Um arraso sobre políticos, justiça, jornalistas e não só. O texto atribuído a Clara Ferreira Alves que voltou este mês a ser partilhado no Facebook — acontece regularmente, há mais de uma década, acumulando sempre ‘gostos’ e partilhas em redes sociais e blogues — não poupa nas críticas que faz a “cavalgaduras” como José Sócrates ou Armando Vara, a um público “acrítico, burro e embrutecido”, a jornalistas que se “prostituem”, a uma justiça “cega, surda, muda, coxa e marreca”, resumindo tudo ao “maior fracasso da democracia portuguesa”. Problema: Clara Ferreira Alves nunca escreveu nada disto.

Publicação mostra texto falsamente atribuído a Clara Ferreira Alves.

O longo texto, que dispara críticas para todos os lados e levanta dúvidas sobre processos judiciais antigos, como o caso Casa Pia ou o desaparecimento da criança britânica Madeleine McCann na praia da Luz, volta a ser apresentado como um artigo que Clara Ferreira Alves teria escrito e publicado no seu habitual espaço de crónica na revista E, do Expresso. E na verdade, esta não é sequer a única versão do texto que circula: numa pesquisa pelo suposto título do texto — “Este é o maior fracasso da democracia portuguesa” –, encontra-se um outro escrito, também atribuído a Clara Ferreira Alves e publicado em vários blogues, mas com conteúdo diferente.

Nesta segunda versão, o tal “fracasso da democracia portuguesa” tem a ver com o antigo presidente e primeiro-ministro Mário Soares. Na publicação mais antiga desta versão que o Observador encontrou, em maio de 2009, num blogue ainda ativo, elenca-se ironicamente uma série de exemplos de “lucidez” de Soares (começa pela “lucidez que lhe permitiu escapar à PIDE e passar um bom par de anos num exílio dourado em hotéis de luxo de Paris”). Da forma como conduziu o processo de descolonização às viagens que fez enquanto presidente da República, rematando com uma crítica à sua última corrida a Belém (“passou por cima de um amigo, Manuel Alegre”), todos os pontos do texto arrasam Soares.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Acontece que, efetuando uma pesquisa pelo nome do texto, não existe qualquer registo de nenhuma crónica com este conteúdo nas revistas do Expresso. Além disso, tanto Clara Ferreira Alves como ex-diretor do Expresso Henrique Monteiro já desmentiram por diversas vezes que a cronista alguma vez tenha assinado qualquer um destes textos.

A 16 de abril de 2011, numa crónica publicada na revista do Expresso (era, na altura, a revista Única), Clara Ferreira Alves já se queixava de um texto “falsamente assinado” por si e que circulava “na net como um vírus”. Nesse artigo, em parte disponível ainda no site do jornal, a cronista dizia, aliás, já ter feito desmentidos anteriores: “O texto começou a circular há cerca de dois anos e apesar dos desmentidos que entretanto fiz, tanto no programa “Eixo do Mal” como numa nota nesta coluna, o texto continua a circular e continuo a receber mails tanto de admiradores (!) do texto como de leitores que acham surpreendente o ataque a um amigo meu”. Ou seja, Clara Ferreira Alves começava por desmentir o texto relativo a Mário Soares. “A essência do texto, escrito num estilo truculento e pedestre, é a difamação de Mário Soares. Não se trata de um pequeno insulto, porque o texto, além de ser fraudulento e usurpar cobardemente o meu nome e a minha assinatura, é vexatório e difamatório para um ex-primeiro-ministro e um ex-Presidente da República”.

A cronista explica, aliás, o processo: “Quando o texto apareceu, tanto Mário Soares como eu optámos por desvalorizar a sua existência. Não era, por essa altura, um texto tão multiplicado e expandido como hoje. Quem o pôs a circular teve o cuidado de o enviar para personalidades socialistas e foi um dirigente socialista que alertou o Expresso para o texto. Que eu desconhecia. Uma pessoa conseguiu também por essa altura traçar o texto num blogue de direita com o título ‘Nonas’, onde o texto era publicado com o meu nome. Hoje, são às centenas os blogues que o reproduzem”. Mas a cronista também desmentia a outra versão do texto, que o Observador reproduz acima: “Além deste texto, circula ainda outro, cujo título não recordo, também falso, em que insulto o Parlamento e chamo aos deputados e políticos “cavalgaduras”. É um texto de ódio e odioso, tão pedestre como o anterior, e quem estiver habituado a ler-me detetará que nunca poderia escrevê-lo”.

Também Henrique Monteiro, em 2012, já enquanto ex-diretor do Expresso, publicou um texto de opinião chamado “O lixo da internet” em que mencionava os textos falsos, ou apócrifos: “A Internet está cheia de lixo, e isso é sabido. (…) Enquanto diretor do Expresso tive de desmentir umas cem vezes um suposto texto de Clara Ferreira Alves sobre Mário Soares que circulou por tudo quanto é sítio”.

Conclusão

Este post é falso. Não existe qualquer registo de que Clara Ferreira Alvez tenha escrito um texto sob o título “Este é o maior fracasso da democracia portuguesa”, fosse para atacar a Justiça portuguesa ou para criticar Mário Soares. Tanto a cronista como o ex-diretor do Expresso Henrique Monteiro já desmentiram várias vezes esta informação, que continua a ser partilhada no Facebook e em blogues ainda ativos, ao longo dos últimos dez anos.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

IFCN Badge