Um dos blocos da entrevista que Cavaco Silva deu à RTP esta quinta-feira foi dedicado a um dos períodos politicamente mais conturbados da sua presidência: a chamada “crise das escutas” que decorreu antes das eleições legislativas de 2009 e a que o ex-Presidente dedica um capítulo no seu novo livro, com o título “As intrigas políticas do verão de 2009”. Para justificar a sua reação às polémicas desse período, Cavaco remete as questões insistentes do entrevistador para uma comunicação ao país realizada após essas eleições e que, segundo afirmou, não deixou a “mínima dúvida sobre quem era o responsável pela intriga que foi montada”. Vamos ver se o então Presidente não deixou dúvidas e se identificou “o” responsável.
O que está em causa?
Na entrevista à RTP, o jornalista Vítor Gonçalves começou por recordar uma manchete do Público de agosto de 2009 a dizer que a “Presidência suspeita estar a ser vigiada pelo Governo”. No seu livro de memórias presidenciais “Quinta-feira e outros dias”, lançado há uma semana, Cavaco Silva classificou esse título como “absurdo” e como uma “historieta de verão”. O entrevistador perguntou: “Se a história não tinha fundamento, porque não a desmentiu de imediato?”
O ex-Presidente respondeu quase como escreveu no livro recém lançado, que “o título era absurdo” e que para o perceber era preciso ler a notícia. “Eu estava em férias com um jipe carregado de diplomas e entendi que um Presidente da República de bom senso não deve alimentar factos políticos que ao nível jornalístico se pretendem criar”. Perante a insistência na pergunta, Cavaco explicou:
Mas era claro que era absurdo e não tinha fundamento. A resposta que um assessor terá dado a uma jornalista poderia ser dada por mim. É uma resposta para correr com um jornalista que quer criar um facto político. Eu estava em férias e um presidente de bom senso não deve alimentar factos políticos”.
Cavaco Silva diz então que, “antes disso, elementos do PS tinham tentado chamar o PR à campanha eleitoral do PSD, uma estupidez!” Referia-se a declarações de socialistas como Vitalino Canas, José Junqueiro ou Vítor Baptista que motivaram a notícia do Público, apelando ao Presidente da República para esclarecer se membros da sua Casa Civil estavam a participar na elaboração do programa eleitoral de Manuela Ferreira Leite, a líder do PSD, amiga de Cavaco Silva. A seguir, na sequência da entrevista, mas sem ser explícito, o ex-presidente aludiria ao caso dos emails trocados entre jornalistas do Público e que seriam publicados pelo Diário de Notícias uma semana antes das eleições, para denunciarem Fernando Lima — o assessor de imprensa de Cavaco que depois seria afastado — como fonte da notícia do Público sobre as alegadas vigilâncias:
Só mais tarde faço a interpretação total. Não tenho dúvida que algumas pessoas do PS coligados com pessoas de alguns meios de comunicação social tentaram criar uma intriga para influenciar eleições e denegrir a minha imagem. Jornalistas que conhecem o meio muito bem acabaram por denunciar publicamente essa intriga. Até o Conselho da Carteira Profissional acabou por tomar posição. Era um intriga típica de verão”.
Cavaco Silva ainda afirma que, no Algarve, durante as férias, não tinha quem lhe fizesse a leitura dos jornais porque em Belém havia sempre quem lhe sublinhasse o que devia ver: “Leio muito pouca comunicação social”. Na interpretação que faz hoje dos factos, entende que a intenção era colá-lo ao partido: “Pretendia dizer-se: se o PSD ganhar deve-se ao Presidente da República, que não foi isento; se [o PSD] perder, é porque foi derrotado. Percebi já tardiamente que a campanha tinha sido montada com estes objetivos”.
É depois desta intervenção que o ex-Presidente profere a frase citada: “Fiz questão, logo a seguir às eleições, de fazer uma comunicação ao país, não deixando a mínima duvida sobre quem era responsável pela intriga que foi montada”. Sendo assim, é mesmo rigoroso que Cavaco Silva não deixou a “mínima dúvida” sobre quem era responsável pela intriga?
Quais são os factos?
A crise institucional do verão de 2009 tem dois momentos distintos. O primeiro momento desencadeia-se com a notícia do Público a 18 de agosto, com a publicação da manchete sobre a vigilância a Belém e o seguinte lead: “O clima psicológico que se vive no Palácio de Belém é de consternação e a dúvida que se instalou foi a de saber se os serviços da Presidência da República estão sob escuta e se os assessores de Cavaco Silva estão a ser vigiados, confessou ao Público um membro da Casa Civil”. O segundo momento é em setembro, uma semana antes das eleições legislativas, quando o Diário de Notícias revela emails trocados entre jornalistas do Público. Nestes, a propósito de uma outra notícia, revelam-se conversas entre Fernando Lima, assessor do Presidente, e um jornalista daquele diário.
A história daquele diário tinha sido motivada por declarações de dirigentes socialistas como José Junqueiro, Vitalino Canas ou Vítor Batista que apelavam ao Presidente para desmentir a alegada participação de membros da sua Casa Civil na elaboração do programa eleitoral do PSD de Manuela Ferreira Leite. A citação do assessor de Belém — então apenas uma fonte anónima — no Público e que desencadeou a crise, questionava se havia vigilância e escutas ao Presidente:
Como é que os dirigentes do PS sabem o que fazem ou não fazem os assessores do Presidente? Será que estão a ser observados, vigiados? Estamos sob escuta ou há alguém na Presidência a passar informações? Será que Belém está sob vigilância?”
Fernando Lima, no livro intitulado “Na Sombra da Presidência”, escreve que nunca falou em escutas na conversa com a jornalista do Público e sublinha que nem essa palavra foi publicada na peça do jornal, apesar de ter sido. Por sua vez, Cavaco Silva conta, no seu livro, que desligado das notícias durante as férias, nem esta manchete lhe “fixou a atenção”. Tal como afirmou na entrevista desta semana à RTP, Cavaco Silva escreveu nas novas memórias que a frase de Fernando Lima era uma “resposta banal para despachar jornalistas”. “Eu próprio podia tê-la dado”, redigiu. E acrescentou que, embora fosse mentira que colaboradores seus estivessem a participar na elaboração do programa do PSD, isso não lhe suscitaria “qualquer objeção”, porque não estavam limitados nas suas liberdades cívicas. Para Cavaco, aquelas declarações eram uma forma de os socialistas o puxarem para a luta político-partidária.
No dia seguinte à manchete, o próprio José Sócrates recusava a comentar a notícia, que classificava como “disparates de verão”, uma designação próxima da que seria mais tarde feita por Cavaco. Entretanto, uma fonte da Presidência reconfirmava à SIC as desconfianças manifestadas ao Público. O caso ganhava volume. A 19 de agosto, o Público refere pela primeira vez que as desconfianças sobre as vigilâncias tinham começado ano e meio antes, durante uma visita de Cavaco Silva à Madeira, cuja comitiva tinha sido integrada por Rui Paulo Figueiredo, um adjunto de Sócrates para as regiões autónomas e que uma fonte de Belém desconfiava que andava a escutar conversas e a furar o protocolo durante a estadia. No seu livro, Cavaco diz que desconhecia este episódio de alegada vigilância na Madeira.
No entanto, também no livro que escreveu sobre os mesmos factos, Fernando Lima sugere que no caso do “espião-assessor” da Madeira, Cavaco sabia da conversa com o jornalista do Público e que o autorizara: “Quando, num certo dia, dei conta, a um jornalista do Público da estranheza, na Presidência, sobre a presença de um adjunto do primeiro-ministro na comitiva de Cavaco Silva que se deslocou à Madeira, foi porque recebi uma indicação superior para o fazer. Não fiz nada à revelia da minha hierarquia, como nunca o fizera ao longo da minha vida na relação que, por dever de funções, mantinha com a comunicação social. O assunto era demasiado delicado para que eu avançasse sem mais nem menos”.
Fernando Lima revela vigilâncias, espionagem e SMS “controlados” por socialistas
O caso volta a ganhar contornos mais graves um mês depois quando o Diário de Notícias — no dia 18 de setembro, a nove dias das eleições –, publica uma troca de emails entre vários jornalistas do Público. Nunca se apurou como ocorreu aquela violação das comunicações privadas entre jornalistas. O primeiro desses emails era uma mensagem com 17 meses, de um editor do jornal para o correspondente na Madeira, a descrever uma conversa em off com o assessor presidencial Fernando Lima, que lhe tinha manifestado as suspeitas em relação ao assessor de Sócrates, Rui Paulo Figueiredo (e que tinha motivado a segunda notícia do Público sobre as alegadas vigilâncias). E onde eram também dadas indicações para tentar desviar as atenções de quem seria a fonte para alguém da comitiva que fizera a visita à Madeira. A violação do sigilo profissional dos jornalistas do Público ocorrida com divulgação dessa troca troca de emails — que fora suscitada por um segundo artigo do Público de 19 de agosto — faria avolumar as teorias de que havia interceção de comunicações e o caso seria mencionado por Cavaco na comunicação pública ao país, nesse sentido, como veremos adiante.
Perante todas estas polémicas e com a campanha a arder, Cavaco Silva continuava em silêncio e a banhos no Algarve. Só se pronunciou numa comunicação ao país, dois dias depois das eleições legislativas ganhas pelo PS sem maioria absoluta. Nessa comunicação é que era suposto Cavaco Silva não ter deixado “a mínima duvida sobre quem era responsável pela intriga que foi montada”, tal como afirmou na entrevista a Vítor Gonçalves. O que disse então Cavaco na declaração ao país aqui reproduzida na íntegra?
Cavaco sublinhou que em nenhuma declaração pública ou escrita alguma vez o PR tinha mencionado quaisquer “escutas” e reafirmou que só o Presidente fala em seu nome. Recordou que no Algarve foi “surpreendido” com “declarações de destacadas personalidades do partido do Governo exigindo ao Presidente da República que interrompesse as férias e viesse falar sobre a participação de membros da sua casa civil na elaboração do programa do PSD” o que, de acordo com a informação que lhe foi prestada “era mentira”. E referiu ter considerado “graves aquelas declarações, um tipo de ultimato dirigido ao Presidente da República”.
O Presidente da República acrescentava ainda que aquelas declarações tinham como objetivo “puxar o Presidente para a luta político-partidária, encostando-o ao PSD”, apesar de todos saberem que ele se considerava “particularmente rigoroso na isenção em relação a todas as forças partidárias”.
Na sua comunicação, Cavaco diria ter sido à luz dessa vontade de o PS o arrastar para a luta que interpretou as “interrogações” atribuídas a um membro da sua Casa Civil — sem mencionar o nome de Fernando Lima –, das quais garantiu não ter tido “conhecimento prévio”. Ainda manifestou “algumas dúvidas quanto aos termos exatos em que possam ter sido produzidas”. Estava a falar das primeiras notícias do Público. Ao mesmo tempo, apesar de anunciar o afastamento de Lima de funções (embora mantendo-o em Belém) de certa forma desculpava-o nestes termos: “Mas onde está o crime de alguém, a título pessoal, se interrogar sobre a razão das declarações políticas de outrem?”
Cavaco Silva também aludiria à identificação da fonte do Público através do Diário de Notícias: “A mesma leitura fiz da publicação num jornal diário de um email, velho de 17 meses, trocado entre jornalistas de um outro diário, sobre um assessor do gabinete do primeiro-ministro que esteve presente durante a visita que efetuei à Madeira, em Abril de 2008. Desconhecia totalmente a existência e o conteúdo do referido email e, pessoalmente, tenho sérias dúvidas quanto à veracidade das afirmações nele contidas. Não conheço o assessor do Primeiro-Ministro nele referido, não sei com quem falou, não sei o que viu ou ouviu durante a minha visita à Madeira e se disso fez ou não relatos a alguém.” O próprio Presidente diria que não atribuiu “qualquer importância” à presença do assessor na visita.
No entanto, Cavaco lançaria mais questões durante aquela que terá sido a mais controversa das suas comunicações ao país: “A primeira interrogação que fiz a mim próprio quando tive conhecimento da publicação do email foi a seguinte: Porque é que é publicado agora, a uma semana do ato eleitoral, quando já passaram 17 meses?”
O próprio Presidente daria a resposta: “Liguei imediatamente a publicação do email aos objetivos visados pelas declarações produzidas em meados de Agosto. E, pessoalmente, confesso que não consigo ver bem onde está o crime de um cidadão, mesmo que seja membro do staff da casa civil do Presidente, ter sentimentos de desconfiança ou de outra natureza em relação a atitudes de outras pessoas.”
Em cima desta declaração, Cavaco faria uma ligação direta entre a divulgação das comunicações internas do Público com a segurança informática do próprio Palácio de Belém, talvez a sua declaração mais polémica dessa noite, o que faria acentuar ainda mais o clima de suspeição:
“A segunda interrogação que a publicação do referido email me suscitou — disse então Cavaco Silva — foi a seguinte: Será possível alguém do exterior entrar no meu computador e conhecer os meus emails? Estará a informação confidencial contida nos computadores da Presidência da República suficientemente protegida?” Foi então que anunciou que naquele mesmo dia tinha ouvido “várias entidades com responsabilidades na área da segurança”. E informava o país de que ele próprio não estava seguro, o que alimentava ainda mais a história das escutas:
Fiquei a saber que existem vulnerabilidades e pedi que se estudasse a forma de as reduzir”.
Cavaco ainda diria que um Presidente da República tem de saber enfrentar “graves manipulações, mas tem que ser capaz de resistir”, mesmo que isso “lhe possa causar custos pessoais”. Para não ceder a pressões, entendeu que devia manter-se “em silêncio durante a campanha eleitoral”. Finalmente, fazia saber que tinham sido ultrapassados “os limites do tolerável e da decência”.
Mais tarde haveria notícias de que tinha sido mesmo mandada efetuar uma ‘limpeza’ informática ao palácio.
Conclusão
No livro “Quinta-feira e outros dias”, Cavaco Silva diz com alguma habilidade quem foram os responsáveis por toda aquela conspiração, mas nem aí aponta para nomes e atribui a interpretação a terceiros: “Algumas pessoas amigas contactaram-me para alertar para a ‘tenebrosa’ máquina de propaganda do PS, que teria montado uma operação para minar a minha credibilidade institucional e pessoal”. No máximo, atira a uma formulação vaga de setores do PS, sem explicitar no nome de José Sócrates: “Foi então que decidi juntar os factos e procurar interpretar a intriga e a maquinação que um setor do PS, com a participação de alguns meios de comunicação social tinha montado”. Nesse capítulo, não explica os argumentos que usou na comunicação ao país, nem porque resolveu tornar públicas as suas dúvidas sobre a segurança informática do palácio presidencial.
Sendo assim, na sua comunicação ao país em setembro de 2009, Cavaco não deixou “a mínima duvida sobre quem era responsável pela intriga que foi montada”, tal como disse na RTP? Não. As palavras do ex-presidente da República na RTP podem ser classificadas como equívocas ou enganadoras quando tenta “despachar” o jornalista que o entrevistava remetendo-o para a declaração que fizera ao país em setembro de 2009. No entanto, nessa comunicação também ela cheia de ambiguidades, Cavaco Silva não identifica de forma inequívoca quem montou a intriga. O mais longe que vai é na acusação ao PS de o querer envolver no combate político e sugere, de forma vaga, que foram os socialistas a ultrapassar os “limites do tolerável e da decência”. Chega mesmo ao ponto de ligar a fuga do email do Público para o Diário de Notícias com a própria segurança das comunicações da Presidência da República, lançando mais dúvidas sobre se afinal achava que havia escutas (dando aparente razão ao assessor caído em desgraça e entretanto demitido de funções e remetido, segundo o próprio, para o ‘sótão’, sem relações com o casal presidencial). Lida a sua comunicação, percebe-se que está a atirar ao PS, mas não se pode concluir que Cavaco aponte sem mínima dúvida quem foi “o” responsável pela “intriga que foi montada”.