(Este artigo foi originalmente publicado a 17 de novembro de 2016, mas recuperado a 15 de janeiro de 2020 após a demissão em bloco do governo russo. O executivo de Medvedev caiu depois de Vladimir Putin ter sugerido uma série de alterações constitucionais que conferem mais poderes ao Parlamento — abrindo caminho para assumir o governo do país e manter-se no poder por tempo indeterminado.)
Steven Lee Myers é o autor de O Novo Czar, uma biografia do presidente russo. O livro é um retrato da vida de Vladimir Putin, desde os tempos da miséria na antiga Leninegrado, onde nasceu em 1952 (hoje São Petersburgo), até ao serviço no KGB; de espião ambicioso aos corredores do poder; da sombra das glórias pós-comunistas ao comando de uma das mais poderosas nações da história, incluindo os útimos desafios e conflitos que tiveram a Rússia como protagonista.
O livro escrito por Myers (jornalista do New York Times) foi apresentado a 17 de novembro pelo jornalista José Milhazes (na loja Almedina no Atrium do Saldanha, em Lisboa, às 18h). O Observador fez a pré-publicação com o capítulo “Sozinho no Olimpo”, que recupera o regresso de Putin à presidência da federação russa e traça o perfil da ambição política do líder e da atitude que trouxe a Rússia até à atualidade. É a vida de um dos líderes políticos mais elogiados por Donald Trump, o novo presidente dos Estados Unidos.
“Em outubro de 2012, Putin fez sessenta anos, a idade oficial para a reforma dos homens russos. Esse prazo não se aplicava aos presidentes e a outros representantes oficiais do Estado, mas, enquanto estava na presidência, Dmitri Medvedev fizera questão de baixar a idade da reforma de sessenta e cinco para sessenta anos de idade. O objetivo era o «rejuvenescimento» das fileiras de um sistema burocrático pesado permitindo que elementos mais jovens subissem na hierarquia. Com o aproximar do seu aniversário, e porque muitos dos seus aliados no governo haviam atingido esse marco, Putin aumentou a idade da reforma para os setenta anos. Aparentava ser um pequeno ajustamento. No entanto, fazia parte de um padrão que consistia em reverter, passo a passo, o legado deixado pela presidência de Medvedev.
Complementando a alteração da idade da reforma e da reposição da penalização da calúnia e difamação, Putin restabeleceu as zonas de fusos horários eliminadas por Medvedev, revertendo a sua tão impopular decisão que evitava que se alterasse a hora legal duas vezes por ano. As reformas políticas de Medvedev, anunciadas como uma concessão aos protestos que decorreram no inverno de 2011–2012 e transformadas em lei como último ato enquanto presidente, foram deste modo enfraquecidas para que as eleições dos líderes regionais envolvessem apenas candidatos aprovados pelo Kremlin.
Apesar de Medvedev permanecer primeiro-ministro e líder do Rússia Unida, o Kremlin parecia querer eliminar os seus vestígios do panteão de líderes do país, como se a presidência de Vladimir Putin nunca tivesse sido interrompida. Putin chegou mesmo a incentivar a revisão da história da guerra na Geórgia, em que seria ele, e não Medvedev, o protagonista da liderança determinante no processo. Em agosto, no quarto aniversário destes acontecimentos, surgiu no YouTube um misterioso vídeo com a duração de quarenta e sete minutos e de ampla divulgação.
Com o título «Dia Perdido», e citando alguns dos comandantes militares de topo, o vídeo continha alegações pormenorizadas de que a indecisão de Medvedev nas horas iniciais do conflito resultara num número superior de mortes entre as forças da Rússia e da Ossétia do Sul. Tratava-se de publicidade negativa, pura e dura, uma técnica camuflada muito usada pelos estrategos de comunicação da Rússia para provocar um efeito inibidor nos adversários políticos ou rivais empresariais; mas desta vez, o alvo era o protegido de longa data de Putin. As minudências do vídeo eram contraditórias, com alguns pormenores manifestamente falsos e outros, simplesmente confusos. A verdade pouco interessava, desde que as insinuações, com uma música sinistra como pano de fundo, provocassem o efeito desejado.
A principal mensagem do filme era a de que Medvedev seria o responsável pela morte de milhares de pessoas, apesar de a contabilização oficial das vítimas mortais de ambos os contendedores ser de 884. A crítica mais severa presente no filme era do general Iuri Baluievski, que, apesar de se ter retirado da vida militar dois meses antes do início da guerra, alegava que os georgianos tinham lançado o ataque à Ossétia do Sul mais cedo do que se afirmava e que Medvedev apenas agira quando Putin interveio pessoalmente dos Jogos Olímpicos de verão em Pequim. «Até levarem um chuto no traseiro — primeiro de Pequim, e depois, como dizem, ao vivo, de Vladimir Vladimirovitch — todos, para dizer de forma suave, tinham medo de alguma coisa», declarou o general. Nunca foi muito claro qual seria a fonte do vídeo, e ninguém reivindicou a sua autoria; no mundo da publicidade negativa, reina a anonímia.
O vídeo foi publicado na conta de YouTube de alguém com o nome de Aslan Gudiev, e os créditos da produção estavam a cargo de uma empresa de nome Alfa, embora não existisse nenhum estúdio na Rússia com esse nome. A edição russa da Forbes associava o filme a uma cadeia de televisão pertencente ao National Media Group, cuja propriedade era parcialmente detida e controlada pelo Banco Rossia e pelo seu principal acionista, Iuri Kovaltchuk, amigo de longa data de Putin. Quando o filme começou a circular, um jornalista do grupo de imprensa do Kremlin questionou Putin sobre o assunto, que confirmou muitas das alegações aí levantadas, incluindo a de ele ter telefonado a Medvedev, de Pequim, duas vezes, o que contradizia as afirmações avançadas pelo seu protegido. Dado que o Kremlin faz um controlo rigoroso das perguntas feitas pela imprensa, o facto de a pergunta ter sido sequer enunciada, por um jornalista da agência noticiosa estatal, a RIA Novosti, sugere que Putin queria atrair as atenções para o vídeo. Podia ter facilmente rejeitado as insinuações terríveis contra o seu assessor de longa data, seu amigo e protegido, mas não o fez.
Especula-se que as lutas internas do governo se intensificaram com o regresso de Putin à presidência, especialmente depois de Medvedev insistir nos seus planos de privatizar as ações do Estado em centenas de empresas públicas. Os principais rivais de Medvedev no governo de Putin continuavam a ser Serguei Ivanov, que era agora o chefe de gabinete do Kremlin, e Igor Sechin e os outros siloviki, cujos interesses financeiros nas empresas estatais eram ainda mais acentuados. Medvedev declarara que não excluía a possibilidade de se candidatar novamente à presidência em 2018, uma afirmação que provocou a cólera no Kremlin, entre aqueles que o acusavam de ser responsável pelos protestos que mancharam a reeleição de Putin.
Apenas alguns meses após o início das suas funções enquanto primeiro-ministro, o vídeo e a regressão de muitas das suas iniciativas enquanto presidente arrasaram a fraca posição política de Medvedev. O seu precioso projeto de construir um Silicon Valley nos arredores de Moscovo era subitamente alvo de investigações criminais, com base no facto de os seus executivos, alegadamente, canalizarem fundos para o movimento de protestos. As críticas ao trabalho de Medvedev enquanto primeiro-ministro começaram a transparecer, mesmo nos meios de comunicação alinhados com o Kremlin, ao passo que Putin criticava duramente o orçamento governamental pela sua morosidade em instituir as metas ambiciosas e extremamente pormenorizadas — para muitos, metas amplamente simbólicas — decretadas por si no início do seu novo mandato, para o melhoramento de áreas como a habitação, a educação infantil, a investigação científica e a esperança média de vida. A denigração do legado de Medvedev foi igualmente sentida nas relações internacionais.
Alguns dias após a sua tomada de posse, Putin sublinhava que o «reinício» defendido pela administração de Obama chegara ao fim. Informou bruscamente a Casa Branca de que não estaria presente na cimeira do Grupo dos 8 que iria decorrer em Washington durante esse mês, o que representava uma rejeição deliberada, não só dos EUA, mas dos líderes das restantes nações que, em tempos, o presidente cortejara. Enviou Medvedev no seu lugar, sob o pretexto de que estaria demasiado ocupado com a formação do novo governo. Ninguém na Casa Branca era favorável ao regresso de Putin ao Kremlin, mas Obama enviara Thomas Donilon, o seu conselheiro de defesa nacional, a Moscovo depois da eleição de Putin, na expectativa de assegurar que a Rússia continuaria a dar o seu apoio na redução de armas nucleares e na resolução da terrível guerra civil que consumia a Síria. Em março, Obama, a braços com a sua própria campanha de reeleição, tentara reiterar perante Medvedev que, tanto ele como Putin, conseguiriam progressos na superação da oposição russa no que dizia respeito às defesas antimísseis na Europa, mas que teriam de esperar pelas eleições nos EUA.
Esta conversa privada, tida numa reunião de líderes mundiais sobre segurança nuclear, foi inadvertidamente captada por um microfone. «Todas estas matérias, particularmente no que concerne às defesas antimísseis, podem ser resolvidas, mas é importante que ele me conceda algum espaço», disse Obama a Medvedev. «Sim, compreendo», respondeu Medvedev. «Compreendo o que quer dizer com lhe dar espaço. Espaço para que possa…» «Estas são as minhas últimas eleições», explicou Obama. «Depois da minha reeleição terei maior flexibilidade.» «Compreendo. Vou transmitir essa informação a Vladimir.» Este deslize embaraçoso de Obama motivou o seu adversário republicano, Mitt Romney, a afirmar que a Rússia era «o nosso principal adversário geopolítico» — pior do que uma Coreia do Norte equipada com armamento nuclear ou do que um Irão candidato a potência nuclear, devido à proteção que fornecia aos «piores atores do mundo» por meio do veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Obama não foi igualmente capaz de compreender que apesar de ele poder ter maior flexibilidade depois da sua reeleição, Putin estaria mais inflexível do que nunca nessa altura. Em junho, quando Obama se reuniu com Putin na região costeira da Baixa Califórnia no âmbito da cimeira do Grupo dos 20, nenhum dos dois fez grande esforço para disfarçar o desdém sentido um pelo outro. Putin fez Obama esperar cerca de meia hora, e quando terminaram a reunião, não sorriram nem conversaram um com o outro; ambos olhavam para o chão enquanto respondiam às perguntas dos jornalistas. Também não fizeram progressos em nenhum dos assuntos em que estavam em desacordo, especialmente o agravamento do conflito na Síria. Os assessores de Obama elaboraram um plano para negociar o exílio do presidente da Síria, Bashar al-Assad, que se basea va no pressuposto ingénuo de que Assad renunciaria ao cargo — e que seria Putin a persuadi-lo. Ciente da «capitulação» de Medvedev sobre a Líbia, em 2011 nas Nações Unidas, Putin tornou claro que não permitiria que os EUA liderassem a intervenção noutro país estrangeiro com o intuito de derrubar um líder soberano, independentemente do número de vidas que seriam perdidas num conflito progressivamente mais violento.
O governo de Assad continuava a ser um dos últimos aliados da Rússia no Médio Oriente, um importante comprador de armas e o anfitrião de uma base naval russa no Mediterrâneo, localizada na cidade de Tartus. Porém, a principal preocupação de Putin era, na sua perspetiva, evitar que os EUA libertassem, mais uma vez, as forças do radicalismo.
As autoridades de Washington e de outras capitais minimizaram o sentimento anti-EUA da campanha política de Putin, dizendo tratar-se de um apelo cínico à resistência patriótica contra as ameaças externas à Rússia, mas não entenderam quão profundamente essa tendência moldava agora o pensamento de Putin. A palpável deceção internacional com que o seu regresso à presidência foi recebido, os graves conflitos desencadeados nos protestos, o julgamento das Pussy Riot e as manifestações de Bolotnaia, serviram para corroborar a perspetiva de Putin de que o Ocidente estava hostilmente contra si e os seus interesses e, como tal, contra a Rússia enquanto nação.
O discurso de Putin ecoava gradualmente os piores momentos da Guerra Fria, apoiado e ampliado pelo círculo de homens determinados que constituíam, agora, o seu conselho de ministros, relegando para a periferia as vozes mais moderadas que se juntavam a Medvedev. A recuperação do selo «agentes externos» sugeria que o Kremlin considerava agora a defesa dos direitos humanos e os esforços como os de Navalni para impor a responsabilidade governamental crimes contra um Estado soberano. Com efeito, Navalni usufruíra de uma bolsa escolar para participar num curso executivo sobre liderança na Universidade de Yale. Isso era suficiente para apresentar motivos de suspeita. No verão de 2012, o Ministério Público reabriu o processo de investigação criminal contra Navalni, acusando-o de um desfalque no valor de quinhentos mil dólares em madeira, na região de Kirov, pelos serviços prestados enquanto consultor não remunerado para o governo regional. Surgiu uma semana depois de Navalni ter divulgado provas que sugeriam que o diretor da comissão de investigação, Aleksandr Bastrikin, era proprietário de uma empresa e de um apartamento na República Checa.
Não tardou até as investigações serem alargadas a outros negócios em que Navalni estivera envolvido, obrigando-o a despender mais tempo e energia a defender-se em tribunal. A contestação ao putinismo que emergiu no inverno de 2011–2012 foi gradualmente desaparecendo das ruas, com as manifestações de protesto a diminuir de dimensão e ímpeto, à medida que o Kremlin pressionava cada vez mais os seus detratores. Muitos dos opositores de Putin — os hamsters e hipsters, as «classes criativas» que se manifestaram ao lado de Navalni — regressaram à Internet, onde continuaram com o furor, embora impotentes.
Em setembro, em mais um sinal da deterioração das relações externas, em particular com os EUA, o Kremlin terminou com o trabalho na Rússia da Agência Estado-Unidense para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Esta agência apoiava a organização Golos e outras organizações civis envolvidas na política, mas também muitos programas políticos inócuos, incluindo os que se destinavam a auxiliar em questões como as hipotecas habitacionais ou o combate à sida. Em outubro, uma nova legislação expandiu a definição de «traição» para passar a incluir todo o tipo de «consultoria financeira, técnica ou material e outros tipos de assistência» a um país estrangeiro ou organização internacional.
O seu espectro era tão alargado, que qualquer crítico do governo que agora tivesse alguma espécie de contacto com uma organização não governamental estrangeira poderia ser julgado por traição. Duas relevantes organizações estado-unidenses que apoiaram as campanhas eleitorais, o Instituto Nacional Democrático e o Instituto Internacional Republicano, foram forçadas a abandonar o país à semelhança de outros grupos europeus, sob pena de os seus trabalhadores ou colaboradores enfrentarem acusações que poderiam resultar em vinte anos de prisão. Deu-se início a um ciclo de retaliações mútuas, ao estilo olho por olho, dente por dente, com cada ação de um dos países a ter uma resposta equivalente do outro.
Em 2012, o Congresso dos EUA, com a oposição da Casa Branca, que ainda esperava repor a cooperação com Putin, adotou uma nova lei com o nome de Serguei Magnitski, que impunha a interdição de viajar e sanções aos funcionários russos envolvidos na acusação e morte do advogado russo. Os magistrados estado-unidenses acabaram por conseguir localizar parte dos duzentos e trinta milhões de dólares de proveitos ilícitos de que Magnitski seguira o rasto até Manhattan, levando-o a quatro condomínios de luxo e outras propriedades comerciais, emitindo uma ordem judicial para os apreender. Foram adquiridos por uma empresa imobiliária de fachada sediada em Chipre, com montantes branqueados através de empresas-fantasmas na antiga república soviética da Moldávia.
A Lei Magnitski enfureceu Putin, que, apesar de ser improvável, negava ter qualquer conhecimento dos pormenores do caso de Magnitski e dizia que os EUA teriam encontrado forma de punir a Rússia independentemente da morte do advogado na prisão. «Se Magnitski não existisse», disse Putin, «teriam encontrado outro pretexto». Os russos retaliaram impondo sanções a dezoito funcionários estado-unidenses envolvidos na detenção e tortura de prisioneiros na prisão de Guantánamo e noutros locais. Tal como os propagandistas soviéticos de outras épocas, Putin fez uso destes paralelismos — embora por vezes despropositados — para defletir as críticas contra a Rússia, indo um pouco mais longe. Propôs que se criasse legislação que aplicasse sanções aos juízes estado-unidenses e outros oficiais envolvidos em casos de abuso contra crianças russas adotadas, um tema de tensões periódicas com os EUA que parecia ter sido resolvido por um acordo bilateral para aumentar a monitoração do processo. Todavia, no seio do furor das sanções Magnitski, a Duma foi ainda mais além, aprovando legislação que bania todas as adoções de crianças russas por estado-unidenses.
A votação final foi praticamente unânime, apesar de a lei ser tão cínica e cruel, que provocou a objeção de alguns membros do próprio governo de Putin. Os orfanatos da Rússia estavam repletos de crianças com necessidade urgente de uma família — segundo as estimativas, seriam cerca de oitocentas mil crianças num país onde a adoção continuava a ser estigmatizada e, como tal, rara. Os estado-unidenses adotaram cerca de cinquenta mil crianças desde 1999; a interdição faria que as adoções a decorrer ficassem suspensas. Os EUA tinham direcionado as sanções a burocratas corruptos; a Rússia sancionava as suas próprias crianças. No dia anterior à votação final da legislação na Duma, Putin deparou-se com algumas perguntas inusitadamente duras durante a conferência de imprensa anual. Foi questionado oito vezes sobre a razão de estar a prejudicar os interesses das crianças como retaliação a uma disputa política. Putin perdeu a compostura com a inesperada hostilidade das questões, retorquindo furiosamente, em determinada altura, que a responsabilidade era dos EUA, que se mostravam indiferentes perante o abuso das crianças russas adotadas. Alegava que os EUA tinham rejeitado as averiguações de diplomatas russos que investigavam situações em que as crianças russas tinham sido alvo de abusos naquele país. «Considera isto normal?», perguntou, furioso. «Como pode ser normal ser-se humilhado? Julga que é agradável? É algum masoquista?» Uma semana mais tarde, apesar da invulgar onda de protestos no país, Putin ratificou a lei que bania a adoção.
O aniversário dos sessenta anos de Putin, em 7 de outubro de 2012, foi celebrado pela nação de forma condizente com o culto de personalidade, que Putin sempre afirmara que considerava ser de extremo mau gosto. Nos dias anteriores, decorrera uma exposição de pinturas em Moscovo denominada, sem ironia, Putin: O Homem mais Bondoso do Mundo. Um grupo de jovens filiados no Rússia Unida produziu um filme com a duração de quatro minutos, repleto de tensão sexual, com mulheres lindas a retratar as mais ilustres façanhas: de montar a cavalo nas montanhas, a pilotar um avião de combate, passando pela condução de um Lada de cor amarela na Sibéria. Realizaram-se leituras de poesia e concursos de escrita para as crianças nas escolas.
O acontecimento tinha um eco político de interesse especial na história russa, em que os destinos do líder e do país pareciam estar inexoravelmente interligados. O dia do sexagésimo aniversário de Estaline, em 1939, fora considerado feriado nacional e ofuscara a Guerra de Inverno contra a Finlândia. Fora-lhe atribuída a medalha da Ordem de Lenine. Adolf Hitler chegou a enviar um telegrama com os desejos «de um futuro próspero para o povo da pátria amiga da União Soviética». Nikita Krutchov recebeu a mesma condecoração no seu sexagésimo aniversário, em 1954, e a Leonid Brejnev foi atribuída a condecoração de Herói da União Soviética. O aniversário dos sessenta anos de Putin não lhe granjeou uma medalha e, apesar da adulação oficial, trouxe um intangível sentimento de apreensão aos seus apoiantes e opositores. Compareceu na cimeira da Cooperação Económica Ásia-Pacífico, em setembro, na cidade de Vladivostoque, visivelmente a coxear, sem que o Kremlin parecesse disposto a explicar a razão. (Mais tarde, um assessor sénior explicou que Putin se lesionara nas costas numa partida de hóquei no gelo.)
Depois de um ano tumultuoso, Putin sobrevivera a uma onda de marchas de protesto que degradaram a sua reeleição, mas a incerteza quanto ao seu estado de saúde sugeria uma inquietação que fluía pelo sistema. O líder aparentava debater-se com algumas dificuldades em recuperar o vigor da sua primeira presidência; era como se tivesse regressado ao poder sem um objetivo concreto, como se a eleição não tivesse sido um meio para alcançar um fim, mas o fim em si mesmo. Em setembro, voara num ultraleve motorizado, no âmbito de um programa de conservação de uma espécie rara de grous na Sibéria, ajudando-os a regressar à natureza. Putin maravilhara os seus apoiantes com vários encontros com animais selvagens (muitos deles sedados), mas essas proezas aparentavam já não ser convincentes. Acabara com essas demonstrações no auge dos tumultos na época da sua reeleição, talvez pelo embaraço causado pela sua falsa «descoberta» de ânforas gregas no mar Negro, mas agora retomava as encenações. Com um fato-macaco branco, juntou-se ao piloto do ultraleve para reintroduzir na natureza os grous criados em cativeiro junto do rio Ob na Sibéria ocidental, conduzindo-os de volta ao seu espaço natural. O ultraleve, equipado com câmaras, teve de fazer duas tentativas para que as aves os acompanhassem.
Supostamente, Putin tinha pago pelo voo no ultraleve e perdido várias horas de treino, no entanto, a sua demonstração foi ridiculizada como uma forma de hagiografia soviética moderna. Ao invés de atrair as atenções para os assuntos relacionados com a conservação da natureza, os grous não passavam de mais um adereço da vaidade de Putin. Gleb Pavlovski, o estratego caído em desgraça, descreveu as proezas de Putin como irrefletidas e pouco convincentes, como se o Kremlin estivesse a passar por uma crise de criatividade. Pavlovski contribuíra muito no passado para moldar a imagem política de Putin, recorrendo ao mesmo tipo de encenações televisivas que o tornaram no líder político que é, mas, no seu regresso ao poder, Putin parecia não conhecer outro caminho para se reunir de novo com a nação depois de quatro anos de interregno. «O líder foi ao cinema e nunca mais regressou», afirmou, com pesar, Pavlovski.
A hagiografia continuou no próprio dia de aniversário de Putin. Embora celebrasse o dia em privado com os amigos chegados e a família na residência oficial em Sampetersburgo, todos os canais televisivos estatais elaboraram programações especiais que teciam louvores ao líder. No programa semanal noticioso do canal Rossia, Dmitri Kiseliov comparou Putin a Estaline em forma de homenagem. «Em termos de abrangência das suas atividades, Putin enquanto político está entre os seus predecessores do século XX, igualando-se apenas a Estaline», declarou o jornalista num enaltecimento a Putin com a duração de trinta minutos, em que referiu o aumento dos salários e pensões, a revitalização do Exército e o restabelecimento da paridade nuclear com os EUA.
O canal NTV emitiu um documentário com a duração de cinquenta minutos que procurava apresentar uma nova faceta do homem que, sozinho, era o centro do interesse público há doze anos. Com o título Visitando Putin, o documentário visava mostrar um lado de Putin apenas conhecido pelo seu «círculo de amigos mais próximos», embora não acrescentasse nada de novo ao que já se conhecia do presidente. O apresentador, Vadim Takmenev, acompanhou Putin durante uma semana, do seu escritório em Novo-Ogariovo até ao Kremlin, passando por uma visita ao Tajiquistão. Numa série de entrevistas realizadas ao longo dessa semana, Putin limitou-se a reiterar a sua perspetiva sobre a reeleição, sobre aqueles que o criticavam, sobre a corrupção e as relações externas, desvalorizando as críticas enquanto meros incómodos. Os líderes do movimento de protesto — pessoas como Navalni, cujo nome Putin parecia não ser capaz de proferir — representavam o «joio» soprado para longe, afirmou o presidente, para dar lugar às «figuras carismáticas e verdadeiramente interessantes» da vida pública e política.
A corrupção era sobrestimada, e, afinal de contas, o rendimento médio anual dos russos passara de menos de mil dólares por ano, altura em que tomou posse, para cerca de dez mil dólares àquela data. «É da maior importância para a compreensão de qualquer pessoa que viva no território russo ter a perceção de que, não só vive neste território, como é também um cidadão de uma forte potência que desfruta do respeito do resto do mundo.» O mais importante, continuou Vladimir, era que apenas a Rússia gozava de uma paridade nuclear estratégica com os EUA. A resposta de Putin ignorava a humilhação e irritação diária dos russos forçados a pagar subornos pela utilização de praticamente qualquer serviço público, os valores exorbitantes que Navalni se tornou especialista em expor, a classificação desoladora da Rússia na lista da Transparência Internacional, que a situava na centésima trigésima terceira posição, num total de cento e setenta e seis países.
Apenas dois dias antes, a NTV transmitira um documentário que acusava os grupos de protesto que ocuparam as ruas de conspiração para derrubar o governo, desta vez, com o apoio dos oligarcas da Geórgia e dos seus financiadores do Ocidente. Ambos os documentários retratavam Putin enquanto um patriota simples e honesto, a desempenhar o seu trabalho de forma incansável, exclusivamente dedicado aos assuntos do Estado, ao passo que os seus opositores apareciam enquanto estrangeiros com desejos anarquistas. Contrastando com as evidentes demonstrações de corrupção e favoritismo que enriqueceram os seus amigos e aliados, Putin era apresentado como alguém com uma vida modesta, quase ascética, numa residência que, apesar dos confortos e comodidades, era sóbria, com poucos adornos e sem ostentações de riqueza.
Em 2012, o então mais recente artigo técnico de Boris Nemtsov e seus colaboradores sobre a corrupção e riqueza do núcleo duro de Putin minuciava as vinte residenciais estatais que o presidente tinha ao seu dispor, nove delas construídas durante a época em que esteve no poder, bem como dezenas de iates e aviões privados. Ainda assim, este mesmo autor reconhecia que Putin se preocupava menos com estas ostentações de riqueza do que com aquelas que lhe garantiam poder. Embora reverencial, o documentário da NTV Visitando Putin fornecia um esboço da rotina presidencial oficial que permanecera um mistério para os cidadãos russos durante doze anos, depois da demissão de Boris Ieltsine. Os dias de Putin eram descritos num guião que parecia um conjunto desapaixonado de reuniões e cerimónias. Começava o seu dia tarde — acordando às oito e meia no segundo dia do projeto de Takmenev —, com as suas pastas informativas compiladas diariamente pelo FSB e pelo Serviço de Inteligência Estrangeira. Depois, como na maior parte dos dias, dedicava umas horas ao exercício físico: primeiro nas máquinas de pesos no ginásio da sua residência, enquanto assistia aos programas noticiosos televisivos, e depois a nadar um quilómetro na piscina interior.
Perto do meio-dia, Putin comia o seu pequeno-almoço, uma refeição simples de papas de aveia, ovos de codorniz crus, requeijão, que lhe era enviado, sublinhou, pelo patriarca Cirilo das quintas propriedade da igreja, e sumo de beterraba e rabanete. O seu dia de trabalho começava, portanto, tarde, e prolongava-se pela noite dentro. As reuniões com os ministros decorriam quando a maioria das pessoas se preparava para se deitar. Certa vez, era quase meia-noite quando dispensou Takmenev para se poder reunir com o seu chefe de combate às drogas, Victor Ivanov, e o ministro da Defesa, Anatoli Serdiukov, que, tal como o jornalista, aguardavam na antecâmara antes de ser recebidos. Putin referiu que os seus ministros estavam sempre em serviço, mas que apenas os incomodava quando havia necessidade. Quando lhe perguntaram, respondeu que não confiava nos meios de comunicação social por os considerar tendenciosos, o que, em si, era uma afirmação curiosa, dada a obsessão do Kremlin em controlar praticamente todos os canais disponíveis. Afirmava preferir a informação que recebia nas reuniões com os seus homens, tais como Serdiukov e Ivanov, por se tratar de informações «mais pormenorizadas e rigorosas».
Na secretária do seu escritório, não tinha computador que o ligasse à Internet, na qual, se assim o desejasse, poderia obter informações que desafiassem uma visão circunscrita do mundo, reforçada pelos seus aduladores que raramente ousavam desafiá-lo. Este documentário, à semelhança de outro realizado na língua alemã e coincidente com a sua tomada de posse cinco meses antes, mostrava Putin constantemente rodeado dos seus assessores e guardas, mas de mais ninguém. Fazia exercício físico sozinho. Nadava sozinho. Tomava o pequeno-almoço sozinho. A sua família não aparecia em nenhum dos documentários — nem a mulher, nem as filhas, Maria, com vinte e sete anos, e Kátia, com vinte e seis —, nem qualquer um dos seus amigos.
A sua única companhia aparentava ser o labrador preto, Koni, que esperava por ele à beira da piscina enquanto Putin completava as voltas.
No documentário da NTV, a única alusão a Medvedev, em tempos o seu assessor mais próximo e, ainda, primeiro-ministro, surgiu quando Putin se referiu a uma bicicleta dupla vermelha que estava solitariamente à porta do ginásio. Fora um presente de Medvedev, explicou Putin, enquanto se exercitava nos pesos, «obviamente uma brincadeira». Um crítico televisivo considerou que a solidão do líder era uma invenção improvável, com o intuito de convencer a audiência de que Putin não era a figura corrupta e insensível que os manifestantes pretendiam veicular, mas antes o funcionário público dedicado que se sacrificava pela nação.
A vida privada de Putin continuava a ser um segredo bem guardado de todos, exceto dos que lhe eram mais próximos, um grupo muito restrito e discreto que permanecera consistente ao longo dos anos, mas que era fortemente resguardado e retraído. Tudo o que os russos conheciam sobre a vida de Putin era-lhes apresentado desta forma, em pequenos e controlados excertos que o Kremlin preparava ou autorizava, sempre circunscritos, revelando alguns pormenores ocasionais. A propensão de Putin para trabalhar até horas tardias e manter os visitantes à espera durante horas tornara-se notória. Mesmo os seus amigos esperavam para falar com ele já de madrugada.
Igor Chadkhan, o realizador que o tinha entrevistado duas décadas antes, recorda-se da última vez em que se encontrou com Putin, à uma da madrugada, depois de uma longa espera e de uma fila de funcionários e executivos se ter reunido com ele, à vez, no seu escritório. Putin já não tinha o espírito descontraído que conquistara Chadkhan em 1991. Tentou dizer uma piada, mas Putin não se riu. «A propósito», disse numa entrevista em 2013, «Estaline era também uma pessoa noturna». Reproduzindo a dramatização de Soljenítsine dos monólogos interiores de Estaline em O Primeiro Círculo, Chadkhan descrevia agora Putin como alguém «terrivelmente exausto», solitário, rígido nas suas doutrinas, desconfiado e receoso mesmo em relação à sua comitiva, de quem esperava «vingança assim que ele sair do poder, pois muitos deles estão humilhantemente dependentes de Putin». Aqueles que em tempos orbitavam na periferia da vida de Putin — ministros, empresários, conhecidos – reuniam-se com ele cada vez menos. Parecia ter-se modificado. Guerman Gref, um dos seus conselheiros liberais desde a época em que trabalhavam juntos em Sampetersburgo, acompanhava o seu colega há tanto tempo, mas, ainda assim, tinha dificuldade em compreender a evolução do seu carácter. Quando lhe perguntaram se Putin se modificara, fez uma pausa desconfortável, procurando uma resposta que não fosse ofensiva. Tudo o que foi capaz de dizer resumiu-se a «O poder modifica as pessoas». Aqueles que em tempos foram próximos de Putin viam-se agora excluídos das suas relações.
A viúva de Anatoli Sobtchak, Ludmila Narusova, descreveu Putin como um homem diferente daquele a quem o marido podia chamar, por brincadeira, de «Stirlitz», o agente duplo da minissérie televisiva Dezassete Instantes de uma Primavera*. «Tem um sentido de humor apurado — ou, pelo menos, costumava ter», afirmou Ludmila à imprensa, depois de ser expulsa do Conselho da Federação no outono de 2012. O exílio político foi o preço que a viúva teve de pagar por ser a voz rara que se opunha à enxurrada de legislação que varria os movimentos de protesto, dos quais a sua filha Ksenia fazia parte. «A destruição das ilusões que tenho não inclui Vladimir Vladimirovitch, que considero uma pessoa absolutamente honesta, decente e dedicada, mas sim a sua comitiva», afirmou Narusova. «Sinto uma aversão por aqueles que o rodeiam.»
Ele deixou de ver os «baixos padrões morais» dos líderes políticos em quem confia. «Será possível que não compreendam — mesquinhos, exigentes e gananciosos como são — que, assim que mentem, nunca mais conseguirão recuperar a confiança? Mentem uns aos outros, mentem a Putin, mas ainda assim, ele confia neles.» Continuou dizendo que, no poder, ocorre uma «espécie de embronzeamento», usando a palavra «bronze» para sugerir um sentimento tal de egos insuflados, que acaba por os endurecer como estátuas de bronze, tornando-se algo menos humano. Relembrou a última reunião de Sobtchak com Putin, quando ele se dirigia a Kalininegrado para fazer campanha por ele, no ano de 2000. «Volodia», advertiu Sobtchak, «não te transformes em bronze». E no entanto, parece que foi nisso mesmo que ele se transformou.
Enquanto primeiro-ministro, Vladimir Putin continuou a viver na sua residência oficial em Novo-Ogariovo, mas a partir do momento em que regressou à presidência, passou a viver sozinho. A sua filha mais velha, Maria, casou-se com um holandês, Jorrit Faassen, que pertencia ao grupo de executivos da empresa de energia russa Gazprom. A sua ligação com a família de Putin transpareceu para a opinião pública a propósito de um incidente violento, em novembro de 2010, quando conduzia um BMW numa autoestrada congestionada em direção a Rubliovka, os subúrbios repletos de multimilionários da alta-roda de Moscovo.
Depois de uma quase colisão com um Mercedes de um jovem banqueiro, Matvei Urin, um grupo de guarda-costas saiu abruptamente de uma carrinha Volkswagen e agrediu Faassen de forma violenta. O incidente foi investigado não pela polícia de trânsito, mas pelos Serviço de Segurança Presidencial, e em poucas semanas, tanto os guarda-costas como Urin foram detidos. Foi condenado por agressão e sentenciado a quatro anos e meio de prisão, agravados por subsequentes condenações de desfalque e fraude que levaram ao desmantelamento do seu império bancário. Jorrit e Maria casaram-se em segredo — nunca sendo muito claro o local da cerimónia, embora os rumores sugerissem uma ilha grega — e em 2012, pouco depois do sexagésimo aniversário de Putin, tiveram um filho. Putin tornara-se avô, facto que nunca foi divulgado pela imprensa russa. Ainda menos se conhecia sobre a filha mais nova de Putin, Kátia, de quem se dizia ter-se formado em Estudos Asiáticos na universidade.
Há muito que corriam rumores de que Kátia estaria a namorar o filho de um almirante sul-coreano — e com quem se supunha ter-se casado, mas não era verdade. Ao invés, enveredou pela dança competitiva, tornando-se na vice-presidente da Confederação Mundial de Rock and Roll, com o nome de Katerina Vladimirovna Tikhonova; o nome de família foi claramente retirado do patronímico da mãe de Ludmila. No final de 2012, com vinte e seis anos, passou a ser a diretora da Fundação Nacional para o Desenvolvimento Intelectual, uma organização que edificou um centro de investigação de alta tecnologia na Universidade de Moscovo, no valor de 1,6 mil milhões de dólares. Os mandatários do fundo incluíam muitos dos aliados mais próximos de Putin, agora, executivos abastados de empresas estatais, como Igor Sechin e Serguei Chemezov. Os rumores eram de que Kátia se casara com Cirilo Chamalov, o filho de Nikolai Chamalov, que fora membro da cooperativa de habitações Ozero de Putin. Cirilo juntara-se, igualmente, às fileiras executivas da Gazprom depois de se formar na mesma universidade que Kátia. Depois, fez parte da direção e, mais tarde, tornou-se acionista da Sibur, a maior empresa petroquímica do país, detida parcialmente por Guenadi Timchenko.
As interligações e laços nepotistas do círculo de amigos de Putin e dos seus aliados aparentavam estar a alargar-se à geração seguinte. Na ausência de informações oficiais ou, sequer, fidedignas sobre as vidas privadas dos elementos da família Putin, os rumores proliferavam, sobretudo nos quadrantes mais intriguistas e dados à conspiração da Internet. Existiam especulações sobre o estado de saúde de Ludmila, que incluíam surtos depressivos ou comportamentos aditivos; uma das lendas preferidas era a de que fora banida para um mosteiro perto de Pskov, à semelhança do que acontecera com as mulheres dos imperadores ao longo da história. Mas a verdade era mais prosaica. Serguei Rolduguin, um dos mais antigos amigos de Putin, declarou que a relação entre os Putins se mantinha cordial, mas que se tornara gradualmente distante.
Por sua vez, Putin passava mais tempo com o círculo de amigos que mantinha desde a infância, da época em que fazia parte do KGB, e dos negócios que criou nos anos noventa. Seria no seio destes amigos que Putin relaxaria, sendo o anfitrião de festas que se prolongavam pela noite dentro, na sua residência de Moscovo ou nalgum dos retiros oficiais citados por Boris Nemtsov no seu artigo. Nestes encontros, dizia Rolduguin, Putin nunca falava abertamente de negócios — essas conversas aconteciam em privado com cada um dos intervenientes —, nem de política. Os temas habituais variavam entre a história e a literatura. Os interesses de Putin esgotavam-se com relativa rapidez. Tinha pouca paciência para temas estafados, mas uma avidez por novas temáticas e informações. Lera a tradução de Pasternak de Rei Lear, de Shakespeare, e testou os seus amigos para averiguar se sabiam, tal como referia Pasternak nas suas notas de tradução, que a inspiração histórica da tragédia datava do século IX.
Convidava músicos e cantores para concertos privados, preferindo as baladas pop e rock de cantores como Grigori Leps e Philippe Kirkorov; os convidados e o anfitrião chegavam a qualquer hora aos encontros festivos, de carro ou de helicóptero. Certa vez, pediu a Rolduguin que trouxesse músicos da Casa da Música de Sampetersburgo, local onde este seu amigo exercia funções de diretor artístico. Os três músicos convidados — um violinista, um pianista e um clarinetista — tocaram excertos de Mozart, Weber e Tchaikovski. Putin ficou comovido e, com a graça digna de um imperador, voltou a convidá-los na noite seguinte para mais uma atuação para o mesmo grupo de amigos. Estes encontros festivos incluíam figuras como as de Iuri Kovaltchuk e Guenadi Timchenko, mas cada vez menos, a mulher de Putin. As suas obsessões continuavam a ser o trabalho e o desporto.
O hóquei no gelo tornou-se num novo passatempo, em 2011, depois de assistir a um campeonato juvenil. Era um desporto praticado pelos seus amigos Timchenko e os irmãos Rotenberg, Boris e Arkadi, donos de equipas profissionais que faziam parte da Liga Continental de Hóquei da Rússia. Putin dedicou horas a aprender a equilibrar-se nos patins e a manusear o taco de hóquei, um exemplo do mesmo zelo que demonstrou ao aprender artes marciais nos tempos da adolescência, e depressa começou a disputar partidas de hóquei em arenas vazias, em que os únicos presentes eram os seus convidados. Entre os colegas de equipa e professores, constavam algumas lendas do hóquei, tais como Slava Fetisov e Pavel Bure, bem como amigos como os Rotenbergs, os seus ministros do governo e, até mesmo, o presidente bielorusso, Aleksandr Lukachenko. Os guarda-costas do seu destacamento de segurança bem como os de Medvedev — mas não o primeiro-ministro — preenchiam os restantes lugares da equipa.
Nos preparativos para os Jogos Olímpicos, Putin decretou a criação de uma liga noturna amadora de hóquei, destinada a homens com idades superiores a quarenta anos, mas que depressa se alargou para incluir jogadores de todas as idades. Encarou isso como uma forma de revitalização do país pela prática do desporto e do exercício físico. Os jogos amadores rapidamente conquistaram adeptos e eram notícia nos boletins desportivos que, incansavelmente, acompanhavam a perícia do presidente no hóquei. Com o número onze na camisola, marcava golos com surpreendente facilidade — numa ocasião, chegou a marcar seis golos num só jogo! Na noite dos primeiros protestos em massa de dezembro de 2011, estava a jogar hóquei, referiu o presidente de forma evasiva. No dia da sua tomada de posse em 2012, saiu do Kremlin como o novo presidente para participar num jogo de exibição contra jogadores de hóquei reformados, que contava na audiência com dois políticos aposentados, Silvio Berlusconi e Gerhard Schröder, enquanto espectadores. Putin marcou dois golos, incluindo a grande penalidade que deu a vitória à sua equipa no prolongamento.
Foi em maio, no dia da sua tomada de posse, que Ludmila foi vista com Putin em público pela última vez. Antes disso, tinham aparecido um com o outro no dia das eleições na assembleia de voto, onde Putin, provocadoramente, fez uma piada à custa da mulher. Quando um funcionário indicou ao candidato a informação que estava afixada na parede, Putin respondeu que ele não precisava de ler, mas que talvez a mulher necessitasse. «Ela não está atualizada», disse Putin. A ausência de Ludmila durante a presidência de Putin tornou-se flagrante, alimentando rumores de que estavam prestes a divorciar-se. Estivera conspicuamente ausente nos serviços religiosos da Páscoa nesse ano, aos quais Putin compareceu com Medvedev e a mulher deste, acompanhados pelo presidente da câmara de Moscovo, Serguei Sobianin.
Putin escusou-se de estar presente no aniversário dos cinquenta e cinco anos de Ludmila na véspera do Natal ortodoxo, em 6 de janeiro de 2013; estava em Sochi, garantindo um passaporte a Gérard Depardieu (para que o ator fosse eximido de pagar impostos em França) e praticando esqui nas novas pistas olímpicas. Apenas foram vistos em público, novamente em conjunto, em junho seguinte, quando surgiram, depois do primeiro de três atos de um espetáculo de bailado que decorria no Kremlin, La Esmeralda, para responder a uma pergunta de um jornalista que era tão atrevida, que só podia ter sido encenada como a atuação a que assistiam. «Gostaram de Esmeralda?», perguntou o correspondente do canal Rossia 24. Depois de Putin e Ludmila terem feito algumas observações comuns sobre a «beleza» da música e a «leveza» dos movimentos dos bailarinos, o correspondente abordou delicadamente a questão que, noutras circunstâncias, teria provocado a ira de Putin: «É tão raro aparecerem juntos, e existem rumores de que já não estão a viver na mesma casa. Isso é verdade?»
Putin respirou fundo, olhou para Ludmila, e passados alguns momentos respondeu: «É verdade. Todas as minhas atividades, o meu trabalho, são públicos, totalmente públicos. Algumas pessoas gostam disso. Outras não. Algumas incompatibilizam-se totalmente com isso.» Referiu-se formalmente à mulher como Ludmila Aleksandrovna, como se se tratasse de uma estranha ou de uma pessoa idosa. Ela «fartou-se de esperar», disse Putin. «Passaram-se oito anos, ou nove, sim, nove. Por isso, resumindo, foi um acordo mútuo.» Permaneceram ligeira e desconfortavelmente afastados um do outro. Ludmila aparentava dor, e Putin uma certa inflexibilidade. «O nosso casamento acabou porque raramente nos vemos», acrescentou ela. «Vladimir Vladimirovitch está completamente absorvido pelo seu trabalho. As nossas filhas já cresceram. Vivem as suas próprias vidas. Todos nós vivemos.» Mostrou-se grata por Putin «continuar a sustentar-me e às nossas filhas» e afirmou que continuariam amigos. Numa altura em que muitos dos políticos e figuras oficiais da Rússia combatiam contra as revelações de os seus filhos estudarem ou viverem no estrangeiro, Putin aproveitou o momento para reforçar o facto de as filhas permanecerem no país.
O jornalista parecia confuso. Significava isso que iriam efetivamente divorciar-se? «Pode dizer-se que se trata de um divórcio civilizado», respondeu Ludmila. A decisão de Putin de levantar o véu sobre a sua vida privada coincidiu com a reviravolta socialmente conservadora das suas políticas, anunciando a confiança e a moralidade da Rússia na luta para definir e defender a sua ideia de Estado. A maioria dos russos reagiu com indiferença ou com alguma solidariedade. A única surpresa era o sentido de oportunidade do momento escolhido. O divórcio seria oficial apenas no ano seguinte. A separação de ambos, entretanto, originou novas especulações de que Putin pretendia casar-se novamente — talvez com Alina Kabaeva, que se supunha ter tido um filho do presidente em 2010 (e uma filha em 2012). Kabaeva, que aparecia na capa da edição russa da revista Vogue em janeiro de 2011, envergando um deslumbrante vestido Balmain, negava sistematicamente que tivesse filhos (o rapazinho que aparecera na sua vida era o seu sobrinho). Surgiram rumores de outras relações amorosas, como o caso da ex-espia Anna Chapman e da fotógrafa oficial de Putin, Iana Lapikova, uma ex-modelo e ex-concorrente a Miss Moscovo. Os rumores sempre foram um pouco inconsistentes, todos eles rigorosamente negados pelo porta-voz de Putin, Dmitri Peskov.
O estratego político e colunista ocasional, Stanislav Belkovski, alegava que os rumores sobre a vida amorosa de Putin eram invenções da máquina de relações públicas do próprio Kremlin, com o intuito de promover a imagem do presidente. Belkovski publicou um livro, em germânico, que retratava Putin como um homem solitário, um líder desconfiado, que se sentia mais próximo dos seus cães de estimação do que das pessoas, mesmo dos seus amigos. O livro, com o título simples Putin, era uma amálgama de especulações, boatos e factos — incluindo, por exemplo, minudências rigorosas sobre a vida das filhas do presidente — que se interligavam de forma tão harmoniosa, que era quase impossível distinguir uns dos outros, quanto mais saber a verdade sobre a vida privada de Putin. Até mesmo Belkovski não tinha a certeza, distanciando-se posteriormente do retrato psicológico que tinha inicialmente delineado. Putin não parecia ser mais genuíno do que qualquer uma das proezas políticas que aperfeiçoara. Depois de mais de doze anos no centro das atenções públicas, tornara-se numa figura distante, mais isolado do que os secretários-gerais e imperadores antes dele, tão poderoso e desconhecido quanto o esquivo funcionário Klamm de O Castelo de Kafka. «Já não se trata de Putin», disse Gleb Pavlovski. «Falamos de Putin em demasia. Putin é o início, a tábua rasa, o ecrã onde projetamos os nossos desejos, as nossas preferências e os nossos ódios.»”