Se as emissões de gases com efeito de estufa continuarem ao ritmo atual, cerca de 10% da população mundial poderá ficar em risco de ver o seu território coberto de água nas próximas décadas, de acordo com projeções atualizadas publicadas este mês por um conjunto de cientistas liderado por Benjamin Strauss, climatologista norte-americano que é também o presidente da Climate Central, uma Organização Não Governamental (ONG) que publica regularmente mapas com projeções relativas à subida do nível médio das águas do mar provocada pelo aquecimento global. No caso português, o maior risco é para as zonas estuarinas, incluindo a Ria de Aveiro, a Ria Formosa e os estuários do Tejo, Sado, Guadiana e Mondego. Particularmente ameaçado poderá estar o futuro aeroporto de Lisboa, apontado para a zona do Montijo, que poderá estar parcialmente submersa já nas próximas décadas.
A ferramenta da Climate Central para medir o avanço do mar sobre a terra já é conhecida a nível global e tem sido frequentemente usada por cientistas, jornalistas e ambientalistas para ilustrar o impacto que o aquecimento global terá na orla costeira. O utilizador pode selecionar dezenas de conjugações diferentes que permitem prever um conjunto de cenários médios: pode escolher o cenário climático no que respeita às emissões de gases com efeito de estufa (do mais otimista ao mais pessimista), o ano da análise, o grau de “sorte” associado e ainda a influência ou não das inundações sazonais.
No final, a ferramenta devolve um mapa que mostra a área que o mar roubará à terra.
Agora, os autores destas projeções melhoraram a cartografia de base (o que permite ter uma perspetiva mais rigorosa das regiões afetadas pela subida do nível das águas do mar) e atualizaram um conjunto de dados demográficos associados às previsões climáticas — e as conclusões são contundentes. Segundo uma projeção conservadora, as emissões de gases com efeito de estufa poderão levar a subida do nível do mar a roubar a casa a um décimo da população global ao longo das próximas décadas. Uma projeção mais pessimista eleva este valor até dois terços da população global atual a viver em territórios suscetíveis de ficar abaixo da linha de água, obrigando mega-metrópoles costeiras a investir em medidas de proteção (situadas, sobretudo, em países asiáticos como a China, a Índia, o Bangladesh, a Indonésia ou o Vietname).
“O modelo da Climate Central foi feito a partir de um modelo global do terreno atualizado, um modelo altimétrico da zona costeira, que permitiu melhorar a estimativa”, resumiu ao Observador o físico português Carlos Antunes, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, especialista nas questões da variação do nível do mar e da vulnerabilidade da orla costeira, e um dos autores de um modelo de previsão da subida do nível do mar em Portugal. “Várias cidades típicas, como Xangai ou Miami, viram as suas estimativas revistas em alta. Isto fez com que as previsões da ONU, que projetavam cerca de 200 milhões de pessoas [afetadas pela subida do nível do mar] até ao final do século, aumentassem para 700 milhões. É esta a grande novidade que este trabalho trouxe.”
As projeções atualizadas da Climate Central incluem ainda um elemento novo: um conjunto de imagens compostas que ajudam a visualizar como poderão ficar vários lugares famosos do mundo em diversos cenários de aquecimento global.
Linha costeira Lisboa-Cascais: milhares vivem em território em risco
O único local português incluído nestas imagens da Climate Central é a Torre da Galp, uma estrutura no Parque das Nações, em Lisboa, que poderá ficar totalmente rodeada de água nas próximas décadas caso as emissões de gases com efeito de estufa se mantenham ao ritmo atual.
Quando apontamos o mapa da Climate Central ao território de Portugal continental, um conjunto de pontos saltam à vista em qualquer dos cenários simulados: os estuários dos principais rios e as rias de Aveiro e de Faro. “São as zonas baixas e rasas”, explica Carlos Antunes, sublinhando que no caso de Portugal continental são estes os lugares mais ameaçados. “Qualquer modelo rigoroso, como é este da Climate Central, identifica claramente estas zonas.” O físico explica que os cientistas se preocupam mais com estas áreas do que com as zonas costeiras de praia porque é lá que o risco para as populações é maior: basta pensar numa região como Estuário do Tejo, rodeado por alguns dos concelhos mais populosos do país, com centenas de milhares de pessoas a viver em Lisboa e nas áreas circundantes do estuário.
No caso específico do Estuário do Tejo, em todos os cenários simulados pelo Observador na ferramenta da Climate Central há uma certeza: toda a zona entre os rios Tejo e Sorraia — entre Vila Franca de Xira e Samora Correia — vai submergir a médio prazo. A inundação permanente estender-se-á tão para norte e para dentro, no sentido de Benavente, quanto mais pessimista for o cenário. Mas até no cenário mais otimista o mais provável é que cheguemos a 2100 com toda aquela região abaixo do nível médio do mar. Na cidade de Lisboa e na linha costeira entre Lisboa e Cascais haverá também regiões em risco — e aqui o risco é ainda maior devido ao facto de serem zonas densamente povoadas, com construções até à linha de água.
Aeroporto do Montijo: parte da pista atual submersa em 2030
Mas o caso mais sonante no interior do Estuário do Tejo é o da pequena língua de terra onde se encontra atualmente a base aérea do Montijo — e para onde está apontado o futuro aeroporto de Lisboa. Os vários cenários, do mais otimista ao mais pessimista, apontam para uma certeza: já a partir de 2030, uma parte da língua de terra, incluindo um segmento da pista da atual base aérea, vai estar abaixo da linha média da inundação anual. Isto não significa que o futuro aeroporto esteja já condenado à partida, explica Carlos Antunes, uma vez que a pista do aeroporto será elevada até uma cota de cerca de 5 metros. Ainda assim, o aeroporto não se livra de sofrer com a subida do mar entre 2060 e 2070 — justamente o ano para o qual está apontado o fim da concessão da infraestrutura.
No entender de Carlos Antunes, é “insensato” fazer esta obra porque vai contra o sentido natural da estratégia de mitigação das alterações climáticas: afastar as infraestruturas, de modo gradual e pensado, da costa. “O aeroporto era para ter uma concessão de 40 anos, a começar em 2020, para operar até 2060. Agora, com estes atrasos, se calhar vai operar até 2070. Mas o estudo de impacte ambiental não estudou a longevidade além de 2060”, explica Carlos Antunes, salientando que não faz sentido investir numa solução a prazo. “Mais vale pensar numa alternativa que dê até 2080 ou 2090, que é Alcochete.”
Mas, mesmo assim, também isso poderá ser insuficiente. É que, aponta Carlos Antunes, “a resposta do oceano é muito mais lenta que a da atmosfera“. Ou seja, mesmo que se desse a impossibilidade de as emissões de gases com efeito de estufa pararem por completo já este ano, a resposta do oceano às emissões já feitas até hoje resultará numa continuação da subida do nível da água durante vários séculos, possivelmente um milénio. Por isso, não faz sentido, no entender de Carlos Antunes, pensar todas as infraestruturas para resistirem até 2100: depois disso, o mar não só vai continuar a subir, como vai fazê-lo mais rápido (hoje, sobe a um ritmo de perto de 4 milímetros por ano; em 2100, esta subida poderá dar-se a perto de 1 centímetro anual).
Por isso, para o físico português que tem estudado a subida do nível da água do mar, avançar com o aeroporto do Montijo não é apenas insensato pela obra em si: é também um contrasenso relativamente à estratégia pública de combate e mitigação das alterações climáticas. “Se eu sei que a subida da água vai afetar uma zona, a estratégia é de recuo e abandono. Tenho de recuar, não avançar. Fazer uma obra, mesmo que seja para durar apenas 30 anos, é contra a estratégia. Se há zonas que já são suscetíveis e eu as vou ocupar, isso não faz sentido”, sublinha o cientista, apontando vários exemplos que o preocupam ainda mais do que o aeroporto: um projeto já aprovado de construção para a península de Tróia, a “Cidade da Água” pensada para Almada, o “Ocean Campus” projetado para Algés ou a CUF Tejo já construída em Alcântara, uma das zonas mais vulneráveis de Lisboa
“A CUF diz que o hospital tem uma longevidade de 20 ou 30 anos. Após essa altura, fica obsoleto e pode retirá-lo“, explica Carlos Antunes. “O problema é que o operador privado tem facilidade em vendê-lo, mas este ónus, um dia, vai pesar sobre a câmara de Lisboa, que tem de pensar nisto a longo prazo.”
“As ideias gerais de adaptação climática nas políticas públicas estão bem definidas”, concorda Carlos Antunes. O problema é concretizá-las. “Quando vemos os documentos orientadores, os PDMs, estas intervenções locais, são paradoxais e antagónicas. Há algo que não bate certo. Os princípios básicos estão definidos, mas as decisões práticas são contrárias. Onde estão os objetivos de Paris? Sabemos que o combate às alterações climáticas é antagónico com o crescimento económico. Mas não podemos ir à ONU defender que Portugal é um país verde e depois no terreno vemos isto. A estratégia está a ser construir e ocupar zonas muito apetecíveis do ponto de vista do investimento, mas que são um autêntico tiro na pé no que toca à estratégia para as alterações climáticas.”