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O que são as Secretas?

“Secretas” é o nome utilizado para o Serviço de Informações da República Portuguesa (SIRP), onde se insere o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e o Serviço de Informações e Segurança (SIS).

O SIRP não pode ser considerado um serviço de informações, mas um sistema que integra dois serviços de informações: o SIS e o SIED. Os dois serviços estão sob a direção do secretário-geral do SIRP – atualmente, Júlio Pereira. Este, por sua vez, depende do primeiro-ministro.

O SIRP é fiscalizado pelo Conselho de Fiscalização e pela Comissão da Fiscalização de Dados.

A função do SIS é garantir a produção de informações essenciais à salvaguarda da independência nacional e à segurança interna, como prevenir o terrorismo e a espionagem. O código de atuação dos agentes do SIS deve estar enquadrado dentro da Constituição.

O SIED, por outro lado, é o serviço público encarregado de produzir informações que contribuam para a “salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança externa do Estado Português”, lê-se no site dos serviços.

Para cumprir esse objetivo, o SIED analisa, pesquisa e processa informações económicas, sociais e políticas, energéticas e militares, de países considerados prioritários na defesa dos interesses nacionais.

Mas os funcionários ou agentes dos serviços de informações não podem exercer poderes, praticar actos ou desenvolver actividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais.

 

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Existe um manual de procedimentos dos Serviços de Informações e Segurança?

É verdade. João Luís, antigo funcionário do SIED, confirmou-o durante a audiência do caso das secretas, no passado dia 11 de janeiro, no qual é arguido. O ex-espião contou que existe um manual de procedimentos e regras que devem ser seguidas pelos funcionários dos serviços. Tanto de análise, como de técnica, acrescentou.

As regras não são poucas, já que o manual tem 222 páginas. De acordo com uma notícia do jornal i, em março de 2015, os elementos das secretas podem obter informações através de:

  • interceção de comunicações” – dentro destas, encontram-se as de telecomunicações, através de escutas ambientais, ilegais, feitas com microfones ou material técnico. Os agentes de informações podem ainda intercetar outros dados, através de sinais eletromagnéticos, como radares, e de meios eletrónicos, como software informático, que permita extrair conteúdos de emails ou de computadores;
  • vigiar pessoas, mesmo que não sejam suspeitas em nenhum processo-crime;
  • pagar a fontes de informação – as chamadas “fontes humanas”;
  • fontes abertas e documentos não classificados – como a internet;
  • de imagens;

O manual entrou em vigor em 2006 e, lê-se no jornal, tem um glossário técnico que traça as expressões “encriptadas” que um espião deve conhecer.

 

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O que é uma escuta ambiental?

As escutas ambientais captam sons (e imagens) em ambientes fechados, como casas, escritórios ou carros. Assim como vemos em alguns filmes, os emissores de escuta ou de vídeo costumam ser escondidos em objetos que existam no ambiente que se pretende escutar – em molduras, atrás de quadros, por debaixo de mesas ou cadeiras, por exemplo. Podem ser estrategicamente colocados em várias divisões de uma casa ou empresa e o processo é quase automático: captam e logo de seguida emitem os sinais para os recetores. Estes gravam o som ou imagem do local que está a ser monitorizado.

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Isto é legal? Os serviços de informações podem fazer escutas ambientais?

Não. Por isso é que o depoimento de João Luís, antigo funcionário do Serviço de Informações e Estratégias da Defesa (SIED), em tribunal, tem provocado polémica.

É que o arguido do caso das secretas –  atualmente em fase de julgamento e que envolve membros da Ongoing e dos Serviços de Informações – admitiu que os serviços possuem material técnico para fazer escutas ambientais e que esse é um dos procedimentos habituais dos serviços de informações.

Mas as secretas não podem realizar qualquer tipo de escuta, seja ela ambiental ou telefónica. De acordo com a lei, qualquer escuta é considerada um crime público que o Ministério Público (MP) tem obrigação de investigar.

E foi mesmo por causa das declarações de João Luís que a procuradora do MP, Teresa Almeida, extraiu certidão das declarações do arguido para abrir um inquérito sobre as eventuais práticas ilegais dos serviços de informações. Agora, o MP vai abrir investigação às secretas.

Não restam muitas dúvidas. A ser verdade que os serviços de informações recorrem a escutas de outros sem que estes o saibam, a lei do SIED é bastante clara:

A Lei Orgânica do SIED impõe como limite à sua actividade a proibição de serem desenvolvidas actividades de pesquisa, processamento e difusão de informações que envolvam ameaça ou ofensa aos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição e na Lei. Com efeito, o artigo 34º, n,º 4, da Constituição proíbe “toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.

Como os funcionários e agentes do SIED não podem investigar crimes nem instruir processos, também lhes está vedada qualquer interceção de comunicações, trate-se de chamadas telefónicas, correspondência ou quaisquer outras. Na verdade, os artigos 187º e 190º do Código de Processo Penal fazem depender a interceção de quaisquer comunicações de mandado ou autorização de um juiz. Por seu turno, o artigo 18º da Lei de Segurança Interna atribui “à Polícia Judiciária competência exclusiva para efectuar as interceções”, lê-se no site do SIED.

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E podem aceder a faturação detalhada?

Não, os serviços de informações não podem aceder a este tipo de dados pessoais, sob pena de incorrerem num crime.

Aliás, recorde-se, no verão do ano passado o Tribunal Constitucional chumbou uma proposta de lei que alargava as competências das secretas, passando a permitir-lhes acesso a dados bancários, fiscais e de comunicações. As secretas continuaram, assim, sem ter esse poder.

Mas Jorge Silva Carvalho, ex-espião e principal arguido neste processo, admitiu numa das audiências, no final de 2015, que Júlio Pereira, secretário-geral do SIRP, aprovou um manual de procedimentos dos serviços de informações com práticas ilegais, como o acesso a dados das operadoras de telecomunicações móveis. O ex-espião garantiu ainda ter participado na preparação desse mesmo manual.

O arguido confirmou ainda que, enquanto esteve nos serviços, era fácil (e usual) aceder às faturas telefónicas detalhadas de qualquer cidadão, apoiando-se, nas “medidas de autoproteção” existentes dentro das secretas portuguesas.

E foi também o que garantiu João Luís em tribunal, já em 2016: as secretas têm contactos nas operadoras telefónicas que lhes passam informações sobre os seus clientes – dados esses que deviam ser confidenciais, para não pôr em causa a liberdade e garantias dos consumidores.

Mais, admitiu João Luís: os serviços de informações acedem ainda a dados de entidades bancárias, finanças ou segurança social. Mais uma vez, conteúdos que devem estar sob sigilo.

O processo do caso secretas arrancou exatamente daqui: o acesso à fatura detalhada de um jornalista do Público, Nuno Simas, que escreveu um trabalho sobre a situação interna dos serviços de informações. Jorge Silva Carvalho deu ordem, assim, a João Luís, que arranjasse a fatura detalhada do jornalista. Silva Carvalho explicou em tribunal que era importante descobrir quem era a fonte do jornalista dentro dos serviços de informações.

João Luís incumbiu, então, Nuno Dias, outro agente das secretas, para arranjar o tal documento telefónico, neste caso da Optimus. A mulher de Nuno Dias, Gisela Teixeira, era colaboradora da operadora e foi através dela que a lista entrou nos computadores das secretas. Nuno Dias e Gisela Teixeira também são arguidos neste processo.

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Os serviços podem recorrer a "fontes humanas"?

Os serviços de informações recorrem as várias fontes para obter informações. Entre várias instituições, João Luís garantiu, durante o julgamento do caso das secretas, no passado dia 11 de janeiro, que os serviços têm contactos em instituições bancárias, nas finanças ou na Segurança Social. Estas fontes podem revelar-lhes, sempre que necessário, informações pessoais, como saldos bancários de clientes, por exemplo.

O manual de procedimentos das secretas, explicou o jornal i em março de 2015, dispõe de um capítulo dedicado às fontes humanas. Ali explica-se como é que os agentes devem captar contactos e informadores. Para isso, os agentes devem ter em atenção a personalidade da eventual fonte, assim como as suas vulnerabilidades e motivação.

Nenhum destes procedimentos está previsto na Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa: “Os funcionários ou agentes, civis ou militares, dos serviços de informações previstos na presente lei não podem exercer poderes, praticar atos ou desenvolver atividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou entidades com funções policiais”.

Como a lei não é concreta naquilo que os agentes podem fazer, mas diz apenas o que não podem, deve recorrer-se à lei penal. E, desta forma, nenhum dos procedimentos será legal, porque poderá estar a por em causa os direitos e liberdades dos cidadãos – algo só ao alcance da polícia criminal.

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As "fontes humanas" passam informações. E o que é que recebem em troca?

O documento das regras dos agentes diz que existe a possibilidade de fazer pagamentos em dinheiro às fontes: “Procurar que a motivação principal seja monetária, pois o controlo será mais fácil, efetivo e duradouro”, lê-se no jornal i. Mais: “A gestão de fontes humanas é fundamental e dela depende a obtenção de notícias”.

Não existe um valor fixo para pagamentos a fontes, mas é importante que não chame à atenção nem levante dúvidas a outras pessoas. Depois de acordadas, as despesas têm a autorização, ou não, dos superiores.

Mas durante outra das audiências do caso das secretas, Jorge Silva Carvalho revelou que as fontes dos serviços não são sempre pagas em dinheiro. A moeda de troca é, muitas vezes, fornecer outras informações relevantes para a fonte em questão.

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Que outros métodos ilegais utilizam os agentes das secretas?

Em novembro do ano passado, Jorge Silva Carvalho garantiu em tribunal que o ‘modus operandi’ das secretas “é 90% ilegal“.

Ora, além de escutar, vigiar, perseguir, fotografar ou filmar pessoas e ainda aceder a dados pessoais e confidenciais, Jorge Silva Carvalho falou de outros procedimentos utilizados pelos agentes secretos — todos eles relacionados com a comunicação social, como manipulação de jornalistas e de órgãos de comunicação social.

Também João Luís garantiu, no seu depoimento, que o ‘modus operandi’ dos serviços é muitas vezes “marginal” e “incorrecto”, sustentando a revelação de Jorge Silva Carvalho sobre os serviços contarem com o apoio de alguns jornalistas para conseguirem informações.

O ex-funcionário do SIED contou, por exemplo, que as secretas quiseram utilizar uma jornalista para fazer perguntas ao embaixador da Líbia em Lisboa, entretanto dissidente do regime de Kadhafi. Como jornalista, e para não levantar suspeitas, devia entrevistá-lo e incluir algumas questões que o SIED queria ver respondidas pelo diplomata (mas que não podia fazer abertamente por não ser da sua competência): “Umas eram publicadas no jornal e outras ficavam para nós”, explicou o arguido.

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O que é que ainda pode ser revelado?

O julgamento do caso das secretas retoma esta quinta-feira com a audição do arguido Nuno Dias, também ele agente dos serviços de informações. Nuno Dias será confrontado com a forma como obteve, alegadamente com a ajuda da mulher — Gisela Teixeira, na altura funcionária da Optimus — os dados relativos às chamadas telefónicas do jornalista do Público.

E mesmo que não se avance muito mais nas revelações, o modos operandi dos serviços de informações será passado a pente fino no inquérito que será aberto pelo MP.