“Reconquista.” Foi uma das palavras mais usadas pelo Vox, partido de extrema-direita fundado em 2013, no caminho para as eleições autonómicas da Andaluzia. Inscrito em grande parte dos materiais de campanha, o termo apontava para a expulsão dos mouros da Península Ibérica por parte dos cristãos espanhóis (e também portugueses) ao longo de vários séculos e terminada apenas em 1492.
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Num deles, publicado no Twitter, a promessa era feita: “A Reconquista começará em terras andaluzas”. Tudo isto acompanhado de um vídeo em que o líder do Vox, Santiago Abascal, surge sozinho, montado num cavalo, a passo numa planície andaluza e com uma música do Senhor dos Anéis de fundo. Pode parecer que está sozinho, mas rapidamente isso muda. Logo aparece um segundo cavaleiro à esquerda de Santiago Abascal. E, no plano seguinte, já são mais, dezenas. Já não dá para contá-los, quanto mais pará-los — ou pelo menos assim terá querido o Vox que se pensasse.
O desfecho das eleições autonómicas na Andaluzia, a região com maior população de Espanha, acabaria por ajudar a reforçar essa narrativa. Feitas as contas, o partido de Santiago Abascal conseguiu quase 400 mil votos, o que corresponde a 11% do eleitorado e a 12 deputados em 109 possíveis. O facto de ter ficado em quinto lugar não é mais do que um pormenor, porque o que mais interessa é que, feitas as contas, é o Vox quem tem a chave na mão para permitir ao centro-direita — PP e Ciudadanos — formar o primeiro governo regional da Andaluzia sem o PSOE à cabeça.
[Que partido é este que quer Espanha “orgulhosa do seu passado”? Veja no vídeo]
Não foi por acaso, por isso, que, na hora de celebrar o melhor resultado eleitoral de sempre do partido, o cabeça de lista pela Andaluzia, Francisco Serrano, tenha dito em jeito de celebração: “Vamos trazer a mudança, melhorias e a reconquista”.
O público, erguendo as bandeiras amarelas e vermelhas, em contraste com o verde do Vox, irrompeu em aplausos e respondeu com particular entusiasmo quando o seu líder andaluz pediu-lhes que completassem uma frase, repetindo um esquema que já tinha sido ensaiado noutros comícios.
— Porque nós somos de extrema…
— Necessidade!
— Somos de extrema…
—Necessidade!
A resposta foi, porém, outra, quando o Observador colocou a mesma pergunta a dois politólogos espanhóis na manhã desta segunda-feira, ainda os resultados das eleições andaluzas ecoavam para informação dos mais desatentos. “Sempre suspeitámos que em Espanha havia um eleitorado de extrema-direita e agora, com o Vox, esse eleitorado encontrou um partido à sua medida, mas com uma estética do século XXI”, disse ao Observador a politóloga Berta Barbet, da Universidade Autónoma de Barcelona. Fernando Vallespín, professor catedrático da Universidade Autónoma de Madrid e colunista do El País, colocou o Vox no espaço da “extrema-direita nacionalista tipicamente espanhola”.
Um partido nascido dos escombros do franquismo e do PP
No que diz respeito à ideia de Espanha enquanto país, o Vox é o partido que mais se aproxima daquela que vingou durante os anos de Francisco Franco no poder. Quebrando com o que ficou estabelecido na Constituição de 1978, que consagrou a autonomia de cada região espanhola, o Vox quer “transformar o Estado autonómico num Estado de Direito”. Com isto, o Vox quer dizer duas coisas: retirar competências às regiões em matérias como a educação, saúde, segurança e justiça; e fechar os parlamentos regionais, concentrando todo o processo legislativo em Madrid.
E do lado dos costumes, o Vox assume o eixo mais extremo que existe no meio conservador da política espanhola: é contra o aborto; é contra o casamento homossexual; defende a construção de um muro na fronteira com Ceuta e Melilla para impedir a entrada de migrantes e requerentes de asilo; quer acabar com o apoio estatal a organismos que se assumam como feministas; defende o fim da lei da violência de género e aponta recorrentemente para o perigo de denúncias falsas de violência doméstica, às quais promete uma “perseguição eficaz”. “Nem o PP é assim já, por força das mudanças que a sociedade espanhola foi tendo nos últimos anos, apesar sempre ter havido uma minoria da população que não se sentia representada”, diz Fernando Vallespín.
A génese política e história do Vox acaba por se misturar com a do seu presidente, Santiago Abascal — neto de um franquista e filho rebelde do Partido Popular. Nascido em 1976, ano em que se inicia a Transição de Espanha da ditadura para a democracia, consagrada na Constituição de 1978, Santiago Abascal foi criado numa família da direita. O seu avô foi autarca escolhido a dedo pelo franquismo em Amurrio, no País Basco; e o seu pai, já em democracia, chegou a líder regional da Aliança Popular, que mais tarde resultaria no Partido Popular. O próprio Santiago Abascal chegou a estar filiado no PP, entre 1994 e 2013. Em 2006, ano em que, sob o governo socialista de José Luis Zapatero, foi elaborado o vigente Estatuto da Catalunha, fundou e liderou a Fundação para a Defesa da Nação Espanhola. Mas a postura de Mariano Rajoy perante o crescendo independentista na Catalunha, que considerou branda, fê-lo bater com a porta. Um ano depois, ajudou a fundar o Vox.
O politólogo Fernando Vallespín vê, aliás, na ascensão do Vox uma brecha que as recentes polémicas do PP abriram. Explicando que, depois do franquismo, os franquistas “tiveram de se adaptar ao sistema democrático” e que “encontaram na Aliança Popular um representante digno”, Vallespín diz que o caminho passou, ainda assim, a fazer-se cada vez mais pelo centro-direita quando a União de Centro Democrático (do primeiro Presidente de Governo pós-Franco, o centrista Adolfo Suárez) desmoronou. A partir daí, vingou o bipartidismo. “A competição política do PP, que era o PSOE no centro-esquerda, levou a que houvesse uma pragmatização do voto. O franquismo sociológico passou a sentir-se representado pelo PP”, recorda o politólogo da Universidade Autónoma de Madrid.
Até que, aos poucos, outros desmoronamentos tiveram lugar na política espanhola: o fim do bipartidismo, com novas potências como o Ciudadanos e o Podemos a ganharem um papel de intervenção, em vez de serem meramente decorativos; o processo independentista catalão, que levou à maior crise nacional espanhola deste século; o escândalo de corrupção Gürtel, que resultou num rol de condenações históricas a líderes de topo do Partido Popular e até ao próprio partido, enquanto instituição que beneficiou monetariamente de crimes.
É dos escombros deste desmoronamento que surge o Vox, de Santiago Abascal.
“O Vox é a Catalunha”
Para Fernando Vallespín, o fator que mais contribuiu para o crescimento do Vox foi o processo independentista catalão. “O Vox é a Catalunha. É a reação à rebelião catalã”, refere. E, embora este movimento de extrema-direita e nacionalista coincida com outros que surgem ou se confirmam um pouco por toda a Europa, o politólogo madrileno traça uma diferença fulcral entre o Vox e os seus congéneres europeus: “A grande diferença para o que acontece em França com Le Pen, na Alemanha com a AfD, na Itália com Salvini, entre outros, é que nesses casos os adversários antagonistas são sempre os imigrantes, as elites políticas, inclusive as europeias. Mas, no caso do Vox, o adversário é interno. É verdade que falam na imigração, mas o que mais pesa na mentalidade do Vox é a oposição ao nacionalismo independentista da Catalunha e de outros. É a defesa da construção de Espanha, de uma visão de uma Espanha unitarista, que é do franquismo e da direita espanhola e que cada vez se revê menos no PP”.
Berta Barbet refere também outros exemplos europeus para explicar como o Vox apanha a boleia de uma “mobilização identitária”, que existe não só “por reação ao independentismo”, mas também por questões sociais. “Sempre houve esta parte do eleitorado, sempre suspeitámos que havia um eleitorado de extrema-direita escondido em Espanha. Faltava-lhes era a maneira de ver o país a partir do prisma identitário”, sublinha a politóloga catalã.
Agora, com 400 mil votos no bolso na mais populosa região de Espanha, e que até hoje tinha na sua tradição política uma inclinação para o centro-esquerda, o Vox parece estar mais próximo do poder do que nunca. O centro-direita andaluz, que até agora nunca foi poder, prepara-se para abrir um processo de negociações que terá forçosamente de passar pelo Vox — já que os 26 deputados conquistados pelo PP e os 21 que couberam ao Ciudadanos não lhes chegam para chegar a uma maioria de 55. Para isso, precisarão dos 12 do Vox. Do Partido Popular, o presidente Pablo Casado já deu conta de ter falado ao telefone com Santiago Abascal para chegar a um acordo. E, do lado do Ciudadanos, que chegou a dizer que nunca pactuaria com o Vox, o tom já foi outro esta segunda-feira. Em conferência de imprensa, o secretário-geral do partido naranja, José Manuel Villegas, disse: “Hoje sou incapaz de descartar qualquer cenário”.
E o que se diz do lado do Vox? “Nunca seremos um obstáculo para que haja na Andaluzia uma alternativa à maioria socialista e à corrupção chavista”, disse o número um do partido de extrema-direita na Andaluzia, em alusão ao PSOE e ao Podemos, respetivamente.
Desta forma, com a subida do Vox ao poder no governo regional da Andaluzia, Espanha contará com mais um partido que põe em causa um fator-chave da sua Constituição. Depois dos independentistas catalães, que contrariavam a ideia de que aquela é uma “pátria comum e indivisível de todos os espanhóis”, poderá ser a vez da extrema-direita andaluza, que põe em causa o “direito à autonomia das nacionalidades e regiões”. De cada lado de Espanha, cada um põe em causa partes integrantes do mesmo artigo da Constituição espanhola. Será este um novo ingrediente para o adensar de uma crise que, ainda antes de domingo, parecia não ter fim à vista?
Para Fernando Vallespín, a resposta é afirmativa — mas também encerra nela um fator de previsibilidade. “Em Espanha parecemos viver à força de golpe de 40 em 40 anos, mais coisa menos coisa”, diz. “Já é assim há muito tempo. Em 1874, vem a Primeira República. Quase 40 anos depois, vem a Segunda República e logo a seguir o franquismo. Outros 40 anos depois, veio a Transição. E agora é isto.”