O Euro 2016 está prestes a começar e, atentem bem, ninguém faz a menor ideia do que vai acontecer. Este facto, por si só, representa uma empolgante novidade em relação à maioria das competições internacionais de futebol, onde toda a gente bem informada tem uma ou duas ideias mais ou menos definidas sobre o que vai acontecer, e a dúvida é saber se a expectativa eventualmente concretizada é a expectativa nº1 (“ganha a Alemanha?/ ganha o Sevilha?”) ou a expectativa nº2 (“afinal ganhou o Brasil/ ganhou a seleção do país organizador/ o Sporting perdeu a final no seu próprio estádio”).
O grau inédito de incerteza deve-se, em parte, à natureza específica dos Europeus, tradicionalmente muito mais recetivos a anomalias históricas. Não há Dinamarcas na história dos Mundiais; não há Grécias. O que acontece às Dinamarcas nos Mundiais, na melhor das hipóteses, é eliminarem um dos favoritos antes de serem eliminados por outro (como aconteceu à Bulgária em 1994); o que acontece às Grécias é aquilo que, num universo racional, devia sempre acontecer às Grécias em eventos futebolísticos (nada).
Mas, neste ano, a incerteza é reforçada pela inexistência de uma óbvia potência dominante com um destino a cumprir, ou uma narrativa a confirmar. Porque estas coisas costumam funcionar por ciclos, o candidato mais óbvio ao papel seria a Alemanha, e muito embora, dependendo do critério com que decidimos modelar as nossas expectativas, seja algo surpreendente que a Alemanha não vença este Europeu, a Alemanha não vai vencer este Europeu. Este é, aliás, o único dado sobre o qual é possível ter algum grau de certeza: a Alemanha não vai vencer este Europeu. O que já não é possível antecipar é qual a seleção que os vai eliminar: aqui não há sequer candidatos plausíveis, portanto o mais certo é ocorrer um cataclismo implausível envolvendo um até agora anónimo avançado eslovaco – ocorrência para a qual a língua alemã já terá certamente uma palavra.
Quanto ao percurso da seleção portuguesa, provavelmente não nos deslocávamos ao estrangeiro com expectativas tão indefinidas desde os tempos em que as pessoas se enfiavam em caravelas sem GPS, não sabendo se iam encontrar um distante entreposto de especiarias, ou um chicharro carnívoro de quinze toneladas no meio do caminho.
Ninguém faz a menor ideia do que vai acontecer – e isto, reforce-se, é uma condição epistemológica fundamentalmente diferente de não saber se vai ou não acontecer aquilo que achamos que vai acontecer (é a diferença, digamos, entre não sabermos se a moeda que lançámos ao ar devolverá cara ou coroa – e não sabermos sequer se temos uma moeda no bolso). É também uma situação salutar, que pode permitir alguma profilaxia emocional depois dos solavancos identitários a que a seleção foi sendo submetida nos últimos vinte anos, e que obrigaram um público habituado a ver competições internacionais como espectadores neutros a, de um momento para o outro, estabelecer expectativas prévias enquanto sofredores comprometidos.
A primeira identidade – a de “Brasil da Europa, sem ponta-de-lança” que coincidiu com a geração de ouro – foi curta, memorável, frustrante, e deixou-nos complicadas saudades. A segunda – o período entre 2004 e 2006, que reuniu os destroços da geração de ouro, componentes pré-fabricadas do Porto de Mourinho, e um Ronaldo ainda a meio caminho de garantir o seu próprio capítulo no Guinness – foi ainda mais curta, ainda mais memorável, ainda mais frustrante, e deixou-nos maus hábitos (e falsas esperanças). O rescaldo destes efémeros períodos de superação é sempre penoso, e propenso a engendrar distorções psíquicas coletivas.
Para nos certificarmos de que as coisas seguiriam o rumo apocalíptico narrativamente necessário, fomos tendo o cuidado administrativo de nomear os selecionadores ideais para remodelar a nossa identidade futebolística da forma mais trágica possível. Paulo Bento reproduziu o seu percurso no Sporting, começando por ensaiar a identidade “underdogs-certinhos-unidos-contra-o-mundo” (com resultados admiráveis em 2012), e depois a identidade “não-quero-voltar-a-enfardar-sete-golos-na-minha-carreira-pelo-que-obviamente-vou-enfardar-apenas-estes-quatro” no Brasil. Antes disso tivemos o regresso de Carlos Queiroz, com os seus planos quinquenais, os seus ressentimentos milenares, a sua alma de tecnocrata amargurado, e aquela expressão inconfundível de quem já planeia mentalmente a litigação violenta de todas as suas decisões perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
O Mundial de 2010 na África do Sul seria, aliás, o mais pertinente ponto de comparação com o atual estado de coisas. Também aí sentimos coletivamente uma incerteza perante aquela desigual coleção de talentos avulsos desprovida de identidade – sem a confiança legítima de certames anteriores, mas também sem a quase certeza de uma calamidade com que as pessoas de bom senso acolheram o Mundial do Brasil. A atitude geral era um calmo “vamos lá ver”. A saída, quando chegou, não magoou muito, e só foi artificialmente potenciada por dois fatores anómalos: o acidente histórico chamado Cristiano Ronaldo, e facto de Carlos Queiroz ter escolhido essa altura para se tornar mais Carlos Queiroz do que nunca.
Por esse motivo, é mais merecedora das nossas simpatias, e até de uma discreta e razoável confiança, esta seleção do que Essa de Queiroz (e Camilo, por conseguinte, Castelo Branco). No contexto muito próprio do futebol internacional são raros os casos em que a personalidade de um treinador consegue revolucionar a identidade de uma equipa e recalibrar voluntariamente as expectativas de um país inteiro. Há demasiadas variáveis para manipular, e muito poucas oportunidades e mecanismos para o fazer. Daí a importância que assume o simples (e arbitrário) facto de se possuir a fisionomia certa. Chamo agora vossa atenção para Fernando Santos, para o rosto de Fernando Santos, cidadão português:
Eis um homem que talvez nunca venha a superar triunfantemente expectativas – mas a quem também nunca vai acontecer um desastre. Não porque a sorte protege os audazes, ou os génios, ou os malucos (Fernando Santos não é uma coisa, nem outra, nem etc.), mas porque a sua pessoa encarna uma espécie de constante universal que parece ser uma das exigências narrativas do Universo – a aurea mediocritas contra a qual tudo o resto se vai posicionar.
Fernando Santos é o tipo de figura que nas séries juvenis e novelas da TVI costuma ser interpretado pelo ator Manuel Cavaco: a pessoa que ali anda a transpirar experiência resignada e a distribuir sabedoria carrancuda, enquanto um vasto elenco rotativo – protegidos, figurantes, enteados honorários – se vai bronzeando pelos areais, lambendo o açúcar dos respetivos morangos. Aquela expressão facial (aquele característico repuxar assimétrico do lábio inferior, de quem parece adivinhar ou lamentar sucessivas bolas ao poste) comunica simultaneamente que “isto está complicado”, que “se nos safarmos, vai ser uma sorte”, mas também que “isto não é o fim do mundo” e que “a vida é assim, e continua”. Na eventualidade de Portugal conseguir, nestas semanas de competição, ganhar um jogo por 5-0 e perder outro jogo por 0-5, será impossível comparar duas fotografias de Fernando Santos tiradas no momento do apito final e adivinhar qual corresponde a qual resultado.
Mas essa eventualidade é pouquíssimo provável. O resultado de quarta-feira contra a Estónia foi uma complicação emocional desnecessária, mas a nossa atitude geral até aí era a correta e não deve ser modificada. Não sabemos o que vai acontecer – mas podemos, com alguma confiança, sentir-nos a salvo de troféus ou terramotos. Os primeiros minutos do jogo com a Estónia foram, apesar de tudo, semelhantes aos últimos minutos do jogo com a Inglaterra, antes do golo de Smalling: uma vaga sensação de que qualquer coisa – positiva! – podia acontecer a qualquer momento. A diferença foi de grau e não de género, mesmo que no segundo caso tenham acontecido sete coisas e no primeiro zero coisas. O percurso mais provável da seleção será esse: as coisas – positivas! – vão acontecendo na fase de grupos; depois vão acontecer cada vez menos até que uma qualquer Itália ou Espanha nos elimine, sem dramas. Quando morrermos, não será na praia, mas no barco, juntinhos.
Tudo isto, como é evidente, escamoteia o sortido de contingências que estas competições produzem (e que os Europeus em particular podem elevar ao quadrado), e que no caso específico de Portugal refletem algumas questões de longa data, bem como algumas dúvidas recentes. Ao nível mais básico: é nesta altura impossível de prever qual o jogador austríaco que Pepe vai tentar assassinar. Ao nível mais complexo: Cristiano Ronaldo continua a existir entre nós, e a sua existência insiste em assumir-se como o fator central a ser considerado.
Há um pequeno teatro que consiste em fingir avaliá-lo pelos critérios normais: observamos a sua idade, o historial dos seus momentos de forma em finais de época; lamentamos a sua exibição na final da Champions, acolhemos com agrado sua a gradual deriva para zonas mais centrais. Mas tudo é subalternizado ao facto de Cristiano Ronaldo, antes de ser a soma aritmética desses mundanos critérios, continuar a ser Cristiano Ronaldo. É o sétimo torneio internacional consecutivo em que participa, mas, mais pertinente do que isso, é a quinta vez consecutiva em que tem de desempenhar o papel de “Cristiano Ronaldo a Participar Num Torneio de Seleções”, onde o consenso determina que a posteridade vai forjando as suas hierarquias. Daí a permanente – e quase de certeza errónea – sensação de que cada intervenção sua nestas competições é menos uma jogada de futebol do que uma tentativa de invalidar preventivamente um historiador do ano 2050.
O primeiro lance de Ronaldo digno de registo no jogo com a Estónia foi um galope a partir da meia-esquerda (como nos “velhos tempos”): um túnel em esforço e in extremis (a bola desviada no último segundo pelo meio das pernas do adversário), uma travagem lenta, outra vez em esforço, na quina da área, e um segundo túnel, totalmente involuntário, a um defesa que se aproximava pelo seu lado direito sem que Ronaldo se tivesse apercebido. O segundo lance de Ronaldo digno de registo, ao minuto 31, foi uma repetição quase exata da jogada do segundo golo contra a Suécia no play-off de acesso ao Mundial: lançamento em profundidade, galope para o espaço vazio, primeiro toque e remate de pé esquerdo. Saiu fraco, e à figura. Também marcou dois golos. O que é que tudo isto significa? Muito pouco, comparado com o facto de o homem continuar a ser Cristiano Ronaldo.
O Ronaldo pós-2006 sempre pareceu uma concatenação de equilíbrios precários erguida no topo de uma central nuclear. O controlo de bola em velocidade, para dar o exemplo mais visível: tão diferente do deslizar fluido de Messi, tão evocativo de fenómenos mais perigosos. Nos seus melhores momentos, Ronaldo a conduzir a bola em corrida lembrou sempre uma lancha de alta velocidade naquela fração de segundo antes de a proa levantar voo e capotar. A sua redução à mera normalidade mecânica é uma inevitabilidade, tal como será inevitável a coexistência temporal (e temporária) dessa nova condição de traineira topo de gama com um estatuto ainda, por inércia, sobrenatural. Não vai ser agradável de testemunhar, e tomara que estejamos todos à altura do acontecimento.
Mas a verdade é que o acontecimento pode ainda estar longe de acontecer. É mais uma coisa que não sabemos. Talvez Ronaldo volte a finalizar um daqueles lances que patenteou em Manchester: o contra-ataque letal a partir de um canto, executado em sete segundos. Talvez o seu sétimo livre direto entre na baliza. Talvez Quaresma o convença a tatuar um sétimo abdominal. E talvez – talvez, talvez – Portugal chegue ao sétimo jogo. De todas estas incógnitas uma ordem espontânea vai emergir nas próximas semanas, que depressa saberemos receber com a menor perplexidade possível. Basta olhar para o homem na linha lateral, repuxando assimetricamente o lábio inferior, tão espectador como nós, com ar de quem já viu o remake deste filme e achou tudo normal.
Rogério Casanova vai atribuir notas aos jogadores da seleção nacional no final de cada jogo de Portugal.