Era a primeira participação de sempre de Portugal no Mundial de râguebi. Ganhar ou perder era uma preocupação para outras equipas, sobretudo aquelas que eram compostas por jogadores profissionais. Não era o caso dos Lobos. Para os portugueses era uma sorte jogar contra a Nova Zelândia, mesmo que isso significasse que o objetivo fosse não perder por 100 pontos. Em frente ao haka dos All Blacks, em 2007, estava Pedro Leal, o nome que o World Rugby ainda considera o internacional luso mais icónico. 16 anos depois dessa participação, o antigo jogador viu Portugal qualificar-se de novo para um Mundial. Recorda que as condições da Seleção são hoje melhores, o que não significa que os Lobos não continuem a uma distância considerável das grandes potências. Aponta à primeira vitória de sempre num Mundial em França, ao qual vai assistir de fora. Atualmente, faz parte da equipa técnica do Direito e da Seleção de Sevens.
Deixaste de jogar em 2021. Como tens organizado a vida desde aí?
Foi fácil. Quando deixei de jogar já treinava a equipa feminina do Sporting [cargo que manteve durante três anos]. Era jogador e treinador ao mesmo tempo. O Direito, o clube onde joguei a vida toda, convidou-me para ser treinador dos Challenge [equipa secundária] e já estou lá há dois anos. Deixei de jogar e continuei a carreira como treinador. Neste último ano, também fui convidado pela Federação Portuguesa de Râguebi para ser treinador dos Sevens com o Frederico Sousa, que é o selecionador.
Justificaste o final da carreira com a necessidade de passares mais tempo junto da família. A verdade é que manténs o râguebi muito presente na tua vida…
A minha mulher a brincar diz-me isso. Chateava-se muito quando eu ainda jogava, porque me devia focar mais na família. A verdade é que deixei de jogar e passo mais tempo no Direito do que quando jogava. O “bichinho” está cá e é difícil deixar. Como joguei muitos anos nos Sevens, não podia recusar o convite para ser treinador, porque era uma coisa que sempre sonhei fazer. Foi tudo muito rápido. A parte da família tem sido muito difícil. Tenho três filhas e passo muito tempo fora de casa.
Continuas ligado ao imobiliário?
Felizmente, continua tudo a correr bem. Dá para conciliar.
Sempre tiveste ligação a essa área?
Não, começou quando deixei de jogar profissionalmente. Quando a seleção de Sevens saiu do Circuito Mundial, entrei para esta área.
É comum vermos atletas seniores a treinarem equipas dentro do mesmo clube, nomeadamente equipas de formação. Jogar no Direito e treinar o Sporting não é algo frequente…
Quando voltei de França, ainda cheguei a treinar os Sub-16, mas como passava muito tempo fora com a Seleção, acabava por ir poucas vezes aos treinos dos miúdos. Depois, já em final de carreira, fui convidado para treinar o Sporting e elas treinavam duas vezes por semana. Eu treinava segunda, terça e quinta no Direito e às quartas e sextas treinava as miúdas. Acabava por conseguir conciliar. Eu jogava ao sábado e elas jogavam ao domingo. Não havia conflito de interesses.
Fazem falta clubes de renome na modalidade?
Sem dúvida. No feminino, as equipas mais fortes são o Sporting e o Benfica. É uma realidade boa. É pena o FC Porto, por exemplo, não ter râguebi, nem masculino, nem feminino. O Benfica no ano passado foi à meia-final [da Divisão de Honra, no masculino] e acho que está a investir muito e bem. É pena ver o Sporting não ter uma equipa tão forte, porque era benéfico para a modalidade. Os Lusitanos [equipa da federação composta por jogadores que jogam exclusivamente em Portugal] continuam a jogar [a Rugby Super Cup] e, se calhar, fazia mais sentido ser uma equipa como o Benfica que no futebol é uma marca muito grande. É mais fácil ter patrocinadores do que os Lusitanos.
Que raio-X fazes à Seleção de XV que vai estar no Mundial em França?
Comparativamente com a minha Seleção em 2007, acho que esta Seleção é bem melhor. Também é verdade que tem melhores condições e tem mais jogadores profissionais. Já há muitos portugueses a jogar lá fora. Do XV titular, 80% joga lá fora. É uma equipa muito profissional e isso é benéfico para a Seleção. Falando dos três quartos, acho que é uma Seleção incrível. Temos dois jogadores por posição e isso é brutal. Na minha altura, fui ao Mundial e joguei os jogos todos. Hoje em dia, se calhar não vai acontecer a mesma coisa, porque a Seleção tem jogadores muito bons. Em termos de avançados não têm tantas opções, mas três quartos é incrível. Adoro ver Portugal, acho que jogam muito melhor do que a minha Seleção jogava.
A quantidade de três quartos também diz muito daquilo que é o atleta português em termos de estatura física?
Se estes jogadores estivessem a treinar connosco nos Sevens, provavelmente tínhamos sido campeões da Europa e voltávamos ao Circuito Mundial. Este ano [nos Sevens] ficámos em quarto no Europeu, atrás da Irlanda, da Grã-Bretanha e da Espanha. A verdade é que jogámos sem os melhores jogadores portugueses. Na minha altura, quando jogávamos no Circuito Mundial, os melhores jogadores jogavam XV e Sevens. Joguei três Mundiais de Sevens e um Mundial de XV, fazia as duas coisas. Lembro-me de estar na Geórgia, voltar e ir quase diretamente para Hong Kong. Hoje em dia, isso não acontece. O foco esteve todo no Mundial de XV e ainda bem, mas gostava de ver sete, dez ou 12 dos jogadores que vão agora ao Mundial de XV estarem connosco nos Sevens.
Europeu esse que valia a qualificação para os Jogos Olímpicos…
O primeiro, a Irlanda, foi diretamente. A Grã-Bretanha e a Espanha vão jogar um torneio de qualificação. Gostávamos de ter tido os melhores jogadores, mas a verdade é que eles estavam em preparação para o Mundial de XV. Foi pena, era uma boa oportunidade para tentarmos ir aos Jogos Olímpicos. As fichas estão todas no XV, mas os jogadores portugueses são muito talhados para os Sevens, porque têm muita velocidade e muita técnica. Na minha altura ganhei à África do Sul, ganhei à Austrália, ganhei à Inglaterra, ganhei à França, só não ganhei às Fiji e empatámos uma vez com a Nova Zelândia. Isso no XV é impensável. Nunca na vida vamos ganhar à África do Sul, à Austrália ou à Inglaterra. Por isso, é mais fácil arranjar jogadores para jogar Sevens do que 30 jogadores para ir jogar râguebi de XV. A nossa fisionomia não é grande. Somos rápidos e bons tecnicamente, mas não temos aqueles jogadores de dois metros, pilares de 130 kg.
A qualificação para o Mundial de XV foi bastante emocionante e conseguida no último instante. Como é que viveste de fora esse momento?
Vivi como todos os portugueses que gostam de râguebi. Foi surreal. Por acaso, estava de férias na Madeira e estava a ver o jogo com má Internet, stressadíssimo. A minha família a passear e eu a ver o jogo cheio de nervos. Foi incrível. Eles mereciam. É uma Seleção com muito talento. É verdade que tivemos sorte, mas estamos lá e isso é que interessa.
Que expectativas tens para a participação portuguesa?
Têm que ter mais expectativas do que nós tínhamos em 2007. Em 2007, o nosso objetivo era ganhar à Roménia. Infelizmente, foi o último jogo e já tínhamos várias lesões. Não estávamos habituados àquele andamento e perdemos. Acabámos por não ganhar nenhum jogo. O objetivo desta Seleção tem que ser pelo menos tentar ganhar um jogo, se calhar, à Geórgia. Tem que ser jogo a jogo. Estou curioso para ver. É um grupo engraçado.
Curiosamente, há filhos de jogadores de 2007 a jogarem na atual Seleção. Trata-se de uma espécie de passagem de testemunho…
Há fotografias do filho do Miguel Portela, o Jerónimo, connosco em 2007 e era um puto. Hoje em dia, está ali a jogar…
Foi com vocês que nasceu a ideia do espírito dos Lobos. Em que é que isso consistia?
A alcunha vem dos Sevens. Sendo uma família, sendo uma alcateia, ficámos os Lobos. Mas isso surge muito antes do Mundial de 2007. O nosso grupo era muito unido e isso foi importantíssimo. Em 2004, o Tomaz Morais [selecionador nacional] meteu-nos na cabeça que era possível [ir ao Mundial] e a verdade é que todos acreditavam. Hoje em dia, há mais jogadores naturalizados do que havia antes. Na nossa altura, foram ao Mundial de 2007 três jogadores que jogavam em França.
No Mundial de 2007 jogaram contra a Escócia, a Nova Zelândia, a Itália e a Roménia. Houve um sentimento especial no jogo contra a Nova Zelândia apesar do resultado (108-13)?
Quando nos qualificámos, o primeiro pensamento foi que íamos jogar contra a Nova Zelândia. Quem gosta de râguebi gosta de ver a Nova Zelândia. Vermos o haka à nossa frente foi um momento histórico.
O que é que se sente naquele momento?
Foi tudo muito rápido. Acabámos de cantar o nosso hino, que é a coisa mais importante. Íamos jogar contra os melhores do mundo, por isso, o sentimento era incrível. De repente, ia começar o haka. São 30 segundos, um minuto de haka. Nem sabes para quem é que deves olhar. É sempre bom ter uma fotografia em frente ao haka.
A ideia da intimidação resulta?
Acho que não. Gostava de ter o haka no iPod para me motivar. Estar a ver aquilo à minha frente não me intimidou, só me deu mais vontade.
O resultado acabou por ser pesado…
O objetivo era não levarmos mais de 100 pontos e marcarmos um ensaio. Marcámos um ensaio, marcámos um drop e já foi bom. Na terceira parte, os nossos não convocados jogaram um jogo de futebol contra a Nova Zelândia e aí ganhámos 3-1. Jogou o Dan Carter, jogou o Richie McCaw, eram só craques no râguebi, no futebol, nós somos melhores.
Tens mais histórias caricatas das terceiras partes desses jogos?
Essa com a Nova Zelândia foi a mais especial. Eles foram ao nosso balneário beber uma cerveja connosco e tirar fotografias. Essa memória fica para sempre, porque estávamos ali com os nossos ídolos. Houve pessoas que pediram autógrafos e eles disseram que não davam, porque também estávamos no Mundial. Mas trocámos camisolas. Ficámos uma hora à conversa. Explicámos que 80% dos nossos jogadores eram amadores e eles estavam estupefactos a dar-nos os parabéns.
Depois disso, a ideia seria capitalizar a vossa presença no Mundial para captar mais pessoas para a modalidade. Esse objetivo foi conseguido?
Isso foi. A seguir ao Mundial de 2007, houve um boom incrível de crianças a começar a jogar râguebi. Houve jogadores da atual seleção que começaram a jogar nessa altura. Foi importantíssimo. Os clubes estavam a abarrotar de miúdos. Cada escalão tinha três equipas. Começou a haver mais apoios e isso aí é que não foi tão bem capitalizado. Devia ter sido uma coisa pensada a longo prazo. Éramos inexperientes. Desta vez, é o nosso segundo Mundial, vamos ver… Vamos ter mais apoios. Agora, é dar mais condições aos jogadores.
O próximo passo é a profissionalização?
Em Portugal, acho difícil.
Mesmo a longo prazo?
Sim, porque o râguebi continua a ser amador, os clubes têm poucos apoios. Portugal é muito ligado ao futebol e para as outras modalidades é mais difícil. Os clubes fazem o esforço de trazerem jogadores de fora para melhorar o campeonato, mas profissionalismo no XV, acho que vai ser muito difícil. Ou aparece alguém que gosta muito de râguebi e apoia o râguebi nacional ou acho que vai ser muito difícil. Não somos um país em que o râguebi seja muito conhecido.
Que condições encontraste em França para poderes ser, numa primeira fase, semi-profissional, e, numa segunda, profissional?
Fui para França com 17 anos. Foi um choque. Em Portugal, estudava e jogava râguebi três vezes por semana e, de repente, fui para o centro de formação do Brive, que estava na Primeira Divisão na altura. Morava num prédio em que tínhamos dez apartamentos, cada um com um jogador, e treinava todos os dias duas vezes. Saía das aulas à hora de almoço para ir fazer ginásio ao clube. Para mim, foi bom, porque me fez evoluir. Tínhamos dez jogadores no centro de formação, havia mais cinco que estavam em Marcoussis com a seleção francesa e que só treinavam à sexta-feira com o clube e jogavam. Era totalmente diferente e nós éramos juniores. Os jogadores, sendo profissionais, eram melhores. Isso foi importante para mim. Acho que é muito difícil haver profissionalismo no râguebi em Portugal, mas a verdade é que em Espanha, aqui ao lado, o campeonato é completamente profissional e os Sevens têm um orçamento à parte para jogarem no Circuito Mundial.