À primeira vista, parecia ser uma carteira de comprimidos normal, mas bastou virá-la ao contrário para perceber que não. A folha de alumínio no verso não tinha o nome do medicamento, nem do fabricante, nem o lote do produto, nem sequer a data de validade. Não tinha absolutamente nada escrito. E como não vinha dentro de uma caixa de cartão, também não havia nada que permitisse identificar de que produto se tratava ou para que fim seria usado. Só o destinatário sabia o que tinha comprado, mas esse nunca chegou a ver a encomenda — ficou retida na alfândega para ser destruída.
Claro que o remetente também sabia o que tinha enviado, mas a esse é mais difícil chegar. Mesmo que a compra tenha sido feita numa página de vendas online, o envio é feito a título particular, com uma morada de origem que, grande parte das vezes, nem sequer é real. E mais: a embalagem vem completamente descaracterizada — afinal, ninguém quer receber uma encomenda no correio que denuncie que comprou medicamentos para a disfunção erétil, como acontece com frequência.
Sem nenhum elemento que permita saber em que loja virtual foi comprado, também não há muito que as autoridades possam fazer. E mesmo que se quisesse identificar e encerrar todos os sites que vendem medicamentos contrafeitos ou ilegais, depressa surgiriam outros para ocupar os lugares deixados vagos.
À preocupação com este tipo de vendas online, as autoridades de saúde somam o problema dos medicamentos que circulam entre familiares e amigos, que, num ato de boa-fé, enviam por correio os fármacos pedidos, numa verdadeira rede paralela. Para quem faz a encomenda, o desejo é só um: tomar os medicamentos que sempre tomou, porque, supostamente, os que se vendem em Portugal não fazem o efeito pretendido. Parece (e muitas vezes é) um envio inocente, mas os riscos estão quase ao mesmo nível de um medicamento adulterado.
Legal, ilegal ou falsificado, o risco do envio por correio é sempre o mesmo: que as condições do transporte (ou a falta delas) alterem os produtos. Um serviço que é feito para enviar roupa, livros ou equipamentos não é adequado para enviar medicamentos que precisam de se manter com uma humidade e uma temperatura controladas. Quem se arrisca a tomar alguma coisa que chegou pelo correio, não tem garantias de que o produto mantenha a qualidade original, mesmo que esteja dentro do prazo de validade. E este é o primeiro alerta do Infarmed — Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde.
Depois, é preciso ter em consideração que muitos dos medicamentos encomendados online, ou não têm autorização de comercialização no país de destino — como muitos medicamentos autênticos na Índia que são ilegais na Europa —, ou estão adulterados (têm fármacos a mais ou a menos, são uma mistura de fármacos não discriminada ou estão contaminados). Usar estes produtos acarreta grandes riscos para a saúde, desde a ausência de tratamento, a incapacidade grave ou mesmo a morte. Mas o Infarmed deixa ainda outros alertas sobre a compra de medicamentos online: não há garantias de que os dados pessoais do cliente estejam protegidos, nem de que o produto chegue a casa — o vendedor pode não fazer o envio ou a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pode reter o produto na alfândega.
Nada disto é novo para o Infarmed ou para a AT. Desde 2009 que colaboram com a Interpol numa operação que envolve atualmente mais de 100 países. Só este ano — e só numa semana — a Operação Pangea apreendeu 500 toneladas de medicamentos ilícitos.
Medicamentos para a disfunção erétil entre os mais procurados
Não é que não se faça normalmente, mas, na semana da operação Pangea, não há poupança de esforços. A Autoridade Tributária e Aduaneira reforça as suas equipas e ainda conta com a ajuda dos inspetores do Infarmed, que deixam os gabinetes e as análises feitas ao computador e juntam-se às equipas que estão a abrir as embalagens suspeitas no terreno — que é como quem diz, nas alfândegas.
A primeira etapa é verificar a informação escrita que acompanha as encomendas. É suposto que o remetente declare o conteúdo, mas nem sempre o faz ou não o faz corretamente. “É como declarar um produto metálico, quando na verdade se devia deixar claro que é um dispositivo médico”, conta, ao Observador, “Joaquim”, um inspetor do Infarmed que, tendo em conta o trabalho que faz, prefere não divulgar a sua identidade. E é por esta informação escrita que começa a seleção da AT sobre o que se deve abrir ou não.
A experiência dos fiscais também ajuda a reconhecer rapidamente as artimanhas, a detetar os pacotes suspeitos ou a identificar as origens dos produtos que merecem ser analisadas com mais pormenor. Com as equipas reforçadas, aumenta-se o número de encomendas a abrir — com todos os recursos no terreno, tudo decorre mais depressa. Tão bem engrenado está o processo que, durante a operação internacional, até há margem para se abrirem alguns pacotes que, numa situação normal, não estariam na seleção dos mais suspeitos. É assim que, às vezes, se encontram coisas inesperadas e se passa a ter mais atenção a um novo pormenor. Como o caso do casaco que tinha os bolsos cheios de medicamentos.
Luvas calçadas e muito cuidado a abrir os embrulhos, conta Joaquim, porque nunca se sabe o que vem dentro de um pacote. “Às vezes, os medicamentos vêm no meio da roupa suja.” Outras vezes vêm entre frascos mal acondicionados que se partem ou vertem durante o transporte. Podem até vir escondidos no meio de comida. Com frequência, não trazem qualquer embalagem, só as carteiras dos medicamentos soltas. Às vezes, nem as carteiras completas são enviadas — se a pessoa encomendou quatro comprimidos, são os quatro que vai receber. E nestas carteiras de comprimidos cortadas, já não se tem referência do lote, nem da validade — isto se existiam originalmente. “Será que as pessoas tomam estas coisas mesmo assim?”, pergunta Joaquim, numa mistura de preocupação com incredulidade.
Se tomam, é difícil saber, porque, na maior parte dos casos, não há contacto com o destinatário, mas, muito provavelmente, continuam a comprar, a julgar pelos números das operações internacionais: só nos últimos três anos, foram apreendidas cerca de 50 milhões de unidades de medicamentos ilegais (que não têm autorização de venda no país onde foram apreendidos) ou falsificados. Também nestes últimos três anos, entre anúncios suspensos nas redes sociais e sites encerrados, foram mais de 15 mil os alvos da Pangea. O que até nem parece muito, quando comparado com os registos de 2014: 22.800 anúncios removidos das redes sociais e 11.800 sites encerrados. “Se achamos que vamos resolver o problema fechando os sites todos? Não, não vamos”, diz ao Observador Luís Sande e Silva, diretor da Unidade de Inspeção do Infarmed. Por isso a autoridade portuguesa tem apostado nas campanhas de informação, expondo os riscos e alertando para uma cultura de segurança e de proteção da saúde.
Entre os medicamentos mais frequentes nas apreensões, a nível internacional, estão os que se destinam à disfunção erétil, os medicamentos oncológicos e os anti-infecciosos (contra a malária ou contra o VIH, por exemplo). Mas a verdade é que se pode encontrar um pouco de tudo, desde dietéticos a esteróides anabolizantes (como os derivados da testosterona), de medicamentos para a dor a anti-epiléticos, de fármacos para a pressão arterial a xaropes para a tosse. O preço pode ser um dos motivos. Outro, a facilidade de acesso.
Em Portugal, os medicamentos apreendidos mais comuns são para a disfunção erétil e os psicofármacos. Luís Sande e Silva explica que a vergonha pode ser o principal motivo. Quem precisa destes medicamentos pode não querer revelar os seus problemas ao médico e não quer recolher a prescrição pessoalmente na farmácia. Ainda que, para isso, o Infarmed tenha uma solução: há farmácias portuguesas autorizadas a fazer entregas domiciliárias. A pessoa não expõe publicamente o seu problema ao balcão, mas também não arrisca compras não certificadas online.
Outro grupo de medicamentos intercetados são os analgésicos e, neste caso, o motivo pode ser o preço. “Mas não percebo porque é que se compra paracetamol online”, diz o diretor da Unidade de Inspeção. Por pouco menos de dois euros, é possível comprar uma embalagem com 18 comprimidos.
Em Portugal não é tão comum encontrar, entre as apreensões, medicamentos para o tratamento do cancro como noutros países — talvez porque, nesses locais, o acesso a tratamentos legítimos e seguros seja mais difícil do que por cá, ou porque, para os portugueses, há áreas da saúde em que não vale a pena arriscar. Ainda assim, Luís Sande e Silva lembra que, quando se trata de um medicamento inovador (ou não), que não exista em Portugal, existe um mecanismo legal para importar esses fármacos em segurança. Cabe ao médico fazer o pedido de autorização especial ao Infarmed.
Os esteróides anabolizantes, usados sobretudo por desportistas para aumentar os músculos e diminuir a gordura corporal, também estão entre os fármacos mais apreendidos. Como se não bastassem os riscos que as pessoas correm por tomarem doses 50 ou 100 vezes superiores às indicadas para fins terapêuticos, ainda agravam a situação ao recorrerem a produtos potencialmente adulterados. E Portugal não é só um consumidor, também é um produtor — ou, pelo menos, era até 2016, quando a Polícia Judiciária desmantelou cinco laboratórios clandestinos.
As toneladas de esteroides anabolizantes que entraram em Espanha vindas de Portugal, em 2012, deram o alerta. Em colaboração com a Guardia Civil espanhola, o Infarmed e a Autoridade Antidopagem, a Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ conseguiu desmantelar seis redes de fabrico e comercialização de esteroides anabolizantes. Nas 34 buscas efetuadas durante a operação Underground Pharma, foram apreendidos 750 mil comprimidos e 50 mil ampolas. Como resultado da operação, 20 pessoas foram constituídas arguidas, mas apenas três acabaram por ser acusadas pelo Departamento de Investigação e Ação Penal, noticiou a Visão. É que, em Portugal, só é crime vender a atletas de alta competição — ainda que a maior parte do material apreendido se destinasse aos ginásios de musculação.
Milhões de unidades ilegais apanhadas em apenas uma semana
Nas encomendas que a Autoridade Tributária seleciona durante as operações de fiscalização pode vir de tudo um pouco. As que trazem fármacos também podem trazer equipamentos eletrónicos não declarados, por exemplo. Ao Infarmed interessam apenas os medicamentos e dispositivos médicos ou os produtos que possam ter sido adulterados com moléculas terapêuticas, como suplementos alimentares para dietas que, por vezes, têm laxantes. Os suplementos alimentares não adulterados, mesmo que não tenham autorização para serem vendidos em Portugal, não fazem parte da esfera de competências da autoridade do medicamento.
O foco da semana da operação Pangea, que acontece todos os anos, são os medicamentos ilícitos e todas as atividades associadas, desde as páginas de compra online, às fábricas, armazéns e pontos de venda. Em Portugal, o trabalho é feito sobretudo nas alfândegas, porque é relativamente difícil os medicamentos não autorizados entrarem no circuito legal, tendo em conta o contexto nacional — ou seja, irem parar às farmácias.
A operação Pangea teve início em 2008, com 10 países, e em cinco anos chegou aos 100. Portugal está envolvido desde a segunda edição, em 2009, e este ano juntou-se a outros 115 países. Foram estas ações internacionais que alertaram o Infarmed e a Autoridade Tributária e Aduaneira para a necessidade de fazerem fiscalizações o ano inteiro. E foi assim que, em 2011, nasceu um protocolo de cooperação entre as duas entidades (mas já lá vamos).
Nos vários países, e durante esta semana, as autoridades reguladoras dos medicamentos aliam-se às alfândegas. Em alguns deles, como Espanha ou Irlanda, as forças policiais também estão presentes, porque, ali, o comércio e a compra online de medicamentos ilegais ou falsificados são crime. Como em Portugal se trata, apenas, de uma contraordenação, as forças policiais não são envolvidas à partida.
Esta situação pode, porém, estar para a mudar. “O facto de Portugal ter assinado a convenção Medicrime [em 2011] e de a ter ratificado [em novembro de 2018] significa que vamos ter de criminalizar este tipo de práticas — comércio presencial e online de medicamentos ilegais e falsificados”, diz Luís Sande e Silva, diretor da Unidade de Inspeção do Infarmed. Uma medida vista com bons olhos pela autoridade nacional do medicamento que “tem defendido que se proteja melhor os cidadãos”.
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Uma fábrica legal que produza medicamentos ilegais arrisca-se a perder a autorização e certificado de boas práticas de fabrico, que é válido para toda a Europa. Luís Sande e Silva garante que a fiscalização aos fabricantes é tão apertada que não tem conhecimento de nenhum que tenha pisado o risco.
O objetivo da convenção é criar uma legislação internacional mais rígida — e vinculativa — para a contrafação de produtos médicos, e atos ilícitos semelhantes, que colocam em risco a vida das pessoas e cuja penalização é, muitas vezes, uma sanção leve — como, aliás, acontece em Portugal. Uma fábrica ilegal, ou uma fábrica legal que produz medicamentos ilegais, não está, à luz da legislação portuguesa, a praticar um crime. O máximo que o Infarmed pode fazer é aplicar uma contraordenação, que resulta na apreensão dos medicamentos ou no encerramento da fábrica. Mas se se tratar de uma rede de criminalidade organizada, “o Infarmed não tem capacidade para desmantelar a operação”, lamenta Luís Sande e Silva. Ainda assim, a operação Pangea conseguiu, só este ano, interromper a atividade de 33 grupos de crime organizado a nível internacional.
Em Portugal existem apenas duas situações que podem ser consideradas crime. Uma está relacionada com a utilização como dopantes no desporto, mas, neste caso, como refere o diretor da Unidade de Inspeção, “a lei do doping está mais focada na verdade desportiva do que na proteção da saúde”. A outra situação está relacionada com a corrupção de substâncias alimentares ou medicinais, mas só se considera que um agente praticou um crime se houver danos na saúde de uma pessoa e se os danos forem atribuídos a essa substância. Ora, se já é difícil demonstrar que um desses produtos teve um efeito imediato (agudo), pior será demonstrar um efeito que resultou da utilização prolongada (crónico).
Este tipo de situações estão identificadas pelo Conselho da Europa que, embora reconheça que os Estados-membros têm tentado combater o problema, assume que as práticas ilícitas continuam a compensar: os retornos financeiros são altos e o risco de se ser apanhado é baixo, especialmente quando estamos a falar do comércio online. Luís Sande e Silva identifica pelos menos dois fatores que tornam o problema da venda ilegal online de difícil resolução: as pessoas não denunciam porque não querem assumir que compraram no mercado ilegal e fechar páginas de venda na internet é quase um esforço inglório, porque assim que se fecha uma, outras surgem ou crescem no lugar daquela.
Além dos riscos para o consumidor direto, aquele que fez a compra, existe, em alguns países, um risco alargado de estes medicamentos ilegais e falsificados entrarem no circuito normal do medicamento e chegarem às farmácias. Em 2015, na Indonésia, as autoridades descobriram um armazém que alterava o prazo de validade ou a quantidade de substância ativa nas embalagens contrafeitas dos medicamentos com data de validade expirada e que não tinham sido registados no armazém. Daqui, os fármacos seguiam novamente para as farmácias e eram vendidos aos consumidores.
Entrar assim no mercado europeu é mais difícil, mas também acontece. Na Operação Pangea de 2015, foi descoberta uma loja no Reino Unido que aparentava ser uma farmácia normal, mas, de facto, não tinha licença e estava a vender medicamentos ilícitos online. “No nosso país não tem sido registada entrada de medicamentos ilegais ou falsificados no circuito legal”, garante Luís Sande e Silva. Mas não se pode baixar os braços: “Em Portugal o circuito é forte e seguro, mas não é inviolável, porque nada é inviolável”, acrescenta. As farmácias compram aos distribuidores que conhecem e os distribuidores compram aos detentores de autorização de introdução no mercado (AIM). “E, até agora, não houve tentação para isto [os distribuidores fazerem entrar medicamentos ilegais ou falsificados nas farmácias]. Mas nunca podemos considerar a situação resolvida. Temos de estar sempre vigilantes.”
E a vigilância exige-se, por exemplo, em relação aos furtos de medicamentos — que também acontecem em Portugal. É que as embalagens de cartão originais podem servir para camuflar medicamentos ilegais ou falsificados no interior e conseguir que eles entrem em mercados legais, com sistemas de verificação mais frágeis, como em África, acrescenta o diretor.
Para minimizar o risco de entrada de medicamentos ilícitos no circuito normal, vai entrar em vigor um regulamento europeu, a 9 de fevereiro, que prevê a implementação de dispositivos de segurança nas embalagens de fármacos para uso humano. Por um lado, com a prevenção da adulteração das embalagens ou com uma forma fácil de perceber se o recipiente foi violado. Por outro, utilizando um identificador único do medicamento, que permite seguir cada embalagem individual do fabricante ao consumidor. Cada farmácia vai ter de desativar esse dispositivo de segurança, de cada vez que vender uma embalagem. Se o medicamento for válido e seguro, aparecerá um símbolo verde. Se tiver sido adulterado, se não for legal ou se estiver fora de validade, aparecerá um sinal de alerta, esclarece Luís Sande e Silva.
O sistema dos dispositivos de segurança e o repositório que tem toda a informação sobre os identificadores únicos vai ser montado por um consórcio de entidades privadas — com as associações das indústrias farmacêuticas, distribuidores e farmácias — e fiscalizado pelo Infarmed. Portugal, à semelhança de outros países europeus, teve cerca de três anos para criar as condições necessárias para implementar este sistema, mas os profissionais do setor receiam não estar preparados, conforme expressaram no IV Seminário de Saúde da GS1 Portugal, em julho deste ano. Entre as principais dificuldades sentidas estão a adaptação técnica e a formação dos profissionais, sem falar no facto de os mais de seis mil laboratórios farmacêuticos europeus terem de aplicar estas medidas aos mais de 10 mil milhões de embalagens de medicamentos sujeitos a receita médica que produzem todos os anos.
Infarmed e Autoridade Tributária trabalham juntos o ano inteiro
A semana da Operação Pangea é o único momento em que os inspetores do Infarmed estão presentes nas alfândegas, mas não é o único período em que trabalham em cooperação com a Autoridade Tributária. Essa parceria mantém-se todo o ano, à distância de um email. E desde 2011 que é assim. Aquilo que observaram na primeira semana que trabalharam em conjunto na operação internacional, deixou-lhes preocupações suficientes para criarem uma parceria e manterem a fiscalização ao longo do ano.
É certo que as alfândegas não têm capacidade para verificar todas as encomendas que lhes passam pelas mãos, mas o método de seleção que utilizam, baseado em indicadores de risco, já lhes permitiu controlar, só no primeiro semestre deste ano, mais de 237 mil encomendas, das quais 212 mil acabaram por ser apreendidas. Para estas encomendas foram emitidos 4.229 pareceres pelo Infarmed (um por cada tipo de medicamento, em cada encomenda diferente).
O que é um medicamento?
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O Estatuto do Medicamento define medicamento como “toda a substância ou associação de substâncias apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas de doenças em seres humanos ou dos seus sintomas ou que possa ser utilizada ou administrada no ser humano com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou, exercendo uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica, a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas”. Mas não é simples identificar o que pode ser considerado um medicamento, diz Luís Sande e Silva. “Às vezes precisamos de um parecer técnico de um laboratório para ver é mesmo um medicamento ou não.”
Todos os dias, a Autoridade Tributária e Aduaneira envia um ficheiro ao Infarmed onde aparecem listados todos os produtos que suspeitam poder tratar-se de um medicamento. Além da designação do produto, que pode variar quase de país para país, são listados os locais de origem, o destinatário da encomenda, a quantidade e, às vezes, fotografias da embalagem e do conteúdo. As listas diárias podem ter uma ou duas dezenas de produtos, mas, enquanto falava com o Observador, Luís Sande e Silva abriu uma lista que tinha 324 linhas (e para cada uma delas seria emitido um parecer).
No Infarmed, verifica-se cada um dos elementos da lista, mas nem sempre é preciso enviar os produtos para análise laboratorial. Aliás, isso raramente acontece. Para começar, a autoridade tem uma base de dados que lhe permite verificar se aqueles produtos já foram fiscalizados anteriormente e que parecer foi dado sobre eles. Depois, existem outras bases de dados (inclusivamente internacionais) e até pesquisas na internet que permitem obter mais informações sobre o conteúdo da embalagem em causa.
Se não restarem dúvidas de que é uma falsificação, ou até se o risco de ser falsificado for grande, as embalagens são apreendidas e destruídas. Se o medicamento for apenas ilegal, é devolvido ao remetente — porque ser ilegal não significa que seja falsificado ou que possa colocar a vida das pessoas em risco, apenas que não tem autorização de entrada no país de destino. Além disso, “a destruição, que é feita pela Valormed, tem um custo que é preciso gerir”, acrescenta o diretor da Unidade de Inspeção do Infarmed, para justificar porque é que não se destroem mais coisas. Outra hipótese possível é não dar um parecer e explicar que o produto em causa não faz parte da esfera de competência do Infarmed, como um produto alimentar que não tenha sido adulterado com medicamentos, por exemplo. O que nunca acontece é um parecer favorável ao desalfandegamento, ou seja, autorização para que o medicamento chegue ao destinatário, porque, sem conhecer as condições de transporte, não é possível garantir que o medicamento ainda tem qualidade suficiente para ser usado — mesmo que até fosse, de facto, simplesmente paracetamol.
Um dos pontos da lista que pode chamar a atenção dos inspetores são os destinatários frequentes, mas a sua fiscalização foge às competências da autoridade do medicamento. Para alguns tipos de produtos, e caso o objetivo seja colocá-los em estabelecimentos comerciais, a ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) pode ser alertada. Para outros, quando há suspeitas de que possam ser usados como dopantes de atletas profissionais, o aviso segue para a Polícia Judiciária.
Laboratórios evoluem para acompanhar os falsificadores
Quando analisam as listas, os inspetores do Infarmed também podem decidir que um determinado produto deve ser retido para análise laboratorial. Por exemplo, se o nome, a descrição e a fotografia do produto fazem suspeitar que o suplemento alimentar possa ter um fármaco, mas não há forma de ter a certeza sem a análise laboratorial (isto porque nunca foi analisado antes e não está nas bases de dados). Ou quando não tem imagens e a informação não permite perceber do que se trata, mas o conteúdo tem, por exemplo, uma ampola e uma seringa.
Outra das razões para se pedirem análises laboratoriais são as campanhas específicas em que se quer analisar o que é falsificado ou não dentro de uma categoria de produtos. A informação fica depois numa base de dados e reduz-se a necessidade de voltar a analisar produtos iguais. Até porque a informação é partilhada entre laboratórios europeus, o que alarga a quantidade de dados a que os inspetores portugueses podem ter acesso.
A opção de não se enviarem medicamentos ilegais para análise também ajuda a reduzir o trabalho e as despesas do laboratório. Isto porque, se o fármaco for ilegal — ou seja, se não tem sequer autorização para ser vendido no país —, nem vale a pena ver se é falsificado ou não (exceto no caso das campanhas específicas já referidas).
Desde que iniciou a parceria com a Autoridade Tributária e Aduaneira, o laboratório do Infarmed já analisou 500 amostras suspeitas, diz ao Observador Maria João Portela, diretora da Direção de Comprovação da Qualidade (DCQ). O foco está nos produtos que apresentam maior risco: segundo as tendências europeias, são os suplementos alimentares para melhorar o desempenho sexual ou para dietas, as hormonas de crescimento, os esteroides anabolizantes ou os medicamentos suspeitos de terem estatinas (para controlar o colesterol) ou anti-inflamatórios.
“Os falsificadores são cada vez mais criativos e os laboratórios tiveram de desenvolver novas técnicas de análise”, conta Maria João Portela. Aliás, têm de estar constantemente a melhorar e a adaptar as técnicas para conseguirem detetar novas moléculas ilícitas. À medida que as moléculas vão sendo identificadas, os falsificadores criam outras, com pequenas alterações, para tentarem escapar à deteção. A diretora da DCQ reforça, mais uma vez, a importância de trabalharem em conjunto com os laboratórios europeus para fazerem frente às inovações do lado dos falsificadores.
E o que é que se pode considerar um medicamento contrafeito? Aqueles que anunciam moléculas com fins terapêuticos (princípios ativos) que afinal não estão presentes — o que significa que as pessoas acham que se estão a tratar, mas não estão; os que dizem ter uma concentração de princípio ativo, mas afinal têm outra, às vezes do dobro — o que coloca a vida das pessoas em risco; ou os que têm componentes ou misturas que não vêm indicadas nos rótulos. O problema, contudo, não são só as moléculas terapêuticas — o risco, às vezes, está no excipiente (uma substância inativa que compõe o resto do medicamento) — há casos em que, em vez de amido, foi usado gesso para fazer os comprimidos.
Algumas falsificações são tão grosseiras que em nada se assemelham ao original, mas há outras que conseguem reproduzir fielmente o aspeto da embalagem ou do produto, sendo mais difíceis de desmascarar. Um dos métodos, neste caso, pode ser fazer um ensaio de autenticidade, ou seja, comparar os resultados das análises com o que existe nas bases de dados das marcas legítimas e ver se se tratam dos mesmos compostos e na quantidade certa. Ainda que nem todas as situações sejam assim tão simples.
Muitos dos produtos fiscalizados como medicamentos, são, na sua origem, suplementos alimentares, que passaram a ser controlados pelo Infarmed por apresentarem moléculas terapêuticas. Um suplemento alimentar para o desempenho sexual que diga no rótulo que deve ser tomado uma hora antes das relações sexuais faz suspeitar da presença de sildenafil (o princípio ativo do Viagra), conta Maria João Portela. O que é, naturalmente, proibido. E se a análise não encontrar esta molécula, mas detetar algo diferente? É preciso continuar a procurar até se identificar a substância. Se houver várias moléculas desconhecidas misturadas, o processo torna-se ainda mais complicado.
Os produtos para emagrecimento são dos casos complexos. Como, muitas vezes, são uma mistura de plantas — que têm, elas próprias, princípios ativos, ainda que em quantidades mínimas —, a análise fica com muito ruído. É como tentar ouvir alguém a gritar “socorro” numa sala cheia de pessoas a falarem alto.
“Quem faz as adulterações não tem qualquer problema em associar os suplementos a vários medicamentos”, alerta a diretora da DCQ. E encontram-se laxantes, diuréticos e outras substâncias, tudo misturado e em quantidades que podem pôr em risco a vida das pessoas. Uma das substâncias muito frequente nos produtos de emagrecimento apreendidos durante operação Pangea deste ano foi sibutramina, uma molécula usada na perda de peso em pessoas obesas. O problema é que esta substância está proibida na Europa desde 2010, porque se verificou que aumenta o risco de problemas cardiovasculares graves, ultrapassando claramente os benefícios da sua utilização.
Infarmed encontra medicamentos ilegais para emagrecer à venda em site português
A base internacional que salvou as crianças paraguaias
Os medicamentos ilegais e falsificados incluem não só comprimidos e suplementos alimentares adulterados, mas também vacinas, meios de diagnóstico e xaropes. E, independentemente de onde sejam produzidos, podem chegar a qualquer parte do mundo. Foi o que aconteceu com um componente de um xarope para a tosse que acabou por matar 60 pessoas no Paquistão e que, mais tarde, foi detetado no Paraguai, como lembrou a Mosaic.
O princípio ativo — o dextrometorfano — é um derivado sintético da morfina e tinha sido produzido na Índia. Apesar de ser um antitússico eficaz, as pessoas que morreram no Paquistão, em 2012, usavam-no como uma droga recreativa. Aparentemente, não havia nada de errado com a molécula, que estava na quantidade indicada para o xarope, mas uma análise mais pormenorizada descobriu que estava contaminada com o levometorfano, um composto cinco vezes mais potente do que a morfina.
Este é apenas um dos exemplos de situações que têm chegado à Organização Mundial da Saúde (OMS) desde julho de 2013, quando foi implementado o sistema de monitorização dos medicamentos contrafeitos (GSMS) — mesmo a tempo de salvar 44 crianças no Paraguai que tinham tomado um xarope feito localmente. Quando consultaram o portal onde estão as denúncias de produtos médicos suspeitos, os investigadores perceberam que o dextrometorfano usado no xarope vinha do mesmo lote daquele que tinha provocado as mortes no Paquistão. As crianças receberam um antídoto e salvaram-se. O trabalho seguinte foi tentar recolher o produto de todos os locais no mundo para onde tinha sido distribuído.
Desde que foi criado, e até 2017, o sistema de monitorização da OMS registou 1.500 casos de situações em que a saúde das pessoas ficou comprometida pelo uso de medicamentos ilícitos, sobretudo contra a malária e antibióticos. A maior parte dos registos (42%) tem origem na região africana, mas as regiões da Europa (21%) e das Américas (21%) também têm contribuído para estes números — ainda que sejam claramente uma subrepresentação da realidade.
Portugal é uma das poucas excepções, na Europa, sem não qualquer caso registado. O Infarmed e a Ordem dos Médicos, também disseram ao Observador que não tinham conhecimento de doentes que tenham morrido ou tido problemas de saúde graves por causa de medicamentos ilegais ou falsificados (a Direção-Geral da Saúde não respondeu). Não quer dizer que não existam, apenas que não foram identificados como tal.
Não haja ilusões, não haverá país no mundo, por mais rígidas que sejam as suas regras, que não corra o risco de ter os seus cidadãos a tomarem medicamentos ilegais ou falsificados, como lembra a OMS. Se foram o auto-diagnóstico e a auto-medicação que escancararam as portas deste mercado paralelo, é, em grande parte, o difícil acesso à medicação nas regiões mais pobres, e com mais conflitos armados, que continua a alimentá-lo — ainda que não exclusivamente. O problema é que são precisamente aqueles que mais precisam que acabam por ter acesso aos piores produtos.
Uns estão fora de validade, outros foram feitos com tão poucas condições de higiene que estão contaminados com bactérias, cimento ou veneno para ratos, e outros ainda não têm nada daquilo que indicam, mas oferecem um cocktail potencialmente mortal. E quem mais os compra são os países de rendimento médio e baixo, onde um em cada 10 medicamentos são contrafeitos, segundo a estimativa da OMS.
A Organização Mundial da Saúde tem noção de que os números sobre medicamentos falsos e falsificados são apenas uma pequena representação da realidade e tudo o que pode apresentar são estimativas. Ainda assim, aproveita para alertar que entre 72 mil a 169 mil crianças podem morrer todos os anos de pneumonia por causa de antibióticos contrafeitos e que entre 64 mil e 158 mil pessoas podem morrer todos os anos, na África subsariana, por terem usado antimaláricos ilícitos, que não as trataram convenientemente.
Os medicamentos de fraca qualidade — com pouco ou nenhum princípio ativo — podem matar não só quem mais precisa deles como tornar-se um problema de saúde pública à escala global. Tomar um antibiótico ou um antiviral que não tem a devida concentração da molécula terapêutica é tão mau ou pior do que não cumprir a prescrição até ao fim. Em vez de matar todos os micróbios patogénicos, criam-se condições para alguns deles sobreviverem e se tornarem resistentes a esses fármacos. E já se sabe que, para vírus e bactérias, não existem fronteiras.
A verdade, porém, é que quem falsifica ou vende medicamentos destes tem pouca preocupação com os efeitos na saúde das outras pessoas. O que conta aqui é o lucro — e Natalia Daśko, da Faculdade de Direito e Administração da Universidade Nicolau Copérnico, em Toruń, citada pelo Science in Poland (do Ministério da Ciência e Ensino Superior polaco) é clara ao explicar porquê: “Estima-se que os lucros globais das vendas de medicamentos contrafeitos estejam entre os 150 e 200 mil milhões de euros por ano, o que faz desta atividade a mais lucrativa de todo o negócio da contrafação”.