E depois vieram os putos e os putos são implacáveis. Foi com um meme (criado por putos e partilhado até à exaustão por putos) que percebemos que a NBA tinha mudado, porque nos dias de hoje é sempre com um meme que percebemos que algo mudou. Não era um meme de um afundanço ou de um triplo de mais de sete metros – era de um homem adulto a chorar. Mais propriamente, Michael Jordan.
Durante anos Jordan fora o rosto da NBA e o seu símbolo (braço esticado para afundar, pernas abertas), ou a sua imagem a morder a língua, provocavam mais depressa a associação mental ao basquetebol que o próprio logo da NBA (que representa a silhueta de Jerry West, ex-jogador e ex-treinador dos Lakers). Depois alguém resolveu pegar na sua imagem a chorar – na sua introdução ao Hall of Fame da NBA – e o meme foi partilhado (possivelmente) por mais gente do que aquelas que viram Jordan jogar.
Os miúdos que começaram a usar o meme sempre que alguém era choninhas não faziam ideia de quem era aquele homem – e uma das figuras da cultura popular mais conhecidas desde os anos 80 fora reduzida a um bebé chorão. Jordan não era mais uma super-estrela, era um velhote choramingas. Não havia como escapar: LeBron era o rei, o rosto da NBA reconhecido por todos, mesmo que (entre quem segue mais o basquetebol do que os memes) ele nunca tenha escapado às comparações com Jordan, as quais inevitavelmente perderá aos olhos dos especialistas, mas que ganhará entre as gerações mais novas.
Pelo menos até Victor Wembanyama chegar à NBA, que (como sempre) está à procura dos melhores talentos. Até aqui nada de novo. Desde sempre a NBA esteve à procura dos melhores talentos. Mas, sendo a máquina de fazer dinheiro que é (ou em que lentamente se foi tornando), a NBA (e todo o carnaval mediático ao seu redor) está sempre à procura de estrelas – ao ponto de algumas já o serem antes sequer de atarem os sapatos e entrarem num pavilhão para um jogo da liga mais conhecida do mundo.
Não foi sempre assim – Dr. J, Kareem, todos eles se tornaram estrelas após anos e anos na NBA, com épocas sucessivas ao mais alto nível, num fenómeno que se pode apelidar de orgânico: tornaram-se estrelas porque as pessoas queriam saber mais sobre eles. Mas quando os Celtics de Larry Bird e os Lakers de Magic Johnson se revelaram (de longe) as duas melhores equipas da NBA, a organização não teve pejo em explorar o duelo individual entre os dois – até os jogos que disputaram na universidade eram relembrados para criar uma rivalidade simples (o branco sério trabalhador vs. o negro talentoso sempre a sorrir) que as pessoas (gente com dinheiro para gastar em bilhetes, subscrições de TV, t-shirts e sapatilhas) assimilassem facilmente.
Até que chegou Jordan e passou a haver uma super-estrela e uma estonteante máquina de marketing. De Jordan para cá a produção de estrelas não parou – e com LeBron chegou ao cúmulo. James já era uma super-estrela antes mesmo de chegar à NBA, com capas de revista e reportagens em telejornais e acordos de patrocínios quando ainda jogava no liceu (sim, no liceu). Entre Jordan e James só houve Kobe, uma figura mais controversa e um símbolo ainda do antigo basquetebol – do shooter contra o mundo, que lança de cinco metros ou finta toda a gente para acabar debaixo do cesto.
Enquanto produto, James já era uma nova era – com a máquina montada antes de ter de provar o seu valor, de modo a que a NBA tivesse a sua super-estrela global. Sendo que James, por mais que mudasse de equipa, nunca veio a ser tão dominador quanto Jordan e está agora em final da carreira – entretanto outras super-estrelas surgiram (Steph Curry, Giannis Antetokounmpo ou Luka Doncic), embora não tão super (em termos de reconhecimento e dinheiro gerado) quanto James.
E depois veio um puto, que parece ser implacável. Quer dizer, ainda não veio, ainda não chegou à NBA, mas já está a ser falado como o melhor jogador da NBA desde Antetokounmpo, talvez mesmo desde James, se calhar até desde Jordan: do alto dos seus 2,20 metros, Victor Wembanyama tem assistido a um carrossel de reportagens, relatórios de scouting e especiais de TV sobre o seu basquetebol quando ainda não foi sequer escolhido no draft, não vestiu uma camisola nem fez um jogo na liga americana.
O cinismo diz-nos que é assim que o capitalismo funciona: uma super-super-estrela chega ao fim, as outras super-estrelas não parecem vir a ser super-super-estrelas (o que torna a NBA mais equilibrada e entusiasmante mas é menos simples em termos de narrativa a vender ao público), de onde decorre que está na altura de se criar uma nova super-super-estrela, eventualmente com mais super antes de super.
Mas o mérito a quem o tem: a NBA não costuma falhar muito e o entusiasmo ao redor de Wembanyama é mais que justificado (mesmo que as comparações, por enquanto, não façam sentido): um jogador de 2,20 metros que tem a segurança em posse de um base, que lança (inclusive de três pontos) como um shooting guard (e dos bons), que defende como um poste de eleição e que finta e penetra como os melhores extremos não é uma raridade, “é um alien”, como qualificou Lebron James.
A simples co-existência de tantas qualidades num só jogador é uma improbabilidade estatística possivelmente menor que a de eu ganhar o Euromilhões (uma das grandes injustiças do nosso tempo, diga-se); enquanto que em termos de pura física, é quase bizarro que um jogador tão alto tenha tanta mobilidade, tanta versatilidade e um apuramento técnico tão gracioso – não é suposto que aos 2,20 metros se consiga fintar por debaixo das pernas para um lado e depois infletir para outro, dar um passo para trás e para o lado e disparar de três (com uma release imaculada), tudo isto em velocidade.
Giannis Antetokounmpo já era um freak por, com aquela altura e envergadura, não driblar muito mal, executar bem o EuroStep (ataque ao cesto, primeiro bem ao lado do defesa, movimento no sentido oposto, pé de apoio – o oposto ao primeiro – do outro lado do defesa) e ser capaz de passar com qualidade. Wembanyama ainda é só potencial – mas o potencial parece maior que o de Antetokounmpo.
Parece pelo que vimos – e o que vimos foram jogos de exibição em Las Vegas, que a NBA organizou para, obviamente, criar desde já ruído em torno do rapaz, um ano inteiro antes de ele entrar na liga. Isto porque provavelmente quase ninguém (tirando scouts e franceses) o viu a jogar pelos Metropolitans92, da Liga francesa. Mas houve tempo para os scouts o verem porque ele já cá anda há algum tempo.
Nascido a 4 de janeiro de 2004, Wembanyama começou a sua carreira profissional em outubro de 2019, com apenas 15 anos. Menos de um ano mais tarde, estreava-se na Liga francesa. Aos 17, marcou 14 pontos e fez dez ressaltos num jogo. Note-se: 17 anos, 14 pontos, dez ressaltos, num jogo da Liga francesa (sendo que os jogos das equipas europeias têm menos pontos que os da NBA). No Campeonato francês isto são números de grande jogador, que só alguém com condições únicas pode alcançar tão cedo.
Num dos jogos de exibição em Vegas, que opôs os Metropolitans92 aos Ignite, da G-League (uma espécie de 2ª Divisão da NBA, onde os clubes rodam jovens promessas como as equipas B do futebol) marcou 37 pontos, conseguindo sete de 11 triplos tentados, o que provocou uma quantidade inusitada de baba em scouts e nos executivos da NBA. O Ringer citava um, que dizia que Wembanyama não era só um talento geracional, capaz de alterar o percurso de uma equipa – era um talento com o poder de mudar a liga para sempre. Deus os abençoe, porque se há qualidade que os americanos têm é uma imensa capacidade de criarem one-liners que soam bem ao ouvido.
Tudo o que surge de novo no mundo tem de ser etiquetado – se é uma banda dizemos que soam como se os Velvet Underground tivessem um filho com os Belle and Sebastian e a criança fosse alimentada a anfetaminas (ou algo semelhante); no desporto, e no caso particular do jovem prodígio francês, ouvem-se coisas como “É um cruzamento entre Kevin Durant e Rudy Gobert”, mas as combinações são infindáveis – basta juntar os nomes de quaisquer dois jogadores em que um seja um atirador de eleição e outro tenha qualidades defensivas de um poste de topo. Não andará longe o momento em que alguém, desesperado por uma descrição que ainda não tenha sido feita (ou com jogadores que ainda não tenham sido mencionados) diga que o rapaz é o filho, criado em laboratório graças a engenharia genética, de Magic Johnson e Kareem Abdul-Jabbar.
Por estes dias toda a gente sabe que Wembanyama vai ser o número 1 do draft do ano que vem, sendo que tem sido o próprio Wembanyama a tentar diminuir a excitação em seu redor, lembrando que as comparações não fazem sentido, que ainda não jogou um jogo da NBA, que é só um miúdo, etc. Toda esta maturidade teve como resultado: excitar ainda mais a liga, porque a maturidade é uma qualidade rara (pelo menos entre executivos da liga e scouts e jornalistas).
Isto tem consequências – e por isto refiro-me a toda a gente saber quem vai ser o número 1 do draft – é que o NBA tem desenhado um sistema em que as piores equipas de um ano são as primeiras a escolher no draft. Não é tão simples como o último ser o primeiro escolher, há (no processo) uma dose de aleatoriedade, mas fazendo as contas sabemos que as quatro piores equipas este ano têm 14% de hipóteses de serem a primeira a escolher; tendo em conta que o presumível número 2 do draft, Scoot Henderson, é um base que recorda Allen Iverson, de repente perder jogos propositadamente para poder sacar um destes dois parece sensato, já que ficar nos quatro últimos dá quase 50% de chances de ser um dos dois primeiros a escolher jogadores no draft.
Como dizer? Isto é, de facto, capaz de alterar uma liga. Imaginem oito ou dez equipas que a dada altura percebem que não vão chegar aos playoffs e que tomam a decisão de perder o mais possível de modo a ficarem nos quatro últimos. É claro que já houve equipas ocasionalmente a fazer isto – no The Last Dance, o documentário sobre Jordan, ele recorda que, na primeira época, a dada altura não o queriam deixar jogar, para a equipa perder e ficar melhor posicionada do draft.
O mais provável é que todos os anos haja um par de equipas a rodar jogadores nos últimos 30 jogos, dizendo que estão a dar minutos aos miúdos, mas na realidade a ver se perdem uns jogos extra para se posicionarem para o draft do ano seguinte, na esperança de conseguirem uma estrela. Outra coisa completamente diferente é (como se tem especulado) ver um terço da liga a fazê-lo.
Se precisássemos de um medidor de histeria e grau de excitação em torno de um jogador, a quantidade de reportagens feitas sob o ângulo Quantas Equipas Vão Perder Propositadamente diz-nos que o mercúrio derreteu, passou o escalão-febre e já se apresta a deixar para trás o ponto de delírio.
Mas o delírio entende-se. Nos Metropolitans92, Wembanyama tem liberdade para pegar na bola no meio-campo defensivo e transportá-la e criar o seu próprio tiro (daí a qualidade de posse e drible). Ele ainda não está nos 40% de três pontos mas tem 18 anos – e com o seu tamanho é impossível parar-lhe o jumper (um lançamento em que salta na vertical), pelo que com treino atingirá essas percentagens. Ora, normalmente, quando um jogador de 2,20 metros está na linha de três pontos, a defesa arrisca que ele atire, porque assim tem mais homens a proteger o cesto; mas se um jogador desta altura lançar 40% de três, isso obriga quem defende a ir para a linha de três e abrir atrás.
Não sei se isto vai acontecer (embora seja provável), mas sei que perdi a conta ao número de treinadores e executivos da liga que afiram que se Wembanyama conseguir lançar 40% de três será imparável. Claro que tudo isto são projeções – algo que a NBA está habituada a fazer. Se fulano lança x de três pontos e y dos cinco metros e interceta z bolas com esta altura e idade, a que ponto chegará com uns anos de NBA?
https://www.youtube.com/watch?v=dw2oErX-QX4
Por enquanto Wembanyama é só potencial, pelo que cada um de nós, treinadores, scouts, executivos, fãs do jogo, projcta nele o que quer: a diferença que ele pode fazer numa equipa, o nível que pode vir a atingir, as receitas que pode trazer ou, no caso dos fãs, a alegria que poderá dar-nos ao vê-lo jogar.
E é neste exato ponto em que algo de maquinal (como a indústria de estrelas da NBA) se torna uma história bonita de um puto cheio de alegria a jogar, que dá alegria a quem o vê jogar. E é isso que amamos no basquetebol e é por este tipo de jogadores que esperamos a vida inteira. E se Wembanyama nunca for Magic ou Durant ou Gobert tem sempre a chance de ser Wembanyama.
A temporada de 2022/23 da NBA arranca esta madrugada de quarta-feira com o Boston Celtics-Philadelphia Sixers (00h30) e o Golden State Warriors-Los Angeles Lakers (3h)