesta altura. “Porque é que os russos vieram? Pensaram: ‘Com Zelensky podemos fazer tudo.’ Com Poroshenko não se atreveriam. Eu votei em Poroshenko. Não sou um fã, mas estava claro que era um líder mais competente”.
Mas isso em nada belisca o seu patriotismo, que vê também reforçado mesmo entre a população que tem familiares russos, como aliás é o seu caso: a mãe era russa, mas Serhii garante que era uma patriota ucraniana, que teria ficado horrorizada com esta invasão: “Tenham ou não familiares na Rússia, agora todos os residentes odeiam os invasores. E todos estão mobilizados para defender a nossa cidade”. O próprio professor de português se inclui nestes resistentes e diz que só não se juntou às forças de defesa territorial por já ter 61 anos e padecer de algumas dificuldades de visão: “Os meus olhos não estão bons para matar dois russos com uma bala.”
Reportagem
Pedro Jorge Castro e João Porfírio
Fotografia e vídeo
João Porfírio
Edição de vídeo
Catarina Santos e Ana Moreira
Design dos interativos
Miguel Feraso Cabral
Infografias
Ana Moreira
Levantamento dos ataques e do armamento
Marta Leite Ferreira
Recomendamos
Ofereça este artigo a um amigo
Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.
Artigo oferecido com sucesso
Ainda tem para partilhar este mês.
O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.
Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador
Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.
Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.
Atingiu o limite de artigos que pode oferecer
Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.
Aconteceu um erro
Por favor tente mais tarde.
Atenção
Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.