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Walter Isaacson, biógrafo de Leonardo da Vinci: "Leonardo guardou o quadro da Mona Lisa até morrer"

Com 700 páginas, a biografia escrita por Walter Isaacson descreve ao pormenor os cadernos daquele que é, para ele, o génio mais criativo de todos os tempos. E porquê? Porque nunca parou de questionar.

“Sê curioso, incansavelmente curioso.”

Esta é, para Walter Isaacson, a grande lição que podemos apreender com Leonardo da Vinci, 500 anos depois da sua morte. Para o antigo presidente da CNN, autor de uma grande biografia sobre a vida do artista florentino, recentemente publicada em Portugal, Leonardo foi, sem sombra de dúvidas, o génio mais criativo de todos os tempos. E foi-o porque, ao contrário de muitos, soube interessar-se por áreas diferentes e tão distintas como a geologia e a anatomia. “Ele foi um génio em todos os campos. Ele queria saber tudo o que havia para saber em relação a tudo – engenharia, anatomia, biologia, água, arte e escultura. Era uma curiosidade apaixonada”, afirmou o também editor-executivo da Time, por email, ao Observador. Por esse motivo, Isaacson não hesita em inscrevê-lo num grupo restrito de pessoas que tentaram aprender tudo o que havia para aprender sobre tudo.

Isaacson chegou a esta conclusão quando teve oportunidade de ler os cadernos de Leonardo — o famoso Codex Leicester (que pertence a Bill Gates) e outros que reúnem os apontamentos, rascunhos, esboços e estudos que o pintor produziu ao longo dos seus quase 70 anos de vida – quando preparava a sua biografia, publicada em inglês em 2017. O que encontrou naquelas páginas amarelecidas com a passagem dos séculos surpreendeu-o de tal forma que grande parte do seu livro é composta por descrições exaustivas dos manuscritos de Leonardo da Vinci. “Queria acompanhar os leitores na descoberta da alegria que é Leonardo”, justificou, apontando que, no caso do florentino, a faceta de pintor e de cientista andavam de mãos dadas.

O resultado não é de leitura fácil. As quase 700 páginas, divididas em capítulos e pequenos subcapítulos, incluem reproduções a cores de pinturas, esboços e projetos que Leonardo deixou nos seus cadernos, uma lista das personagens mais importantes, uma cronologia, 50 páginas de notas, um índice remissivo que não anda longe disso e uma pequena explicação sobre a moeda usada em Itália em 1500. No final, Isaacson descreve que se pode, e se deve, aprender com Leonardo e explica a razão pela qual o título de “génio” lhe deve ser aplicado. “Espero que concordem comigo em como Leonardo era um génio, uma das poucas pessoas na História que incontestavelmente mereceram – ou, para ser mais exato, conquistaram – esse epíteto. E no entanto, era um mero mortal.” Um mortal que cometia erros, que não sabia latim ou grego, que tinha dificuldades em se concentrar, que raramente acabava um projeto que começava, mas que realizou a Mona Lisa.

A biografia de Walter Isaacson foi publicada em Portugal pela Porto Editora, no passado mês de maio, por altura do aniversário de Leonardo. A edição em inglês é de 2017

Uma das coisas que distingue a sua biografia de Leonardo da Vinci das outras é a forma como descreve exaustivamente os cadernos do pintor. Porque é que decidiu usar os manuscritos de Leonardo como fonte principal para o seu livro?
Há mais de sete mil páginas que sobreviveram miraculosamente. O papel acabou por ser uma soberba tecnologia de armazenamento de informação, ainda legível passados 500 anos, o que é mais do que poderemos dizer, e felizmente, dos nossos tweets no futuro. Leonardo preencheu cada página [dos seus cadernos] com desenhos e apontamentos em escrita especular [ou “escrita em espelho”, que em vez de ser feita da esquerda para a direita é feita ao contrário, da direita para a esquerda, e é sobretudo usada por canhotos, tal como Leonardo] que pareciam ser aleatórios, mas que fornecem informações sobre os seus saltos mentais. Rabiscados lado a lado, existem cálculos matemáticos, esboços do seu jovem namorado endiabrado [Salai], pássaros, máquinas voadoras, adereços de palco, redemoinhos de água, válvulas sanguíneas, cabeças grotescas, anjos, crânios serrados ao meio, dicas para pintores e estudos para pinturas. Adoro as suas listas de afazeres, que têm entradas como “descrever a língua do pica-pau”.

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Teve oportunidade de ver pessoalmente esses manuscritos?
Vi-os em lugares como o Castelo de Windsor, Florença, Milão e Paris. Foi divertido. O Bill Gates tem um dos melhores cadernos, o Codex Leicester, que está cheio de estudos geológicos. Martin Kemp e Domenico Laurenza [especialistas na obra de Leonardo] deram-me acesso às novas traduções em que estão a trabalhar e que vão publicar no próximo ano. A minha assistente, Pat Zindulka, deu-me um conjunto de dois volumes da coletânea de J.P. Richter [historiador de arte alemão conhecido pelo trabalho com os cadernos de Leonardo da Vinci], em italiano e inglês, que tinha pertencido ao marido, o que foi uma maravilha.

Walter Isaacson é presidente da CNN e editor-executivo da revista Time. Escreveu as biografias de Benjamin Franklin, Einstein e Steve Jobs (Michael Kovac/Getty Images for Vanity Fair)

Getty Images for Vanity Fair

Neste livro, parece que estava mais interessado em mostrar os diferentes aspetos do trabalho de Leonardo do que em falar sobre a sua vida. Porquê?
Muitos daqueles que escreveram sobre Leonardo focaram-se sobretudo nos cerca de 15 quadros que ele pintou e pelos quais é mais conhecido. O que me fascinou foram as 7.200 páginas de desenhos e explicações de vários fenómenos que enchem aquilo a que chamamos os seus cadernos. Queria acompanhar os leitores na descoberta da alegria que pode ser Leonardo. Queria dizer: “Hey, pare por um momento e imagine-o a ver um redemoinho de água quando estava prestes a pintar os caracóis do anjo em A Virgem dos Rochedos. Pare por um momento e maravilhe-se com a precisão geológica das formações rochosas”.

Ao focar-se nos cadernos, fez com que a pintura de Leonardo da Vinci fosse atirada para segundo plano. Isso significa que vê Leonardo sobretudo como um homem de ciência e não tanto como um pintor?
O que mais me surpreendeu foi o quanto a sua ciência estava ligada com a sua arte. Na verdade, não penso que ele fizesse qualquer distinção entre arte e ciência. Para ele, eram duas formas de apreciar e descrever a beleza da natureza. Agora, a arte dele ultrapassa de facto tudo o que alguém alguma vez foi capaz de fazer nesse campo, e também na engenharia. Ele era alguém que adorava arte e ciência na mesma medida. Ao colocar-me nessa intersecção, pensei: “Oh, então é assim que a imaginação funciona!”.

"Penso que a sua principal qualidade, aquela que fez dele um génio criativo, foi a sua curiosidade em relação a tudo. Ele foi um génio em todos os campos. Ele queria saber tudo o que havia para saber em relação a tudo."
Walter Isaacson

Escreveu que foi a sua capacidade de combinar arte e ciência que fez dele o génio mais criativo de todos os tempos. Significa que, na sua opinião, depois dele não houve ninguém que fosse capaz de atingir isso?
O problema hoje em dia é que, muitas vezes, não deixamos as diferentes áreas do conhecimento comunicarem entre si. Fazemos isso nas nossas universidades, fazemos isso nós próprios. E o interessante em Leonardo era que ele queria saber tudo sobre o que fosse belo, interessante. Todos os dias fazia uma lista de coisas que queria aprender.

Acho que esta é uma boa altura para surgir um novo Leonardo. Podemos sempre arranjar uma forma de saber o que queremos saber por causa da Internet e das maneiras que temos de realizar uma pesquisa.

Leonardo reunia em si uma série de características que não eram muito usuais. Por exemplo, era filho ilegítimo de um importante notário de Florença, Piero da Vinci, era homossexual, vegetariano e canhoto. Acha que essas particularidades, aliadas também ao contexto social e histórico dos locais onde cresceu e viveu, o ajudaram a torna-se no génio em que se tornou?
Acho que todas essas deficiências aparentes o ajudaram. Ajudaram-no a ser quem foi. Todas essas coisas fizeram com que ele dependesse das suas próprias capacidades e impulsionaram-no a procurar o conhecimento e a dominá-lo. Penso que a sua principal qualidade, aquela que fez dele um génio criativo, foi a sua curiosidade em relação a tudo. Ele foi um génio em todos os campos. Ele queria saber tudo o que havia para saber em relação a tudo – engenharia, anatomia, biologia, água, arte e escultura. Era uma curiosidade apaixonada, que o divertia. Era curioso apenas por ser curioso.

O autor teve oportunidade de ver pessoalmente os cadernos de Leonardo, onde o artista esboçava ideias para pinturas e também máquinas voadoras (TIZIANA FABI/AFP/Getty Images)

AFP/Getty Images

Outro aspeto curioso da sua personalidade era a sua sociabilidade. Ele procurava a companhia dos outros, não era um artista que se isolava, como Miguel Ângelo fazia, por exemplo.
Leonardo foi muito respeitado em vida, como engenheiro e artista. Ele sentia-se confortável na companhia de outras pessoas. Adorava fazer parte da corte do Duque de Milão [Ludovico Sforza], onde estava rodeado de matemáticos, mágicos, arquitetos e artistas. Havia uma classe criativa em ascensão. O ambiente [em Milão] no final do século XV era muito semelhante ao da Bay Area, na Califórnia, na década de 1970, quando estavam a inventar os computadores pessoais e a Internet.

Apesar da sua enorme curiosidade e ritmo de trabalho, Leonardo da Vinci parecia ser incapaz de terminar a maioria dos projetos em que se envolvia. E parecia ter noção disso, uma vez que escreveu: “Dizei-me se alguma coisa foi feita”. Será que ele sentia que tinha falhado enquanto artista e também como cientista? Produziu muito pouco ao longo dos seus quase 70 anos de vida.
Leonardo gostava mais da conceção do que da execução. É por isso que temos muitas invenções que nunca foram feitas, muitos quadros que nunca foram acabados, tratados que nunca foram publicados. É uma pequena falha, mas também algo que o humaniza.

Dizem que ele abandonou as suas pinturas, mas acho que não era bem assim. Quando ele começou a pintar São Jerónimo no Deserto, era um jovem artista em Florença. Pintou os músculos do pescoço [de São Jerónimo] mal, pôs o quadro de lado e ofereceu-o [inacabado] à família de Amerigo Vespucci [um navegador florentino que participou em várias viagens de exploração ao continente americano]. Quando regressou [a Florença] passados 25 anos, depois de ter feito mais desenhos anatómicos, refez os músculos. Descobri, então, que ele não abandonava as pinturas — ele procurava a perfeição. Havia sempre uma pincelada que podia ser acrescentada, achava sempre que podia tornar um trabalho melhor.

"Leonardo gostava mais da concepção do que da execução. É por isso que temos muitas invenções que nunca foram feitas, muitos quadros que nunca foram acabados, tratados que nunca foram publicados. É uma pequena falha, mas também algo que o humaniza."
Walter Isaacson

Escreveu que o seu quadro favorito é a Mona Lisa. Porquê?
O sorriso da Mona Lisa é o culminar de uma vida dedicada ao estudo da arte, da ciência, da ótica e de todos os campos aos quais ele podia aplicar a sua curiosidade, incluindo do Universo e de como nos encaixamos nele. Leonardo gastou muitas páginas dos seus cadernos a dissecar a cara humana para descobrir cada músculo e cada nervo que tocam os lábios. No topo de uma dessas páginas, existe um esboço desbotado do sorriso da Mona Lisa. Leonardo guardou esse quadro desde 1503, quando o começou, até à sua morte, em 1519, e tentou acertar em cada pormenor, camada após camada. Durante esse período, dissecou o olho humano em cadáveres e foi capaz de perceber que o centro da retina vê os detalhes, mas que os cantos são capazes de ver melhor as sombras e as formas. Se olharmos diretamente para o sorriso da Mona Lisa, os cantos dos lábios estão ligeiramente virados para baixo, mas as sombras e a luz fazem com que pareça que estão virados para cima. À medida que passamos os olhos pela pintura, o sorriso oscila.

Ele andava com um caderno quando caminhava por Florença ou por Milão e fazia esboços das expressões e emoções das pessoas que encontrava na rua e tentava relacioná-las com os sentimentos que estariam a sentir. Vemos isso de forma mais óbvia em A Última Seia, mas a Mona Lisa é o culminar de tudo isso porque as emoções que expressa são um pouco esquivas, tal como o seu sorriso. Cada vez que olhamos para ela, parece-nos ligeiramente diferente. É uma pintura que tenta captar as emoções interiores.

A autenticidade do Salvator Mundi, a polémica pintura vendida por um valor recorde em 2015, de que fala no capítulo dedicado às obras perdidas de Leonardo da Vinci, foi determinada por vários investigadores, através de diferentes processos, como descreveu. Contudo, a sua atribuição a Leonardo é, até hoje, alvo de uma acesa discussão. Nunca refere isso na sua biografia. Porquê?
Antes de a pintura ter sido autentificada, existiam evidências históricas de que existia uma igual. Em 2011, este trabalho de Leonardo da Vinci recentemente descoberto surpreendeu o mundo da arte. É uma grande descoberta, só existem cerca de 15 quadros acabados de Leonardo. Os seus esforços científicos e artísticos estão profundamente interligados no Salvator Mundi.

A imagem da capa (créditos: Wikimedia Commons) é o chamado retrato de Uffizi, o nome do museu em Florença onde se encontra em exposição. Durante anos pensou tratar-se de um possível autorretrato de Leonardo da Vinci, uma teoria deitada definitivamente por terra depois da descoberta, em 2008, do Retrato Lucaniano

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