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Por que razão estão as PPP na Saúde a ser discutidas outra vez?

O Bloco de Esquerda leva nesta sexta-feira a discussão no Parlamento um projeto de lei para uma nova Lei de Bases da Saúde. Na quarta-feira, Maria de Belém Roseira, que foi ministra da Saúde no primeiro governo de António Guterres, apresentou a “pré-proposta” da Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde.

As propostas do grupo de trabalho nomeado pelo Governo e as do Bloco de Esquerda diferem num ponto essencial: as parcerias público-privadas (PPP) na Saúde.

O Bloco de Esquerda quer que “se faça de uma vez por todas a separação entre o público e o privado”, segundo Moisés Pereira, deputado do partido. O vice-presidente da Comissão Parlamentar da Saúde estende essa separação não só às PPP mas também à “entrega de hospitais a misericórdias”.

A Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, nomeada pelo ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, envereda pelo caminho oposto. A pré-proposta de lei prevê “princípios de articulação e relação entre os vários setores, com todos os prestadores”, ao contrário do que acontece na Lei de Bases em vigor, que assume um regime de concorrência entre o sistema público e o setor privado.

Entretanto, o principal partido da oposição, o PSD, critica a solução do Bloco de Esquerda e aproxima-se da pré-proposta da Comissão de Revisão nomeada pelo Governo. Rui Rio, presidente do PSD, disse que “é muito difícil haver entendimento [do Bloco de Esquerda] com o PSD”. Quanto à apresentação de Maria Belém Roseira, “há, efetivamente, espaço para acordos e para as pessoas se entenderem quanto ao futuro do sistema nacional de saúde”, acrescentou Rio.

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O que são as PPP na Saúde?

Uma parceria público-privada (PPP) é um contrato entre o Estado ou um organismo público com uma entidade privada para a satisfação de uma necessidade coletiva, normalmente numa perspetiva de longo prazo, em troca de uma remuneração.

Em 2003, o governo de José Manuel Durão Barroso explicava uma das vantagens das PPP: “Nos serviços públicos é possível tirar proveito da tradicional melhor capacidade de gestão do sector privado, melhorando a qualidade do serviço prestado e gerando poupanças consideráveis na utilização de recursos públicos”.

As PPP na Saúde envolvem duas vertentes: a gestão do edifício hospitalar e a gestão operacional do hospital. As entidades são separadas. Por exemplo, a PPP do Hospital de Braga envolveu uma construtora (a Edifer, agora no grupo Elevo) e um grupo hospitalar (o José de Mello Saúde).

Segundo a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, que funciona junto ao Ministério das Finanças, as PPP na Saúde representaram 26% do total de encargos das PPP nos primeiros nove meses de 2017.

No caso dos atuais quatro hospitais PPP em Portugal, três deles (Cascais, Braga e Vila Franca de Xira) foram construídos em substituição de unidades já existentes. Apenas o de Loures (Beatriz Ângelo) foi construído para servir, de raiz, a região. A gestão dos serviços clínicos é assegurada pela entidade privada.

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Quando surgiram as PPP na Saúde?

A primeira unidade de saúde a funcionar numa parceria público-privada (PPP) foi o Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, conhecido como Amadora-Sintra. Quatro anos depois de ter sido criado, a gestão deste hospital passou, em 1995, para as mãos do grupo José de Mello Saúde.

Em 2007, o Ministério da Saúde, liderado então pelo ministro António Correia de Campos no governo de José Sócrates, decidiu terminar o contrato de gestão hospitalar, o que teve efeitos no final de 2008.

Quando não conseguiram chegar a acordo para encerramento de contas relativas aos anos de 2004 a 2008, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) e a subsidiária da José de Mello Saúde responsável pela gestão do Amadora-Sintra avançaram para um tribunal arbitral. A José de Mello Saúde reclamava um montante de 30 milhões de euros, mas, em dezembro de 2012, o acórdão do tribunal condenou a ARSLVT a pagar 18,1 milhões de euros.

A ARSLVT instaurou uma ação de anulação do acórdão arbitral e a firma da José de Mello Saúde, ainda com dívidas a pagar aos fornecedores, iniciou um Processo Especial de Revitalização em 2014, segundo um comunicado do grupo ao mercado.

Na sua tese de doutoramento, ainda antes de ser ministro da Saúde, o atual titular da pasta, Adalberto Campos Fernandes, considera que esta parceria não foi uma verdadeira PPP: “Esta relação não pode ser definida rigorosamente como uma parceria público-privada dado que o parceiro privado não foi responsável pela construção, nem pelo financiamento, sendo portanto o risco alocado ao setor público”.

A primeira vaga de parcerias público-privadas na Saúde foi anunciada em 2001, no segundo governo socialista de António Guterres. O programa incluía um total de dez hospitais (oito em regime de substituição de hospitais que já existiam e duas novas unidades). Desta primeira fase foram assinados contratos para PPP em quatro hospitais (Cascais, Braga, Vila Franca de Xira e Loures), mas já nos governos socialistas de José Sócrates, em 2008 e 2009.

O plano das PPP na Saúde acabou por ser condicionado pelo resgate pedido em 2011. O Memorando de Entendimento celebrado entre Portugal, a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu condicionava a celebração de novos contratos desta natureza, “antes de finalizar a revisão das PPP existentes e as reformas legais e institucionais propostas”.

Ainda assim, o Hospital de Loures (Beatriz Ângelo) só viria a abrir portas em pleno programa de ajustamento — sob um governo PSD/CDS-PP — em janeiro de 2012.

A segunda vaga de seis novos hospitais em PPP incluía o Hospital de Todos os Santos (agora conhecido como Hospital de Lisboa Oriental), Faro, Margem Sul do Tejo (Seixal), Évora, Vila Nova de Gaia e Póvoa do Varzim-Vila do Conde. Apenas o Hospital de Lisboa Oriental teve luz verde para avançar, em novembro passado, pela mão do governo socialista de António Costa.

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Quem aprovou as atuais PPP na Saúde?

Todas as quatro atuais parcerias público-privadas (PPP) na Saúde foram firmadas nos dois governos liderados por José Sócrates, quando Ana Jorge era ministra da Saúde.

Contratos de gestão dos quatro hospitais em PPP
Parceria Entidade gestora Data do contrato
Hospital de Cascais HPP Saúde
(Lusíadas Saúde, Amil, UnitedHealth Group)
Fevereiro de 2008
Hospital de Braga Escala Braga
(José de Mello Saúde)
Fevereiro de 2009
Hospital de Loures SGHL
(Fidelidade, Fosun)
Dezembro de 2009
Hospital de Vila Franca de Xira Escala Vila Franca
(José de Mello Saúde)
Outubro de 2010

A administração dos Hospitais de Braga e de Vila de Franca de Xira está entregue ao grupo José de Mello, liderado por Vasco de Mello, enquanto os restantes são geridos por unidades de grupos internacionais: o Hospital de Cascais é da responsabilidade da Lusíadas Saúde, que faz parte do grupo brasileiro Amil, adquirido pelo norte-americano UnitedHealth Group em 2012; o Hospital de Loures é administrado por uma subsidiária da companhia de seguros Fidelidade, que integra o grupo chinês Fosun.

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Quanto custam as PPP na Saúde?

A pergunta é recorrente, mas a resposta está longe de ser consensual. Em primeiro lugar, porque — como nota o Tribunal de Contas, numa auditoria de 2013 — “a análise dos encargos com as PPP na Saúde tem-se centrado nos encargos decorrentes apenas dos contratos de PPP em vigor, em detrimento da análise dos custos do ciclo de vida dos projetos”. Ora, os contratos dos quatro hospitais que funcionam em PPP — Hospital de Cascais, Braga, Vila Franca de Xira e Beatriz Ângelo (Loures) — têm duas vertentes: a gestão da infraestrutura e a muito mais dispendiosa gestão clínica. Só que a gestão de infraestrutura tem um prazo contratual de 30 anos e a gestão clínica apenas 10 (mas renovável).

Sucessivos governos têm optado por contabilizar apenas os “compromissos contratuais assumidos” — ou seja, contando o que decorre do contrato de gestão da infraestrutura e do contrato de gestão clínica em vigor no momento da análise. O argumento é o de que, após os primeiros 10 anos de gestão clínica num determinado hospital, esta pode passar para a esfera pública.

Nessa ótica, as PPP na Saúde — indica o relatório do TdC — teriam um custo estimado em cerca de 4,1 mil milhões de euros.

No entanto, na sua análise, o Tribunal de Contas optou por contabilizar todo o ciclo de vida das PPP naqueles quatro hospitais — 30 anos de gestão de infraestrutura e outros 30 de gestão clínica — terminando em 2042. O custo total destas parcerias ascenderia a mais de 10,4 mil milhões de euros (a preços constantes de 2012, sem contar com a inflação, sem IVA).

No entanto, este é um número que não leva em conta vários fatores. O primeiro é que, “ao contrário do que acontece com outras PPP, como as rodoviárias, as estimativas de encargos apresentadas não são, na sua totalidade, acréscimos de despesa face à situação pré-existente”, indica o Tribunal de Contas. Porquê? Porque os hospitais de Cascais, de Vila Franca de Xira e de Braga substituem unidades hospitalares antigas e o Hospital de Loures vai receber utentes de outras unidades de saúde. Ou seja, parte dos encargos já existiam e decorriam da prestação de serviços de saúde por unidades de saúde já existentes.

Por outro lado, o Estado decidiu não renovar os contratos de gestão dos serviços clínicos dos Hospitais de Cascais (que era válido até final de 2018) e de Braga (2019). Em ambos os casos decidiu abrir concursos para a gestão, com nova parceria. Os atrasos no novo concurso para o Hospital de Cascais, no entanto, implicaram uma extensão do atual contrato de gestão clínica até 2020. Ainda assim, estas decisões políticas poderão — dependendo da futura negociação — ter um efeito em baixa sobre o valor total dos encargos com as PPP.

O Tribunal de Contas ressalva que “o impacto destes projetos na despesa pública tem sido subavaliado”, mas constata, por outro lado, “que existe um maior controlo dos encargos públicos com as PPP das grandes unidades hospitalares, na medida em que existe um processo anual de negociação da produção clínica”.

De acordo com a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, as PPP na Saúde custaram, em 2017, 447,5 milhões de euros líquidos, mais 5,4 milhões que em 2016 e mais 18,5 milhões que em 2015. O Orçamento do Estado para 2018 aponta para a primeira descida anual da despesa decorrente das PPP na saúde desde 2013, para 444 milhões de euros.

Última nota para um relatório encomendado pelo Governo à UTAP, e noticiado em finais de 2016: “A PPP atualmente em vigor no Hospital de Cascais permitiu uma poupança acumulada, no período 2011-2015, de aproximadamente 40,4 milhões de euros, face aos custos clínicos de gestão pública, estimados de acordo com o CPC [custo público comparável] atualizado”.

E não só. Para o grupo técnico, a PPP de Cascais foi vantajosa do ponto de vista económico, de eficiência e de eficácia. Uma gestão pública naquele hospital, salientou, traria mais encargos para o Estado, por exemplo com recursos humanos.

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As PPP na saúde funcionam melhor do que os hospitais geridos pelo Estado?

Nem melhor, nem pior. A avaliação é do regulador dos serviços de saúde, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS), que em 2016 comparou a atividade dos quatro hospitais PPP com cerca de 30 outros hospitais com características semelhantes, mas de gestão pública.

“Os hospitais PPP revelam-se como globalmente eficientes, com destaque para os resultados positivos, indicativos de eficiência relativa, dos hospitais de Braga e Cascais”, escreveu a ERS. A eficiência relativa traduz, em linguagem simples, a relação entre os recursos utilizados e os resultados obtidos.

No entanto, a ERS “não encontrou evidência” de que a gestão hospitalar em regime de PPP poderá levar a uma maior ou menor eficiência relativa na comparação com outros hospitais, “na medida em que não foi possível identificar diferenças estatisticamente significativas entre os resultados dos dois tipos de hospitais”.

E o que analisou a ERS? Por exemplo, a eficácia no internamento, na cirurgia e nas primeiras consultas de especialidade hospitalar.

Na análise à eficácia nos internamentos — a percentagem de internamentos com demora superior a 30 dias e percentagem de reinternamentos em 30 dias — “o desempenho dos hospitais PPP não varia significativamente face à média dos restantes hospitais”.

Já nas cirurgias, a ERS notou que “a capacidade de resolução das necessidades cirúrgicas dos hospitais PPP foi identificada como sendo globalmente superior à média dos hospitais comparáveis do grupo não PPP”, embora as diferenças fossem pouco significativas em termos estatísticos.

Por outro lado, a percentagem de reclamações relativas aos hospitais PPP “foi superior à representatividade que esses hospitais têm no total de hospitais gerais públicos visados”. As reclamações têm vindo a aumentar, sobretudo quando relacionadas com os tempos de espera.

Globalmente, o que sobressai da avaliação da ERS é que, entre os PPP e os não PPP comparáveis, não existem “diferenças estatisticamente significativas”.

Como salienta o regulador: “Não se retira uma ilação global a respeito da vantagem ou desvantagem da gestão em regime de PPP”.

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Qual é a próxima PPP na saúde?

A próxima PPP na Saúde marca um novo ciclo neste tipo de parcerias: as parcerias público-privadas de segunda vaga. O que são PPP de segunda vaga? De forma simplificada: nos atuais quatro hospitais PPP, a gestão de infraestrutura e a gestão dos serviços clínicos são contratualizados e ambas são asseguradas pela entidade privada. Nas PPP de segunda vaga, a parceria já não inclui a vertente de serviços clínicos (a mais dispendiosa).

Foi já com o atual executivo de António Costa que foi dada luz verde ao próximo hospital em regime de PPP (o primeiro de segunda vaga): o Hospital de Lisboa Oriental, a construir na freguesia de Marvila.

O novo hospital substituirá seis unidades existentes, que o executivo considera “dispersas e obsoletas” — o Hospital de São José, os Capuchos, Santa Marta, Curry Cabral, Estefânia e a Maternidade Alfredo da Costa — e implica uma despesa máxima de 415,1 milhões de euros.

O valor está inscrito numa resolução do Conselho de Ministros de novembro do ano passado que autoriza “a realização de despesa inerente à celebração de contrato de gestão para a concessão, o projeto, a construção, o financiamento, a conversação, a manutenção e a exploração do Hospital, em regime de parceria público-privada, no montante máximo de (euro) 415.110.130 a preços constantes de 2017, repartida por 27 anos, com início previsto para 2023. A este valor, acresce o IVA.

Em cada ano económico até 2049, acrescenta ainda, os encargos com a despesa não podem exceder os 15,3 milhões de euros (mais IVA).

Os sucessivos governos já tinham sinalizado como prioritária a construção de uma nova unidade para reorganizar a oferta de cuidados médicos hospitalares na cidade de Lisboa.

Em 2008, no primeiro governo de José Sócrates, chegou a ser lançado um concurso público internacional para o que então era designado Hospital de Todos os Santos (entretanto passou a Lisboa Oriental). O contrato de gestão nunca foi assinado, uma vez que em pleno programa de ajustamento, em finais de 2013, o governo PSD/CDS decidiu não adjudicar o projeto.

O atual governo estima lançar o concurso ainda este ano e, após apresentação de propostas e negociação com o concorrente vencedor, assinar contrato até final do próximo.

A expectativa do Ministério da Saúde é a de que o novo hospital abra portas em 2023, após três anos dedicados à fase de construção.