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Como começaram os protestos?

Tudo começou na quinta-feira, dia 28 de dezembro, com uma manifestação na segunda maior cidade iraniana, Mashhad.

O protesto inicial terá sido organizado por um grupo de radicais da linha religiosa mais dura que se opõe à ação do Presidente Hassan Rouhani, visto como mais moderado — Mashhad é inclusivamente a cidade de Ebrahim Raisi, candidato conservador que perdeu contra Rouhani nas eleições de abril de 2017. Precisamente por isso, algumas das palavras de ordem ouvidas na manifestação na Praça dos Mártires de Mashhad foram “Morte a Rouhani”.

No entanto, os organizadores rapidamente perderam o controlo das multidões. Nos dias seguintes, os protestos alastraram a outras cidades, como a capital Teerão, e, surpreendentemente, a lugares mais pequenos como Rasht, Hamedan, Kermanshah, Isfahan e até à cidade de Qom, considerada um lugar sagrado para os xiitas. Os manifestantes começaram a queixar-se também dos altos preços, da corrupção e até da natureza do regime. Um dos slogans que passou a ser ouvido foi “morte ao ditador”, numa referência ao Ayatollah Khamenei.

No domingo, o Governo iraniano bloqueou o uso de aplicações como o Telegram, que estava a ser utilizado para convocar manifestações. Na segunda-feira, ocorreram os protestos mais intensos, quando um ataque de alguns manifestantes a uma esquadra da polícia em Qahdarijan resultou em nove mortos (um deles uma criança de 11 anos).

Na quarta-feira, realizaram-se uma série de manifestações pró-regime.

Ao todo, desde o início dos protestos, 21 pessoas morreram. Só na região de Teerão, 450 pessoas foram detidas até à data.

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Qual foi a reação das autoridades iranianas?

Apesar de alguns episódios de violência como o da esquadra de Qahdarijan, regra geral a polícia e o exército têm reagido com contenção — mas essa atitude pode mudar.

Na terça-feira, o ministro do Interior, Hossein Zolfaghari, garantiu que as manifestações foram “refreadas” e que irão terminar em breve. “As forças policiais e de segurança praticaram a tolerância enquanto a propriedade estatal e privada e as bases militares não foram atacadas. Contudo, lidaram de forma firme com os que recorreram à violência”, disse. No dia seguinte, o general Mohammad Ali Jafari, chefe da Guarda Revolucionária, garantiu que a “sedição” tinha terminado.

No campo político, o presidente Rouhani fez uma comunicação ao país no domingo. “As pessoas são livres de expressar as suas críticas e de protestar”, disse, acrescentando que, no entanto, “tal deve ser feito de uma forma que leve à melhoria do povo e do Estado”. Na segunda-feira, Rouhani encontrou-se com os seus ministros, numa reunião que, de acordo com informações oficiais, já estaria previamente agendada.

As palavras mais duras vieram do campo judicial. Mousa Ghazanfarabadi, líder do Tribunal Revolucionário de Teerão, pediu uma ação “forte” por parte dos procuradores. “Obviamente uma das acusações será a de Moharebeh“, explicou, referindo-se ao crime de “guerra contra Deus”, que é punido com a pena de morte.

O Ayatollah Khamenei, líder supremo do país, acusou os “inimigos do Irão” de estarem por detrás desta onda de manifestações. “O inimigo está sempre à procura de uma oportunidade em qualquer fissura para se infiltrar e atacar o Irão”, escreveu no Twitter.

 

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Que motivos contribuíram para esta onda de insatisfação?

Em primeiro lugar, e sobretudo, a insatisfação com a situação económica. Mas não só.

Rouhani tem conseguido manter a promessa de descer a inflação (que registou uma queda de 40% desde a sua primeira eleição em 2013), mas esta continua nos 10%. O desemprego está nos 12% e afeta sobretudo as mulheres e os jovens — um quarto da população mais nova não tem emprego, segundo dados oficiais do Centro de Estatísticas do Irão.

Também as empresas enfrentam dificuldades, em parte devido às sanções norte-americanas que ainda se mantêm. Há dificuldades de acesso a financiamento e os problemas bancários são tais que ainda no ano passado houve filas à porta de algumas agências com clientes que pediam para reaver o seu dinheiro.

Soma-se ainda a corrupção e o anúncio de Rouhani, ao apresentar o novo Orçamento de Estado, de que irá aumentar os impostos nos combustíveis, justificando-o com os custos elevados do financiamento de múltiplas organizações religiosas.

A gota de água, dizem alguns como o professor de Estudos Islâmicos e iraniano reformista Ahmad Sadri, foi a subida de 40% do preço dos ovos, devido ao abate de aves por suspeitas de gripe aviária. Os ovos, como explica a BBC, são essenciais na alimentação das classes mais baixas iranianas.

Muitos iranianos têm aproveitado a vaga de protestos para contestar a canalização de recursos do Estado para questões internacionais (como a guerra na Síria, o conflito no Iémen ou o financiamento de grupos como o Hamas e o Hezbollah). O slogan “Não por Gaza, não pelo Líbano, dou a minha vida pelo Irão” tem sido repetido em algumas manifestações.

As questões económicas afetam sobretudo os jovens, que somam a esses problemas outras queixas. Com uma população na sua maioria abaixo dos 30 anos, os desejos de modernização no Irão têm crescido, razão pela qual Rouhani tem aliviado algumas restrições sociais, como a proibição de concertos ou a detenção por uso incorreto do véu islâmico.

No entanto, como recorda Karim Sadjadpour, analista iraniano da Carnegie, há ainda muito descontentamento social contra o que classifica de Estado “socialmente autoritário”: “Diz o que podemos vestir, o que podemos ou não beber, com quem podemos interagir. Acho que essa é uma fonte de frustração há muito tempo, sobretudo para os iranianos mais jovens”, disse à Slate. De acordo com o ministro do Interior, 90% dos detidos nesta onda de manifestações tinham menos de 25 anos.

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Que papel tem o acordo nuclear na situação atual?

Rouhani garantiu aos iranianos que o acordo nuclear alcançado em 2015 com os EUA, a UE, a Alemanha e restantes membros do Conselho de Segurança da ONU iria trazer mudanças concretas à situação económica no país, devido ao fim das sanções.

Uma dessas mudanças seria na indústria petrolífera, que deveria recuperar com o fim das sanções. Mas, como recorda a Forbes, o Irão não tem sequer conseguido produzir a sua quota máxima estabelecida pela OPEP, já que necessita de investimento. “O Irão não tem o dinheiro, nem o equipamento de que necessita”, explica a revista.

Para além disso, as melhorias na economia iraniana não têm chegado à população. “O acordo nuclear é apoiado em massa pelos iranianos, mas havia expectativas de que traria muito mais desenvolvimento económico”, resumiu Trita Parsi, presidente do Conselho Nacional Iraniano-Americano, à CNN. As sanções reintroduzidas pelos Estados Unidos da era Trump em julho e a falta do prometido investimento estrangeiro têm também frustrado muitos iranianos.

Isso mesmo reforça Nuno Pinto Coelho de Faria, advogado português que faz negócios no Irão há mais de 10 anos. “Quando o acordo foi assinado, eu andava nas ruas de Teerão e percebiam que eu era estrangeiro, pelo fato e gravata, e diziam-me ‘welcome, welcome!'”, recorda ao Observador, sublinhando o desejo de abertura dos iranianos à economia mundial. “Agora há um descontentamento que já se vinha notando por a aceleração económica não se ter verificado após o levantamento das sanções.”

As “prudências normais” do sector financeiro, a que se soma a “instabilidade da administração norte-americana”, têm, segundo o advogado, tornado as transações financeiras lentas. “Isso causa frustração para ambos os lados”, diz, referindo-se a empresas estrangeiras e a iranianos. É mais um factor de descontentamento a somar aos restantes.

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Quem está por detrás destes protestos?

É impossível saber para já. Apesar de terem começado com uma manifestação anti-Rouhani, provavelmente organizada pela fação mais conservadora do regime, a verdade é que os protestos tornaram-se aparentemente orgânicos, sem um rosto definido.

Enquanto alguns criticam os preços altos e culpam o Presidente, outros pedem a morte do Ayatollah — um verdadeiro tabu na sociedade iraniana — e a mudança do regime, tornando difícil unir exigências e queixas tão díspares sob a mesma bandeira.

A dificuldade de identificar a liderança destes protestos tem levado a classe política iraniana a ser cautelosa. “O dilema para os conservadores iranianos é que normalmente culpariam os fantoches dos americanos e dos israelitas, mas desta vez não podem porque querem legitimar as queixas económicas para atacar Rouhani”, resumiu no Twitter Arash Karami, colunista do jornal Al-Monitor.

https://twitter.com/thekarami/status/947150426255761408

Mas do lado dos chamados reformistas também há receios sobre estas manifestações, sobretudo por terem começado com uma manifestação anti-Rouhani. Saeed Kamali Dehghan, ex-correspondente do Guardian no Irão, relembra que muitos estão “calados e perplexos” já que não estão confortáveis com algumas das palavras de ordem ouvidas nas manifestações, de tom nacionalista ou que revelam saudosismo pela monarquia do Xá.

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Quais as diferenças e semelhanças entre estas manifestações e as de 2009?

Em 2009, o Irão foi abalado por uma série de protestos sem precedentes que ficou conhecido como “Movimento Verde”. Em causa estavam os resultados das eleições presidenciais que deram a vitória ao polémico Mahmourd Ahmadinejad, e que os manifestantes consideravam fraudulentos.

Apesar de as atuais manifestações serem as maiores desde a “Revolução Verde”, esta onda de protestos tem características algo diferentes da de 2009. Em primeiro lugar, pela extensão geográfica das manifestações, que, ao contrário de 2009, não começaram em Teerão e ocorreram um pouco por todo o país.

Para além disso, a composição social dos manifestantes é diferente. No “Movimento Verde”, muitas figuras da oposição, ligadas à elite intelectual, apadrinharam os protestos, muitas vezes compostos por estudantes e outros elementos de classe média-alta que viviam na capital. Desta vez, não há figuras políticas conhecidas na multidão, que é sobretudo composta por elementos de classes mais baixas, e sobretudo a viver nas províncias e não em Teerão.

O facto de as manifestações terem começado em cidades tão importantes em termos religiosos como Mashhad e Qom também pode indicar que estamos perante um grupo heterogéneo que inclui elementos mais conservadores, que não estiveram presentes nos protestos de 2009.

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Internacionalmente, quem já reagiu?

A reação internacional com mais espalhafato veio dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump fez uma série de tweets onde tentou politizar as manifestações, avisando primeiro que “o mundo está a ver!” e acrescentando mais tarde que “as pessoas estão finalmente a perceber como o seu dinheiro e riqueza estão a ser roubados e desperdiçados no terrorismo”.

Também o primeiro-ministro israelita aproveitou para felicitar “os corajosos iranianos” na sua “demanda pela liberdade”, numa mensagem em vídeo que partilhou na sua conta de Facebook.

Os russos, aliados do Irão na guerra da Síria, alinharam pela batuta do Ayatollah e declararam ser “inaceitável” a interferência externa que tem desestabilizado a situação no país.

Do lado europeu, a União Europeia avisou que está a monitorizar a situação e relembrou ao Governo iraniano que deve garantir aos seus cidadãos o direito ao protesto pacífico. Sigmar Gabriel, ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, pediu a ambos os lados que se abstenham “de ações violentas” e deixou um recado a Teerão: “Pedimos ao Governo que respeite a liberdade de reunião dos manifestantes e o seu direito a poder manifestar a sua opinião de forma livre e pacífica.”

Também António Guterres repetiu os mesmos apelos enquanto secretário-geral das Nações Unidas e disse lamentar as mortes ocorridas até à data.

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Pode esta instabilidade afetar as relações com Portugal?

Dificilmente.

Portugal e o Irão têm relações diplomáticas há mais de 500 anos, que atravessaram os momentos conturbados da História recente iraniana, como a revolução islâmica dos anos 70 ou a guerra contra o Iraque nos anos 80. O acordo nuclear de 2015 e o levantamento das sanções abriram a porta a mais oportunidades de negócio das empresas portuguesas no país, como explica a Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, que destaca no seu site o aumento do número de empresas no país e das exportações desde a assinatura do acordo.

É pouco provável que uma série de manifestações, por muito aguerridas que sejam, ponham isso em causa. “Pode causar alguma apreensão naquelas [empresas] que estão inclinadas a iniciar uma aventura no Irão. Para as outras não vai ter influência nenhuma, já sabem que é um mercado interessante onde os portugueses são bem vistos e um país onde a opinião política é levada a sério”, resume o advogado Nuno de Faria.

De acordo com o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, os 15 portugueses residentes no Irão não manifestaram para já qualquer espécie de “incómodo ou perturbação” resultantes dos protestos. E o Governo português deixou a Teerão avisos semelhantes aos da UE, pedindo que respeite “o direito à manifestação e ao protesto pacífico”, a fim de que “todas as partes se conduzam de forma a que a presente instabilidade possa ser superada o mais depressa possível”.

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Estamos perante uma revolução?

Muito dificilmente.

Como relembrou o analista Karim Sadjadpour, o Estado iraniano tem um aparato repressivo tremendo, através da sua Guarda Revolucionária e da sua milícia Basij: “Estão fortemente armados, são fortemente organizados e têm experiência com repressão e controlo de multidões”. Portanto, se os protestos continuarem e subirem de tom, o Governo pode recorrer à força e pôr fim a estas manifestações, como aconteceu em 2009.

Por outro lado, não é claro que movimento é este, o que une os manifestantes e até onde estão dispostos a ir. Não é por acaso que muitos comentadores internacionais se têm abstido de falar sobre a situação no Irão, já que para a maioria há mais dúvidas do que certezas neste momento. Um analista inquirido pelo Guardian que preferiu não ser identificado (um sinal revelador da incerteza atual) definiu este momento como “um quebra-cabeças”. “Pode haver outras razões, como rivalidades internas entre diferentes fações, especialmente agora que Khamenei está a ficar mais velho e a corrida à sucessão começa a ficar mais séria”, disse.

Certo é que o momento atual pode revelar-se um teste decisivo para o Presidente Rouhani. Visto como um moderado entre vários radicais islâmicos, irá o líder iraniano endurecer o discurso e as ações a fim de controlar as multidões ou conseguirá manter a situação sob controlo de outra forma? Irá a garantia de Jafari de que a “sedição” chegou ao fim confirmar-se ou será preciso Teerão tomar mais medidas? Essas parecem ser as questões do momento.