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O que aconteceu na noite de sábado para domingo, dia 19?

Foi o maior desastre náutico do mar Mediterrâneo num contexto de imigração do Norte de África para a Europa.

Um barco de pesca com 20 metros de comprimento que levava a bordo um grande número de imigrantes sem documentos – entre 700 a 950 pessoas, segundo os relatos de alguns dos 28 sobreviventes – capotou no mar Mediterrâneo. A mesma pessoa que disse ao diário espanhol “El País” que estavam 950 pessoas a bordo afirmou ainda que 200 eram mulheres e 40 a 50 eram crianças. O acidente ocorreu quando o navio estava a 70 quilómetros da costa da Líbia, de onde partira, e a 210 quilómetros da ilha italiana de Lampedusa, o destino pretendido.

A embarcação tornou-se instável após a aproximação de um navio da marinha mercante. A ondulação provocada por este levou a que a maior parte das pessoas nesse barco pesqueiro tem caído para um lado do convés, levando assim a que o barco se virasse. O acidente aconteceu por volta das 00h00 na noite de sábado para domingo.

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Quantas pessoas entram na Europa via mar mediterrâneo? Quantas morrem?

Até à data em que este Explicador está a ser escrito – 20 de abril – as Nações Unidas estimam que tenham entrado 35 mil pessoas na Europa em embarcações ilegais vindas do Norte de África. Depois do acidente de 19 de abril, sabe-se que morreram pelo menos 1600 pessoas neste ano. Para estes contribuíram fortemente o que aconteceu no domingo, onde morreram entre entre 700 a 950 pessoas, e outros quatro afundamentos em fevereiro que, no espaço de poucos dias, levaram 300 vidas.

Os números ganham ainda outra dimensão se olharmos para eles a partir de outra perspetiva. É como se, desde que o ano de 2015 começou, morressem mais de 400 pessoas por mês, 14 por dia e uma a cada 100 minutos. No ano passado, em 2014, entraram 220 194 pessoas na Europa nestas condições, e 3800 morreram ao tentá-lo.

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Quais são as nacionalidades destas pessoas?

Em 2014, 220.194 pessoas tentaram entrar na Europa através do mar Mediterrâneo. A maior parte deles tinha nacionalidade síria. Foram ao todo 66.690 pessoas (30% do total), sendo expectável que muitos deles estariam a fugir da guerra civil que assola aquele país desde março de 2011.

A lista continua assim: Outros (15,7%), Eritreia (15,6%), Afeganistão (5,7%), Mali (4,4%), Gâmbia (3,9%), Nigéria (3,8%), Somália (3,4%), Palestina (2,9%). 12% são ainda de países subsarianos não supracitados.

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Quais são os trajetos que fazem?

São várias as rotas usadas pelos contrabandistas para fazerem chegar imigrantes à Europa um pouco por todo o continente europeu. Ainda assim, são mais frequentes os casos de barcos que partem da Líbia e que vão até a Lampedusa ou à Sicília – ambas ilhas italianas. A rota entre o Egito e as várias ilhas gregas também é comum.

Mas antes de chegarem a estes pontos no Norte de África, muitos destes imigrantes são obrigados a fazer longos trajetos desde o seu país até à costa líbia ou egípcia. Veja-se, por exemplo, o caso de um somali, que tem obrigatoriamente de passar pelo menos pelo Djibouti, depois na Eritreia e pelo Sudão para finalmente chegar ao Egito. Ou alguém da Nigéria, que tem de atravessar o deserto do Saara. São viagens que podem durar meses, com percursos feitos a pé, durante os quais também morrem muitas pessoas por fome ou sede.

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Do que é que fogem?

Fogem da guerra, sobretudo se estivermos a falar de cidadãos sírios e líbios. A Síria e a Líbia já estão em guerra civil desde 2011.

Mas não é preciso estar a decorrer uma guerra para que pessoas queiram escapar de situações em que a vida ou integridade física estão em risco. É o caso de indivíduos que surgem de países como a Somália (país que se mantém sem um governo efetivo desde 1991 e de onde é originário o grupo terrorista al-Shabab) ou a Nigéria (onde os islamistas do Boko Haram são cada vez mais poderosos).

Além do mais, muitos fogem de situações de pobreza extrema nos seus países. Aqui, a pergunta pode ser feita de outra maneira: O que procuram? Aqui a resposta é simples. Condições de vida básicas e um emprego na Europa – algo que nem sempre encontram.

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O que fazem estas pessoas quando chegam à Europa?

A maior parte deles faz um requerimento para que lhes seja concedido o estatuto de refugiado – para tal, precisam de garantir que os seus direitos humanos estão em risco no país de onde fogem, por razões raciais, religiosas, políticas ou de pertença a um determinado grupo.

Vejamos, por exemplo, o caso de uma pessoa que acaba de chegar a Lampedusa. À parte casos em que o indivíduo precisa de assistência médica ou não está em condições para iniciar o processo de pedido de asilo, são recolhidos os dados biométricos (fotografia, altura, impressões digitais) dos recém-chegados. Depois, é formalizado o pedido de asilo. A resposta pode chegar só vários meses depois, dependendo de país para país.

No caso de Lampedusa, em teoria, os imigrantes seriam recebidos num centro de receção. Mas como este tem apenas capacidade para pouco mais de 800 pessoas, muitos ficam fora. E é nessa altura que muitos preferem arranjam maneira de sair da ilha, deslocando-se até outras partes de Itália – onde podem estar legalmente, enquanto aguardam o resultado do seu pedido de asilo.

Por vezes, durante este período de espera, estes imigrantes saem do país de entrada e vão para outros lados. São poucos os que querem ficar em Itália ou na Grécia – os principais pontos de entrada na Europa destes imigrantes – devido às crescentes dificuldades em encontrar ajuda ou emprego nestes países a braços com crises financeiras, sobretudo o último.

Só que o Tratado de Dublin responsabiliza os países de entrada destes imigrantes durante todo o processo de candidatura ao estatuto de refugiados. Por isso, um imigrante que requereu asilo à Itália e que está há mais de três meses noutro país comunitário será reenviado ao país de entrada. Este tratado é bastante controverso, sendo que as maiores críticas partem dos países onde a maior parte destes imigrantes entram: Itália, Grécia, Espanha e Malta.

Aqueles que não conseguem obter o estatuto de refugiados são instados a regressar aos seus países de origem, tanto de forma voluntária ou coerciva.

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Há alguma altura do ano em que estas travessias aconteçam mais? Se sim, porquê?

É verdade que as travessias acontecem durante o ano inteiro, mas também é um facto que há alturas do ano em que estas são mais habituais. Durante os períodos de menos chuva o número de pessoas que tenta passar o Mediterrâneo sobe de forma clara. No inverno, quando a precipitação e o vento se fazem notar com maior severidade, a travessia torna-se teoricamente mais insegura. Por isso, a maior parte das pessoas espera pelo verão para dar o salto para a Europa.

Essa tendência é confirmada pelo número de deteções feitas pela Frontex, a agência responsável pela patrulha das fronteiras marítima e terrestres da UE. Em 2014, contaram-se 220 194 pessoas a tentar fazer este trajeto – 72% das ocorrências foram registadas entre abril e setembro.

Ainda assim, há um dado que importa reter. No último trimestre de 2013, a Frontex contou 16.663 indivíduos em rota para a Europa nestas condições. No período homólogo de 2014, o número disparou para 46.221 – isto é um aumento de 277% do número de pessoas que arriscaram atravessar o Mediterrâneo na altura mais perigosa.

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De onde são os contrabandistas?

É difícil dizê-lo, uma vez que dos 10 234 de contrabandistas detidos pela Frontex em 2014, quase 6 mil surgem com a designação “outra nacionalidade”. Mas a nacionalidade mais comum é a marroquina, com 959 casos, seguindo-se os sírios com 811. Quanto a contrabandistas europeus, a maior parte vem de Espanha (507), Itália (487) e França (417).

Mas estes números dizem respeito a contrabandistas que se dedicam a tráfico humano terrestre, marítimo e até aéreo. E o que os números da Frontex dizem é que apenas 5,7% são detidos em mar alto.

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Que tipo de embarcações são usadas?

A variedade é grande, desde barcos de borracha (em 2013 a Frontex referiu que estas embarcações estavam a ser cada vez mais usadas, sobretudo por subsarianos) até a navios pesqueiros de pequena e média dimensão. Os primeiros, os mais frágeis de todos, correm grande risco de capotarem em situações de mar alto. Já os barcos de pesca, embora tenham uma estrutura sólida, costumam ser perigosos neste contexto porque vão invariavelmente sobrelotados. Consegue imaginar entre 700 e 950 pessoas num barco de 20 metros de comprimento? Foi isso que aconteceu no domingo.

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Quais foram as reações políticas a esta tragédia?

O acidente levou a que fosse convocada uma reunião de emergência entre ministros dos negócios estrangeiros, do interior e outros responsáveis em representação dos 27 países da União Europeia. O encontro aconteceu no Luxemburgo e foi presidido pela Alta Representante da UE para a Política Externa e Segurança. O governo português enviou o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães.

Desta reunião, saiu um acordo de 10 pontos que foi aprovado com unanimidade. Destes, destacam-se o aumento de recursos financeiros e ativos para as operações Triton (centro do Mediterrâneo) e Poseidon (junto à Grécia); combate aos contrabandistas e às suas embarcações; obrigatoriedade de recolha das impressões digitais de todos os migrantes; criação de um programa de cariz voluntário entre os estados-membro de acolhimento de um número limitado de refugiados e um outro de repatriamento rápido de migrantes em situação ilegal; cooperação com a Líbia.

Na verdade, estas medidas não divergem em quase nada, ou mesmo nada, daquilo que já tinha sido acordado numa reunião semelhante em dezembro de 2013, dois meses depois de terem morrido 350 pessoas que queriam chegar a Lampedusa. Na altura, foi aprovado um programa de 38 pontos, mas este problema continuou a crescer.

Logo a seguir ao acidente de domingo, 19 de abril, a reação que mais se destacou foi a do primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi. Mais do que uma declaração formal de pesar pela tragédia, Renzi escolheu adotar um tom crítico, pedindo mais colaboração aos parceiros europeus. “A Itália está a salvar vidas humanas. É um trabalho extraordinário, mas estamos a fazê-lo sozinhos, quase abandonados. É difícil entender, perante estas tragédias que estamos a viver, que não seja produzido esse sentimento de proximidade e solidariedade que a UE tem demonstrado noutras ocasiões.”

Renzi também foi claro ao identificar o inimigo. “O problema não é o controlo do mar, mas sim combater os contrabandistas de pessoas, que são os esclavagistas do século XXI”, adiantando que o seu país já deteve 976 pessoas acusadas por este crime, embora não tenha referido a que período de tempo é que esse número diz respeito.

A embarcação que afundou na noite de sábado para domingo ia em direcção a Lampedusa – uma ilha italiana que é a zona da UE mais próxima da costa da Líbia. É para lá que se dirigem a maior parte dos barcos que partem da Líbia e da Tunísia que pretendem chegar à Europa. Lampedusa entrou para o léxico geral quando morreram 350 pessoas a tentar chegar à ilha a 3 de outubro de 2013.

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Até agora, o que é que a União Europeia tem feito para resolver esta questão?

No dia 18 de outubro de 2013 começou a operação “Mare Nostrum“, uma quinzena depois de terem morrido 350 pessoas ao largo da ilha de Lampedusa. Esta iniciativa do governo italiano contava com cinco navios de guerra. A estes cabia a tarefa de vigiar as águas entre a costa Norte de África, com especial atenção à fronteira marítima da Líbia, os acessos às ilhas de Lampedusa e da Sicília.

A “Mare Nostrum” durou até Outubro de 2013, isto é, um ano. Nessa altura, o governo italiano invocou os custos elevados desta operação – nove milhões de euros por mês. Isto é, 108 milhões de euros vindos diretamente dos cofres do Estado italiano. A UE contribuiu com 1,8 milhões de euros – menos do 2% do bolo total. “O número de pessoas que morrem não é proporcional ao número de euros gastos”, disse na altura Angelino Alfano, ministro do interior italiano.

No decorrer da “Mare Nostrum” morreram 3300 pessoas a atravessar o Mediterrâneo. Há ainda outro número, que não é de somenos: esta iniciativa garantiu que 150 mil pessoas chegassem sãs e salvas à Europa, segundo números da Organização Internacional das Migrações.

Logo depois, veio a operação “Triton“. Bem mais pequena do que a “Mare Nostrum“, esta segunda iniciativa é coordenada pela Frontex e conta com a participação voluntária de 15 países da UE. Portugal é um deles.

A “Triton” é bem menos ambiciosa do que a sua antecessora. Apesar de ter a participação de vários países, esta só conta com 2,9 milhões de euros mensais, desta vez provenientes do Fundo de Segurança Internacional e da própria Frontex. Ou seja, menos de um terço daquilo que só a Itália sozinha gastava com a “Mare Nostrum“.

Geograficamente falando, o seu âmbito também é mais reduzido – em vez de fazer uma patrulha próxima da costa da Líbia, os navios inseridos no programa “Triton” vão até 48 quilómetros da costa italiana. O naufrágio da noite de sábado para domingo aconteceu a 210 quilómetros da mesma.