Foi uma mudança de última hora: na passada segunda-feira, a Eslovénia decidiu substituir o nome do comissário escolhido desde abril, Tomaž Vesel. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tinha pressionado por várias vezes o executivo esloveno para que alterasse a sua escolha, uma vez que pretendia o mesmo número de homens e mulheres na instituição. A insistência surtiu efeito — Ljubljana acatou a sugestão da alemã e escolheu Marta Kos para comissária. Porém, esta alteração levou a que se remarcasse a conferência de imprensa de apresentação dos novos comissários para esta terça-feira, em vez de ser na semana passada, porque o Parlamento da Eslovénia tinha de dar luz verde para a nomeação de Marta Kos.
Esta alteração, que parece procedimental vista de fora, não terá sido inocente. Permitiu, acima de tudo, que Ursula von der Leyen comprasse tempo e conseguisse alterar ainda mais a configuração da Comissão. Em concreto, a dirigente comunitária terá querido riscar um nome da lista: o do comissário francês para o Mercado Interno e Serviços, Thierry Breton. As desavenças e as tensões entre a alemã e o francês avolumaram-se ao longo do último mandato — e os próximos cinco anos seriam de uma convivência difícil.
Cerca de 24 horas antes da conferência de imprensa, Ursula von der Leyen conseguiu o que desejara desde que foi eleita Presidente da Comissão Europeia em meados de julho. Thierry Breton demitiu-se na segunda-feira, mesmo a tempo da apresentação dos comissários. Numa missiva publicada nas redes sociais, o francês expôs o alegado plano da presidente da Comissão. O Presidente de França, Emmanuel Macron, teve de escolher um nome à última hora e indicou para comissário um aliado político, o ministro dos Negócios Estrangeiros demissionário, Stéphane Séjourné. Em troca, como denuncia Thierry Breton, Paris terá obtido mais peso na Comissão.
I would like to express my deepest gratitude to my colleagues in the College, Commission services, MEPs, Member States, and my team.
Together, we have worked tirelessly to advance an ambitious EU agenda.
It has been an honour & privilege to serve the common European interest???????? pic.twitter.com/wQ4eeHUnYu
— Thierry Breton (@ThierryBreton) September 16, 2024
A troca da Eslovénia e a pressão contra Thierry Breton mostra como Ursula von der Leyen construiu uma Comissão feita à sua imagem e medida nos últimos dois meses. Apesar de todo o caos destes últimos dias, a presidente da Comissão Europeia livrou-se de alguns críticos e chegou a acordo com os Estados-membros para eleger nomes que lhe agradavam. Como escreve o Politico, a dirigente comunitária nunca escondeu a sua tendência “para o poder centralizado” em redor da sua imagem, mostrando pouca tolerância para os críticos.
Ainda assim, os 27 comissários (um de cada Estado-membro) têm ainda de se submeter a audições (que deverão ter lugar em outubro) por comissões parlamentares das respetivas aéreas para que sejam nomeados, sendo que os seus nomes correm sempre o risco de serem “chumbados” e terem de ser substituídos. Cabe depois ao Parlamento Europeu dar o aval final em plenário para, mais tarde, a nova Comissão Europeia tomar posse.
No entanto, após “semanas intensas de negociações com os Estados-membros”, Ursula von der Leyen está satisfeita e disse acreditar, esta terça-feira, que os comissários propostos estão unidos “no objetivo comum” de “tornar a Europa mais forte” e mais “competitiva”.
Paridade, avisos a Putin e um favor a Giorgia Meloni? Como Ursula escolheu os seus vice-presidentes (e a comissária para o Alargamento)
Um dos objetivos que norteou Ursula von der Leyen para escolher os rostos da Comissão era o de garantir o mesmo número de homens e mulheres. Contudo, não foi cumprido. Na conferência de imprensa desta terça-feira, a presidente da Comissão Europeia culpou diretamente os Estados-membros. “Temos onze mulheres no colégio que eu proponho. Isso é 40%. Quando eu recebi o primeiro lote de nomeações e candidatos, nós tínhamos 22% de mulheres e 78% homens. Foi inaceitável”, criticou, acrescentando que “trabalhou com os Estados-membros” e foram capazes de “melhorar o equilíbrio” para 40% de mulheres e 60% homens.
“Isto mostra que — por muito que tenhamos alcançado — ainda há muito trabalho para fazer”, frisou Ursula von der Leyen, que assumiu que o género teve influência na maneira como atribuiu os cargos a vice-presidentes. A estrutura também se alterou, sinalizou a dirigente comunitária alemã, deixando de haver uma “camada extra de vice-presidentes” para ter uma estrutura mais “enxuta, interativa e interligada”.
O objetivo de ter uma comissão equilibrada entre homens e mulheres falhou, mas Ursula von der Leyen recompensou dois países que seguiram as suas ordens e cederam à pressão de trocar um homem para uma mulher: a Eslovénia e a Roménia. Enquanto Marta Kos deverá ficar com pasta do alargamento da União Europeia — fundamental para os interesses europeus —, a romena Roxana Mînzatu (que substituiu Victor Negrescu) torna-se a primeira a assumir o cargo de vice-presidente oriunda do seu país natal.
Ainda que fique com uma pasta da Comissão que talvez não tenha tanta importância comparado com as restantes vice-presidências (e o governo romeno quisesse algo relacionado com a economia), é uma vitória para Bucareste, que vê Roxana Mînzatu enquanto vice-presidente executiva para as Pessoas, as Competências e a Preparação e Comissária para as Competências, a Educação, o Emprego de Qualidade e os Direitos Sociais. “Ela terá responsabilidade [na área] da educação e cultura, trabalho de qualidade e direitos sociais. A Roxana vai liderar a União de Competência e o Pilar Europeu dos Direitos Sociais”, salientou a presidente da Comissão Europeu.
Na conferência de imprensa, Ursula von der Leyen destacou igualmente o papel de Marta Kos. A eslovena vai ser a responsável pelo alargamento e substituiu o húngaro Olivér Várhelyi. Terá um papel importante no “apoio à Ucrânia” — e continuará o “trabalho na reconstrução [da Ucrânia] e de apoio aos países candidatos para prepará-los para o acesso”. Além disso, a escolha de alguém da Eslovénia — que fez parte da antiga Jugoslávia — tem outra justificação; vários países dos Balcãs Ocidentais (como a Sérvia, o Montenegro ou a Macedónia do Norte) almejam entrar no bloco comunitário e Marta Kos poderá ser uma facilitadora deste processo.
Além de Roxana Mînzatu e Marta Kos, Ursula von der Leyen confiou na escolha de Pedro Sánchez e deu a Teresa Ribera, assumida aliada do chefe do governo espanhol, cargos bastantes importantes: vice-presidente Executiva para uma Transição Limpa, Justa e Competitiva e ainda Comissária para a Concorrência. A espanhola pertence à família política dos socialistas e foi uma forma que a presidente da Comissão Europeia arranjou para os satisfazer. Adicionalmente, enquanto um dos maiores países da UE, Espanha fica representada ao mais alto nível.
“Teresa Ribera guiará o trabalho para assegurar que a Europa mantém-se no caminho que delineou para o Pacto Ecológico Europeu”, sublinhou Ursula von der Leyen, acrescentando que é importante continuar o esforço de “descarbonização e industrialização da economia ao mesmo tempo”. Pedro Sánchez destacou, no X, a “magnífica notícia” e sublinhou que Espanha “consegue uma quota de influência como nunca teve em Bruxelas”.
Enhorabuena, querida @Teresaribera, por tu designación como primera vicepresidenta ejecutiva de la Comisión Europea, encargada de impulsar una doble transición que sea limpia, justa y competitiva.
Es una magnífica noticia para Europa y un orgullo para nuestro país.
Tu…
— Pedro Sánchez (@sanchezcastejon) September 17, 2024
Escolhendo quatro vice-presidências ocupadas por mulheres e duas por homens, Ursula von der Leyen atribuiu cargos importantes à finlandesa Henna Virkkunen — vice-presidente executiva para a Soberania Tecnológica, Segurança e Democracia e Comissária para as Tecnologias Digitais e de Fronteira. Não é propriamente uma escolha com fins meramente políticos, dado que Henna Virkkunen pertence à mesma família política (dos populares europeus) do que a presidente da Comissão Europeia.
Em vez disso, será uma forma de enviar uma mensagem ao Kremlin. Como pano de fundo, está o caráter cibernético de várias ações russas, que têm como alvo países europeus. Ao mesmo tempo, a eleição de uma finlandesa também pode estar relacionada com este ser o país da União Europeia que partilha a maior fronteira terrestre com a Rússia. Ainda que o seu nome já tivesse sido escolhido em meados de julho, a escolha de Kaja Kallas também envia um sorte sinal geopolítico a Vladimir Putin, uma vez que a ex-primeira-ministra da Estónia (que está na lista das mais procuradas da Rússia) assumirá o cargo de vice-presidente executiva para a Política Externa e de Segurança e Alta Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Defesa.
Nesta lista, há algo inédito. Um membro de uma das famílias políticas mais à direita (os Conservadores e Reformistas) obtém, pela primeira vez na História, uma vice-presidência. O italiano Raffaele Fitto será vice-presidente executivo para a Coesão e Reformas e Comissário para a Política de Coesão, Desenvolvimento Regional e Cidades. Sem se alongar nas considerações políticas, Ursula von der Leyen destacou, na conferência de imprensa, que o italiano possui uma “extensa experiência” e ajudará a “modernizar e fortalecer a nossa coesão, investimento e políticas de crescimento”. “Itália é um país importante e fundador da UE”, disse ainda.
Mas a leitura política da perspetiva italiana foi feita por Giorgia Meloni, primeira-ministra italiana e aliada de Raffaele Fitto. A líder de Itália insistia, nos últimos meses, que Roma deveria obter uma pasta com peso e uma vice-presidência. Seduziu por várias vezes Ursula von der Leyen, que cedeu à sua pressão, provavelmente em troca dos votos dos eurodeputados dos Irmãos de Itália para a sua reeleição enquanto presidente da Comissão Europeia.
Na sua conta pessoal do X, Giorgia Meloni saudou a decisão e escreveu que é um “reconhecimento importante” e uma prova de que “Itália finalmente volta a ser uma protagonista na Europa”. No entanto, os socialistas, liberais e verdes olham com preocupação para Raffaele Fitto e temem que Ursula von der Leyen tenha normalizado a direita mais radical, oferecendo-lhe um cargo na Comissão. Porém, a família socialista, a segunda maior, ter-se-á resignado à ideia do italiano ocupar um cargo tão importante, deixando, contudo, um aviso para as audições parlamentares, segundo a ANSA: “Fitto terá de provar ao Parlamento que é pró-União Europeia. Precisamos de estar preparados”.
Congratulazioni a @RaffaeleFitto per la nomina a Vice Presidente Esecutivo della Commissione europea con delega alla Coesione e alle Riforme. Un riconoscimento importante che conferma il ritrovato ruolo centrale della nostra Nazione in ambito UE.
L’Italia torna finalmente… pic.twitter.com/Gnw72y4bWc
— Giorgia Meloni (@GiorgiaMeloni) September 17, 2024
Já com França, a situação foi talvez a mais complexa. Ursula von der Leyen não nutria qualquer simpatia por Thierry Breton. Na origem terá estado, segundo apurou o Politico, o facto de o francês nunca ter aceitado na plenitude a liderança da alemã. “Ele nunca a reconheceu como chefe e como líder”, notou um dirigente comunitário àquele jornal. Além disso, o comissário para o Mercado Interno nunca escondeu que gostava de um dia ocupar o cargo de Ursula von der Leyen.
Foi mesmo à última hora que Von der Leyen conseguiu que um dos seus rivais na Comissão se demitisse. Tudo terá começado numa chamada telefónica ao Presidente francês, Emmanuel Macron, em que a presidente da Comissão Europeia expressou a sua frustração com Thierry Breton. Ao chefe de Estado francês, a alemã apresentou um ultimato: ou optava por ter uma pasta com mais peso sem Breton, ou com uma pasta com menos peso com Breton.
O Presidente francês optou pela primeira opção e, assim sendo, elegeu um dos seus principais aliados, Stéphane Séjourné, para o cargo de vice-presidente executivo para a Prosperidade e Estratégia Industrial, Comissário para a Indústria, Pequenas Médias Empresas e Mercado Único. França — e a família europeia dos liberais (já que Stéphane Séjourné os liderou no passado) — ganham preponderância na cena europeia, ao passo que Ursula von der Leyen não tem de lidar com Thierry Breton.
Ursula von der Leyen “lidera como quer”? Os 14 membros do PPE na Comissão
Surgiram várias críticas à maneira como a presidente da Comissão Europeia se livrou do seu antigo comissário. Jean-Dominique Giuliani, presidente do think tank Robert Schuman, notou à Reuters que Ursula von der Leyen “lidera como quer”. Entre os comissários, não há “espaço para espíritos livres” como Thierry Breton — que têm coragem para fazer frente à dirigente comunitária alemã.
Jean-Dominique Giuliani também deixa críticas à atuação de Emmanuel Macron por ter cedido a Ursula von der Leyen. Segundo o especialista francês, o Presidente está “enfraquecido” depois do resultado das eleições legislativas (que deram à vitória à coligação de esquerda) e a presidente da Comissão Europeia aproveitou-se precisamente disso e “impôs” a sua vontade ao chefe de Estado.
Por sua vez, na sua conta pessoal do X, Alberto Alemanno, professor de Direito da União Europeia na Universidade HEC Paris Business School, analisou a escolha de vice-presidentes e comissários, assinalando que muitos são “políticos nacionais desconhecidos” e que preferirão não confrontar diretamente Ursula von der Leyen. O docente universitário aponta ainda outra característica: muitos dos comissários são oriundos do Partido Popular Europeu (PPE).
Here’s the PROPOSED new EU Commission led and dominated by @vonderleyen featuring :
– mostly unknown national politicians, predominantly ‘yes men’ (the likes of Borrell/Breton gone)
– predominantly and unprecedentedly coming from the EPP and the right and far right to mimic… pic.twitter.com/k1XernYNi6
— Alberto Alemanno (@alemannoEU) September 17, 2024
Nestas negociações, o PPE, família política da presidente da Comissão Europeia, sagrou-se como o grande vencedor. Ainda que nas vice-presidências apenas a finlandesa Henna Virkkunen pertença àquela família política, nos comissários a história é completamente diferente. Treze pertencem aos populares e ocupam pastas importantes como o polaco Piotr Serafin (comissário para o Orçamento, a Luta Anti-fraude e Administração Pública) ou mesmo a portuguesa Maria Luís Albuquerque, que fica com a tutela dos Serviços Financeiros e a União da Poupança e do Investimento.
Destaque ainda para o comissário popular Andrius Kubilius, que será o primeiro na área da Defesa na Comissão Europeia, acumulando-a com a tutela do Espaço. Ursula von der Leyen procurou um político experiente — o lituano já foi primeiro-ministro. “Vai trabalhar para desenvolver a União de Defesa Europeia e fortalecer a nossa capacidade de investimento e industrial”, salientou a alemã. A escolha envia igualmente um sinal a Moscovo, dado que a Lituânia tem sido um dos países mais claros no apoio à Ucrânia.
Feitas as contas, 14 comissários (Finlândia, Croácia, Países Baixos, Letónia, Lituânia, Chéquia, Chipre, Portugal, Áustria, Suécia, Polónia, Bulgária, Grécia e Luxemburgo) vêm de partidos do PPE. Em comparação, quatro são liberais (França, Bélgica, Eslovénia e Irlanda), quatro são socialistas (Dinamarca, Espanha, Roménia e Malta), um é não-inscrito (Eslováquia, do Smer-SD, partido do primeiro-ministro Robert Fico) e dois são dos dois grupos mais à direita no Parlamento Europeu, o Patriotas da Europa e o Conservadores e Reformistas (Hungria, do Fidesz do primeiro-ministro Viktor Orbán, e Itália, do partido de Giorgia Meloni). Soma-se ainda a também membro do Renew Kaja Kallas, a estónia que ficará com o cargo de Alta Representante, e a própria Von der Leyen, membro igualmente do PPE.
Apesar de haver apenas quatro comissários oriundos da família socialista, dois ficam com vice-presidências e um guarda uma pasta fundamental. O dinamarquês Dan Jørgensen assume a tutela da Energia e a Habitação. Com esta decisão, Ursula von der Leyen tenta agradar aos socialistas, mas com um foco específico: satisfaz particularmente aqueles não tão alinhados com Pedro Sánchez ou com o chanceler alemão, Olaf Scholz, e que se inspiram mais nas políticas da primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, que adotou políticas migratórias bastante criticadas pelos seus correligionários.
Adicionalmente, a presidente da Comissão Europeia atribui um cargo que causou alguma estranheza. Deu a comissão da Saúde (já existente) e do Bem-Estar dos Animais (a primeira vez que é criada) a Olivér Várhelyi, do Fidesz, partido de Viktor Orbán, que ocupara a tutela do Alargamento no mandato anterior. Os Verdes já questionaram a escolha, apesar de saudarem a criação da pasta do Bem-Estar Animal.
Segundo o Politico, especula-se que este seja um presente envenenado de Ursula von der Leyen a Viktor Orbán, com quem mantém inúmeras divergências. E nem sequer é líquido que Olivér Várhelyi passe nas audições aos comissários, visto que lhe falta experiência nestas áreas. Mesmo na conferência de imprensa, a presidente da Comissão Europeia foi parca em elogios em relação ao húngaro e referiu apenas que vai ser “responsável para construir a União de Saúde Europeia e continuar o trabalho na luta contra o cancro”.
Na próxima Comissão Europeia, Ursula von der Leyen estará rodeada de aliados políticos e de nomes que dificilmente lhe farão sombra. Nos bastidores, a dirigente comunitária soube negociar diligentemente com os chefes de governo para obter aquilo que quis. Numa Europa com um eixo franco-alemão politicamente instáveis, em que Emmanuel Macron não dispõe de maioria na Assembleia Nacional e em que tudo indica que a coligação de Olaf Scholz deverá perder as eleições em 2025, as condições estão criadas para a alemã tomar as rédeas políticas do continente — e sem grande contestação.