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“Olá. Estamos com um bocadinho de pressa, porque vamos ter uma reunião a seguir, mas achámos que esta seria a altura indicada para falar consigo. Até porque pelos artigos que costuma ler, sempre nos pareceu uma pessoa ambiciosa e empenhada. E se lhe disséssemos que existe uma forma de fazer dinheiro fácil, usando apenas o telemóvel? É o caminho para a liberdade financeira, sem ter horários e sempre a trabalhar com os seus melhores amigos”. Aliciante?
É este o discurso que já agarrou quase mil jovens que fazem parte da YCBM (You Can Be More), que se apresenta como um “movimento jovem empreendedor” português. Prometem liberdade financeira através da compra de um curso da empresa iMarketsLive, que ensina a fazer operações no mercado cambial. Porém, na verdade, existem “fortes indícios de que tudo se trate de um esquema piramidal”. Pior: há fortes indícios de que se trate de uma burla. Quem o diz são os advogados Paulo Cunha Trindade e Diogo Pereira, especialistas da sociedade CMS Rui Pena & Arnaut.
Não é uma opinião isolada. Vários reguladores e supervisores de mercado europeus têm vindo a alertar para o perigo desta operação, replicada em vários países da UE e América Latina. Tudo indica que o curso de formação apregoado pela YCBM seja apenas um pretexto, já que o foco principal do projeto passará pelo recrutamento agressivo de novos membros, todos muito jovens. Um recrutamento que promete oferecer grandes rendimentos, mas que na verdade dá prejuízo a grande parte dos inscritos para alimentar os poucos que estão na cúpula da rede. Se é um jovem universitário ou tem um filho com essa idade, aqui está o vídeo com “O Convite” para conhecer o esquema.
[O vídeo, que mostrava como abordar e convencer novos recrutas, foi entretanto retirado do canal da YCBM, sem ter sido dada qualquer justificação para tal]
https://www.youtube.com/watch?v=2uMPPzW6Jdo
André Alves. 24 anos. Antigo aluno de Engenharia Química do Técnico. Fundador e líder do grupo YCBM. É ele o jovem das madeixas louras que aparece no vídeo com “O Convite”. É ele quem mostra todos os passos e as melhores dicas para convencer outros jovens a entrar na rede. A mensagem tem corrido, rápida, entre os jovens universitários, de boca em boca, pelas redes sociais. Vários universitários confirmaram ao Observador ter sido abordados com a mesma técnica, que reconhecem depois nos vídeos do grupo no YouTube. Frases fortes: “Isto mudou a minha vida“; “Com isto vou reformar os meus pais“; “Esta é a chave para vires a ser rico”.
A YCBM tornou-se numa espécie de culto, com André no topo, e já atraiu quase mil membros. Ou serão apenas 600? A questão do número total de membros, aparentemente tão simples, foi apenas uma das muitas que André Alves não conseguiu esclarecer cabalmente no decorrer de uma entrevista que concedeu ao Observador.
Onde é que a YCBM foi buscar essa estatística? “Eu não me lembro bem. Fico com estas referências na cabeça, mas depois não sei precisar”. Qual o número total de membros? “Há altos e baixos, mas creio que sejam entre 600 e 700 pessoas”. Mas o site da YCBM não menciona mais de 930 pessoas?. “É um dado pouco preciso inserido por quem trata do site”.
Dias depois, o antigo aluno de engenharia química do Técnico — que congelou a matrícula para se dedicar ao projeto — enviou alguns números mais consistentes: a 9 de março, disse André Alves, estavam inscritos 619 jovens pagantes. O site da YCBM mencionava na altura que o projeto contava com mais de 930 pessoas. André disse então que há muitos membros que não pagam mensalidade — chamados os “não ativos” — mas que “acompanham” os eventos do projeto. André Alves não explicou se os números foram propositadamente inflacionados só para atrair mais jovens para a rede. “É um dado pouco preciso”, repetiu. Semanas depois, os números de membros desapareceram da página.
Independentemente do número de pessoas, o caminho é o mesmo para todos: há um convite, em que é utilizada psicologia aplicada ao processo de venda. Tudo para captar a atenção da pessoa; depois, o potencial recruta é reencaminhado para um dos vários eventos organizados pela YCBM, onde lhe explicam todo o projeto. Decorrem em hotéis, hostels e residências dos membros mais antigos, um pouco por todo o país. Num deles, este no Centro de Congressos de Lisboa, a rede reuniu mais de 1.500 pessoas.
Caso o recruta aceite juntar-se à rede, é-lhe enviado um link para se poder inscrever no site. Não se pode inscrever por conta própria, ou seja, não pode ter acesso à formação sobre mercados cambiais sem estar associado a um membro ativo. Na terminologia da YCBM, tem sempre de ser “uma das pernas” de um dos elementos mais antigos. É este sistema que permite aos membros mais antigos receberem em função do número de novos recrutas, mesmo que não tenham sido recrutados diretamente por si.
O pagamento do curso por parte dos novos recrutas não é feito diretamente, mas sim através de um sistema tipo PayPal. Só depois o novo membro está pronto a “aprender” a operar no mercado cambial, ou a fazer o que parece ser o principal objetivo: recrutar outros membros. Mas vamos por partes.
iMarketsLive. A empresa por detrás dos sonhos
Ponto prévio: a YCBM não é uma empresa. Não está registada como tal em lado nenhum. Nem nunca esteve. De início era apenas um grupo de jovens — com “muitos sonhos e ambições” — que se associaram a uma empresa (já lá vamos) para ganhar dinheiro, para “conquistar a liberdade financeira”, como apregoam aos potenciais recrutas. Inicialmente, YCBM até queria dizer “Young Cashback Millionaires”, porque estava associada à empresa Lyoness, que prestava serviços de cashback (de forma simples, cartões que permitem reaver parte do dinheiro gasto em compras).
Só que o desdobrar do acrónimo passou a ser “You Can Be More”. André Alves explica que a mudança não se deveu a alguma má fama das empresas de cashback (sobretudo em fóruns na Internet, e devido a queixas na DECO), mas sim porque passaram a estar associados a outra empresa: a iMarketsLive (IML). André Alves entrou em contacto com a IML em meados de 2017, quando assistiu a uma conferência na qual esteve presente o norte-americano Alex Morton, atual vice-presidente da empresa.
Focus on yourself and you will win faster.
— Alex Morton (@AlexMortonYPR) May 5, 2018
André Alves disse ao Observador que se apaixonou pela visão da IML e considerou que os ideais e o estilo de vida apresentados estavam perfeitamente alinhados com a ideia que ele tinha para a YCBM: “Além da energia e capacidades de liderança que a IML te dá, aqui podemos ter rendimento como clientes“. Foi assim que o grupo de jovens se tornou um veículo da IML. Cada membro do YCBM tem uma relação com a IML, seja como consumidor dos produtos — que é formação em mercado cambial –, seja como revendedor da dita formação. Mas o que é, afinal, a iMarketsLive?
A iMarketsLive é uma empresa norte-americana que oferece um curso online de educação sobre Foreign Exchange (FOREX). Pausa técnica aqui para explicar o que isto é: FOREX é a versão curta de foreign exchange, o chamado “mercado cambial” em português. É, neste momento, o maior mercado financeiro do mundo e baseia-se na procura de lucros com a troca das diferentes moedas a nível mundial.
Mas voltemos à IML. O principal produto da empresa — em teoria — é um curso de educação online, através de vídeo-aulas e livestreams para se aprender a operar em FOREX. Este curso tem um custo de inscrição de 225 dólares (cerca de 200 euros), pagando-se, a partir daí, uma mensalidade de 164 dólares (145 euros), no pacote mais barato. Uma mensalidade tão cara como a propina (média) de uma licenciatura numa universidade pública.
Este “curso” de FOREX tem, no entanto, várias pontas soltas. A começar por um preço questionável. Depois, não tem uma duração limitada — André Alves diz que é “porque há sempre coisas para aprender”. Também não oferece qualquer certificado ou diploma que confirme a aprendizagem. E as “aulas” são dadas por pessoas sem qualquer qualificação legal para tal. Mais uma vez, André Alves tem uma explicação: “Não são educadores certificados, eles estão simplesmente a fazer o trading deles e as pessoas vão acompanhando”.
Até os Termos & Condições da IML parecem mais um “disclaimer” do que uma mostra de confiança no próprio curso. No ponto VI podemos ler que a empresa ressalva que se trata de informação para “amadores”, quando diz que “não oferece qualquer serviço de educação profissional”, recomendando que se procure “educação em trading à parte”. As coisas pioram ainda mais quando lemos, no ponto XIV, que a IML “não fornece qualquer garantia legal de que as informações disponíveis ou obtidas neste site sejam absolutamente precisas e confiáveis”.
Confrontado com isto, André Alves não se mostra preocupado. E até desvaloriza. “Hoje em dia uma pessoa já não confia em certificados. Eu quero é saber se o meu amigo usou isto e se teve resultados”. Uma fé inabalável num curso tão ou mais caro do que uma licenciatura, sem fim, sem certificação final, dada por pessoas não habilitadas para educar e que diz que as informações dadas podem não ser confiáveis.
Para além do curso, a iMarketsLive oferece ainda outro serviço, que parece — este sim — ser a principal atração para angariar clientes: a possibilidade de cada consumidor ganhar dinheiro através do recrutamento de pessoas. Por “apenas” 16,71 dólares (quase 15 euros) de inscrição, e pagando o mesmo valor mensalmente, um membro torna-se distribuidor do curso, recebendo uma comissão consoante o patamar onde se encontre no ranking do chamado “Plano de Compensação”. O patamar é definido pelo número de pessoas que cada membro angaria para a sua equipa. Aqui há algumas regras, muitas delas difíceis de explicar. Por exemplo: para uma pessoa estar qualificada para um determinado ranking só pode ter, no máximo, três pessoas ligadas a si diretamente, disse ao Observador um antigo membro da equipa, logo no início do projeto que ajudou a fundar em Portugal. “Se quiseres recrutar mais uma, ela tem de ir para baixo de uma das três pessoas ligadas a ti”, disse Ricardo Caetano, antigo membro da YCBM e da IML.
Ricardo Caetano foi consumidor e distribuidor, tendo passado por dois patamares do ranking, que começa em Platinum 150. Apesar do nome pomposo, não é mais do que recrutar três pessoas, em troca de 150 dólares mensais. Sobe-se depois para Platinum 600, com 12 membros na equipa, recebendo 600 dólares. Foi este o máximo atingido por Ricardo Caetano no ano e meio em que pertenceu ao projeto. Mas existem nove patamares acima.
Ricardo Caetano começou a notar que a questão do recrutamento tinha grande importância, talvez demasiada importância. Grande parte da comunicação da YCBM passava e passa por aí, havendo inclusive eventos internacionais da IML em que são atribuídos certificados com as classificações dos rankings — em contraste com o curso de formação, para o qual a IML não passa qualquer certificado. O FOREX e a sua aprendizagem pareciam estar em segundo plano, contou Ricardo Caetano ao Observador.
Aliás, foi mesmo esse o motivo da sua saída: “Tive umas discussões com alguns líderes que correram um bocado mal. Tudo porque alguns deles estavam mais focados no recrutamento. Havia um conflito de interesses e estava um bocado farto de estar sempre a recrutar”, disse o ex-membro. O próprio André Alves assume-se sem problemas, dando como exemplo o seu caso: “Eu já ganhei mais dinheiro com a recomendação (recrutamento) do que com o FOREX. Isto porque eu me foco especialmente na recomendação”.
André Alves é o português mais bem classificado do ranking do Plano de Compensação da iMarketsLive. Está em Chairman 10, a receber 10 mil dólares (8.827 euros) por mês. Tudo em recrutamento. Os ganhos com o FOREX, se é que existem, André Alves não divulga. “A IML não permite divulgar publicamente os ganhos com o mercado cambial”, justifica.
Uma forma de trabalhar com a qual Ricardo Caetano não se identificava. Abandonou o projeto no final de 2018. Gostou da experiência e sente-se agradecido, mas quis focar-se no mercado cambial: “Eu queria era fazer FOREX, e é só isso que faço agora. Tenho o meu ritualzinho e graças a Deus está tudo a correr bem”. Vai em breve para Inglaterra estudar mercados.
A grande questão: legal ou ilegal?
A YCBM é, assim, apenas um veículo da iMarketsLive. Tendo em conta tudo isto: a iMarketsLive é ou não ilegal? Segundo Paulo Cunha Trindade e Diogo Pereira, advogados da CMS Rui Pena & Arnaut, “existem fortes indícios de que estamos perante uma estrutura de natureza piramidal”. Um esquema piramidal carateriza-se por ser um negócio com promessa de rentabilidades anormalmente elevadas, em que o pagamento do rendimento é feito à custa das entradas dos novos investidores, sob o disfarce da venda de um “produto”. Estes pressupostos, segundo os advogados, podem aplicar-se à iMarketsLive.
"Crime, disseram eles"
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Segundo os advogados da CMS Rui Pena & Arnaut, para a IML ser qualificada como um esquema ilegal, devem verificar-se os seguintes elementos:
a) intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
b) por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;
c) determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
André Alves diz que é tudo legal. Segundo o líder do projeto, o recrutamento da iMarketsLive apresenta “uma série de regras que permitem que a rede seja legal”, enquadrando-se num negócio legítimo de network marketing. Por exemplo: para que um distribuidor possa entrar no ranking do Plano de Compensação, a iMarketsLive obriga a que pelo menos 55% dos membros da sua rede sejam apenas consumidores do produto e não distribuidores.
Para os advogados da CMS Rui Pena & Arnaut isto não muda nada. Ambos ressalvam que desconhecem todos os pormenores da rede — “as complicadas subtilezas do recrutamento”, nas palavras de André Alves — mas salientam que estas “regras” podem servir para “encobrir” a existência de uma possível ilegalidade e para incentivar o recrutamento de novos membros. Pelo contrário, esta regra até reforça a possibilidade de estarmos perante “um esquema piramidal”.
“Se a quota de 55% de membros exclusivamente consumidores for quebrada — porque algum deles saiu ou porque se tornaram também distribuidores –, a única forma de a pessoa poder recuperar a quota é recrutando um novo membro exclusivamente consumidor, mantendo viva a dependência do recrutamento”, dizem os advogados.
Só que estes não são os únicos argumentos de defesa apresentados por André Alves. O derradeiro até está presente num dos vídeos do canal de YouTube (abaixo). Nele, André Alves e um colega, Diogo Maurício, dizem que um dos principais motivos pelos quais o projeto não se pode qualificar como um “esquema de pirâmide” passa por existir um produto.
https://www.youtube.com/watch?v=KBL-IeZGKZY
Os especialistas da CMS Rui Pena & Arnaut também refutam este argumento. O produto — a tal formação — “parece servir como alibi”: “A ‘formação’ promovida pela iMarketsLive é realizada através de tutoriais transmitidos em canais online e não tem qualquer tipo de certificação. Apenas é ‘reconhecida’ pela própria empresa”. André Alves insiste que é tudo legal, mas sem conseguir explicar: “Eu sei que o negócio está legalizado para operar em Portugal, mas não sei por quem. Sobre essas coisas de advogados eu não sei responder”.
A YCBM promove (e, na prática, vende) uma formação em mercado cambial e, por outro lado, no decorrer da “formação” os recrutados recebem dicas sobre como investir no mercado. Sendo assim, será que o regulador e supervisor dos mercados, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), teria uma palavra a dizer? No site da CMVM constam cinco alertas das suas congéneres europeias sobre o facto de a iMarketsLive estar, alegadamente, a fornecer um serviço de consultoria financeira, algo que não está autorizada a fazer.
Mas, em Portugal, a CMVM não recebeu qualquer reclamação ou queixa contra esta entidade ou contra o veículo que o promove aos jovens portugueses, a YCBM. Supostamente, a YCBM e a própria iMarketsLive apenas vendem um curso de formação, ou seja, serviços de educação, o que não cai na alçada do supervisor. Mas a YCBM e a IML parecem estar quase a pisar a linha que separa a consultoria de mercados da educação.
Num evento da YCBM em que o Observador esteve presente, André Alves diz, para uma plateia de cerca de 50 pessoas, que num dos produtos oferecidos pelo curso “há vários profissionais a dizerem ‘compra agora esta moeda’”, sugerindo a cópia do investimento feito pelo ‘profissional’. É por causa deste limite ténue que as congéneres da CMVM de Espanha, Inglaterra, França ou Bélgica já lançaram alertas quanto à operabilidade da IML nesses países. O comunicado belga chega mesmo a destacar a existência de indícios de um esquema em pirâmide.
Se o regulador dos mercados não encontrou indícios, haverá algum alerta no supervisor da banca — e das transações cambiais — o Banco de Portugal (BdP)? O Observador contactou o BdP sobre o assunto, mas não obteve resposta até à publicação deste trabalho.
Já a associação de defesa do consumidor, DECO, não tem dúvidas. Em resposta a um consumidor que perguntava se o iMarketsLive é um investimento seguro, a associação diz “não”, “mantenha-se afastado”. “Já existem diversos alertas de autoridades europeias de supervisão (Reino Unido, França e Bélgica) sobre a iMarketsLive que corroboram as suspeitas expressas. Sugerimos que encoraje amigos e conhecidos que, eventualmente, possam vir a ser aliciados a entrar no esquema a lerem com muita atenção estes avisos, bem como os nossos alertas sobre esquemas fraudulentos que, ao longo da última década, prometiam ganhos fabulosos através de FOREX. Todos, sem exceção, acabaram por ‘rebentar’, provocando grandes prejuízos aos investidores. É claro que esta não é uma ideia nova, nem original. É melhor manter-se afastado dela”.
Os advogados da CMS Rui Pena & Arnaut ouvidos pelo Observador complementam: “Se isto não é um esquema em pirâmide, não se entende o porquê de toda a promoção ser baseada na necessidade de alimentar a rede […], fazendo esquecer que o ‘produto que vendem’ – segundo a publicidade – já permitia ganhar fortunas. Qualquer empresa que tenha um produto que gera fortunas não investe mais de metade do tempo da sua comunicação na promoção de um subproduto de menor rentabilidade”.
Pior: à luz da legislação portuguesa, os advogados consideram que pode estar em causa uma burla. “A atuação da iMarketsLive poderá ser considerada uma fraude, constitutiva da burla, ou um simples ilícito civil”, dizem os peritos legais. De acordo com o artigo 217 do Código Penal, “pratica o crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, ou determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
O que diz a legislação portuguesa sobre este tipo de esquemas?
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Um suposto “esquema piramidal” entra em confronto com a legislação como se fosse uma burla, dado que os inscritos podem ver as suas expetativas defraudadas. Eis o que diz o Código Penal contra casos destes, no seu artigo 217º:
1 – Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 – A tentativa é punível.
3 – O procedimento criminal depende de queixa.
A hipótese de burla é justificada pelos dois advogados, dizendo que, “da factualidade que nos foi possível analisar, cremos que todo o circunstancialismo criado à volta do negócio da iMarketsLive — do qual fazem parte os vídeos promocionais ou os testemunhos contratados — poderia constituir um dos pressupostos para o preenchimento do crime de burla – factos que o agente astuciosamente provocou para determinar a outros a pratica de atos que lhe causem (a si ou a terceiros) prejuízos patrimoniais”.
Claro que a YCBM pode argumentar que não obrigou ninguém a registar-se. Os advogados contra-argumentam: apesar de ter sido a pessoa a errar, esta só agiu contra o seu património ou de terceiros devido “a um falso conhecimento da realidade”. “Esse seu falso conhecimento nasce, no caso do mero engano, da mentira que lhe é dada a conhecer pelo burlão”, concluem.
Quais são as probabilidades de enriquecer com isto?
Mas será que, pelo menos, as expectativas de enriquecimento criadas pelos angariadores da YCBM são correspondidas? André Alves assume que há dois caminhos para se fazer dinheiro no projeto: a via do mercado cambial, através da formação prestada pela IML; e a via do recrutamento, que foi seguida pelo próprio André Alves.
Um trabalho da Forex Illustrated em 2018 — com as perdas de cada uma das principais corretoras de FOREX dos EUA — fornece um primeiro dado: 77% dos investidores perdem dinheiro. O fundador da YCBM até vai mais longe: “cerca de 95% das pessoas que faz FOREX perde todo o seu dinheiro”.
E no caso do seu “movimento”? “Acredito que a maioria dos membros da YCBM faz mais dinheiro em FOREX do que em recrutamento”. No entanto, não conseguiu apresentar qualquer dado que confirme esta afirmação, que contradiz a generalidade deste mercado, o mais “mais procurado do século”, como diz o movimento.
O Observador insistiu junto de André Alves e de outros membros sobre quanto dinheiro fazem com FOREX. Nenhum quis revelar os seus ganhos ou mesmo a percentagem que estes representam no bolo mensal, argumentando que os membros estão proibidos “pela empresa” de divulgar publicamente ganhos no mercado cambial. Ou seja, ainda que esta “regra” não esteja explícita em nenhum documento, a empresa proíbe os seus membros de fazer aquilo que seria a melhor publicidade ao seu produto: dar provas públicas em como a formação que está a vender resulta, funciona e enriquece.
Mas será que o outro caminho, o do recrutamento, oferece maiores probabilidades de enriquecimento? Mais uma vez, os números são difusos. Durante três semanas, André Alves prometeu enviar a lista completa de membros ativos, mas essa informação nunca chegou, enviando apenas dados incompletos e mesmo contraditórios. O motivo invocado: “É quase impossível eu saber quantas pessoas temos por patamar, não consigo contar toda a gente”.
Assim sendo, é quase impossível de fazer uma radiografia precisa da rede. No entanto, com os dados fornecidos é possível extrair algumas conclusões:
Em Portugal, só há um Chairman 10, que é André Alves. É o único que assumidamente ganhará pelo menos 8.837 euros, só em recrutamento (correspondendo a pelo menos 500 membros associados a si, direta ou indiretamente). Também só há um Platinum 5.000, Tomás Carvalho, que ganhará pelo menos 4.418 euros em recrutamento (que corresponde a 225 membros subordinados).
Só oito pessoas em 619 (a YCBM admite que só estão ativos 619 dos quase 1.000 membros) é que ganham a partir de 1.000 euros líquidos em recrutamento. Para começar a ter acesso a esse tipo de “rendimento” têm de ter pelo menos de 75 pessoas na sua “árvore”.
A grande maioria, a fazer fé nos números totais de membros e nos números de André Alves, estão nos dois patamares mais baixos. No patamar de entrada, Platinum 150, depois de descontado o custo da mensalidade, o novo recruta tem um prejuízo de 28 euros/mês. Isto já depois de ter recrutado três membros. Só começa a ganhar quem tem na sua “equipa” 12 elementos, ou seja quem está no Platinum 600. Mesmo assim, apenas leva para casa 368 euros/mês. Muito longe do “salário mínimo” que um elemento da YCBM apregoava para os Platinum 600 no evento a que o Observador assistiu.
Estas contas partem do princípio que o membro está a consumir — e a pagar — “o curso de formação” em FOREX que está a distribuir, e que é o principal argumento da empresa para justificar a legalidade do esquema. A empresa recomenda fortemente a cada um dos distribuidores que seja um consumidor do curso, pagando o valor inicial e a mensalidade. É o que faz a grande maioria deles, diz André Alves, acrescentando, porém, que tal “não é obrigatório”.
Para além de tudo isto, para sequer haver a possibilidade de se ganhar dinheiro com o recrutamento da IML, os pagamentos têm de passar por um sistema intermediário, nunca caindo diretamente na conta bancária. O mais usado pelo grupo de portugueses é a Paylution, uma espécie de PayPal com um cartão físico. Quer isto dizer que, caso não queiram, não precisam de passar para a conta bancária. Por outro lado, a IML não passa recibos. O antigo número 4 em Portugal, Ricardo Caetano, diz que este é “um dos problemas” da empresa, já que os valores apenas são declarados se a pessoa assim o desejar. André Alves diz que é uma opção da empresa não passar recibo pelo dinheiro que distribui aos seus membros.
Porém, nem esse nem outros problemas parecem incomodar os membros da YCBM, tendo em conta o que se vê na comunicação feita nas redes sociais.
Descapotáveis, viagens e liberdade: os frutos de quem está “jardado”
Os principais espaços de recrutamento e de divulgação do estilo de vida da YCBM são as redes sociais, principalmente o Instagram. O mais comum é ver posts que mostram uma vida despreocupada, na qual os membros apenas gastam uns momentos do seu dia para trabalhar no telemóvel, como se fosse um hobby. Neste momento, a YCBM tem também um canal de YouTube, onde partilha vídeos que mostram isso mesmo: um estilo de vida irrealista, nos quais os membros estão constantemente “jardados”. Traduzindo: de acordo com Ricardo Caetano, estar “jardado” passa por “estar cheio de energia, hyped up, porque é o ambiente que eles tentam transmitir”.
Depois de serem aliciados através destes vídeos que mostram festas, carros de luxo, vivendas e piscinas, os possíveis novos clientes são convidados a assistir a eventos — a que chamam “formações de desenvolvimento pessoal” — organizados em auditórios, hotéis ou casas. Os maiores até agora realizaram-se no Centro de Congressos de Lisboa, no Tivoli ou na Aula Magna. Nestes eventos, passa-se sempre a mesma mensagem: que todos terão liberdade financeira, mas que isso depende do esforço pessoal.
Mas muitos dos que assistem acabam por não perceber exatamente o que tem de fazer para chegar ao sucesso. Pelo menos à primeira. No evento em que o Observador esteve presente, um dos membros afirmou que na primeira formação a que assistiu não percebeu “uma única coisa do que foi dito”. O único aspeto que ficou bem explicado é que tudo dependeria dele, e apenas dele, “para ter independência financeira”.
Os eventos organizados pela YCBM são gratuitos. O que pode levar a situações como a que o Observador constatou: um menor de idade, com apenas 15 anos, sem a mínima noção daquilo que estava ali para ver. “Isto funciona como no Placard, com odds?”, questionou. O desconhecimento de quem ouve não parece ser impedimento para as tentativas agressivas de recrutamento, com a YCBM a sugerir aos potenciais membros que peçam aos pais o dinheiro da inscrição inicial ou mesmo que vendam pertences para angariar a quantia necessária.
“Dinheiro não é um problema. Tenho um rapaz na minha equipa que vendeu a sua PlayStation, todos os jogos e uns bonecos de coleção do Dragon Ball para arranjar dinheiro e poder entrar”, afirmou um dos membros da equipa YCBM aos mais novos.
https://www.instagram.com/p/BnuPhuNh90W/
Como o modelo de negócio assenta no recrutamento, é a aparente vida de luxos e pouco trabalho que atrai novos membros. Tal como o modelo de negócio não resiste a algumas perguntas, também os carros de luxo, as festas e as viagens são “fogo de vista”. Eis alguns “segredos do mágico”: os luxuosos carros mostrados nos vídeos e em fotos, tanto portugueses como americanos, são alugados. André Alves confirma-o. Os elementos da YCBM alugam-nos por algumas dezenas de euros por dia, utilizando-os nos vídeos do grupo. De acordo com o site Turo, por exemplo, um Ford Mustang, de 2014, custa 52 euros ao dia, e um Chevrolet Camaro de 2015 fica por 39.
André Alves admite também que o restante cenário representado nos vídeos e fotos destina-se a “chamar a atenção” e não corresponde à realidade. “Tenho a noção de que, para quem vê de fora, tudo parece mais do que realmente é”, disse a propósito de um vídeo sobre a viagem dos portugueses a Miami, para uma convenção da iMarketsLive.
E até deixa um alerta a quem quer entrar na rede, confirmando os alertas dos reguladores, das associações de defesa do consumidor e dos especialistas legais ouvidos pelo Observador: “A grande percentagem das pessoas que entra na YCBM não vai atingir o grande sucesso que espera”.