Uma publicação no Facebook afirma que, em 1949, ano de nascimento de António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e antigo primeiro-ministro português, havia tantos glaciares no planeta como agora, volvidos 72 anos — 130 mil, especifica a imagem. A contagem é mencionada para desvalorizar o combate às alterações climáticas, tema regular nos apelos de Guterres, argumentando que quem não concorda com o líder da ONU será classificado de “negacionista”.

Vários dados estão errados nesta publicação, mas o mais importante é que, mesmo que o número de glaciares na Terra se mantivesse o mesmo nas últimas sete décadas, isso não seria um bom indicador das alterações climáticas. É que, numa atmosfera em aquecimento, o número tanto pode diminuir porque alguns glaciares derretem e desaparecem, como pode aumentar porque um grande glaciar se desintegra em partes mais pequenas. Depois, tudo depende da definição que cada organização utiliza para uma massa de gelo passar a ser chamada “glaciar”, conforme a quantidade de material que carrega.

A publicação em análise.

Michael Zemp, diretor do Serviço de Monitorização Mundial de Glaciares, a entidade científica de referência no estudo de glaciares, explica ao Observador que as imagens de satélites têm demonstrado uma “clara tendência” dos glaciares globais para derreterem numa escala que tem acelerado nas últimas décadas. Por exemplo, numa escala temporal de décadas, e em regiões definidas, “houve períodos intermitentes de avanços glaciares”, com ressurgimento de mais massas geladas, nos Alpes entre os anos 70 e 80, na costa da Noruega nos anos 90 ou atualmente nas Montanhas Cunlum (China).

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Mas, globalmente, o derretimento dos glaciares contribuiu em cerca de 30 milímetros para um aumento do nível médio da água do mar desde 1960, com uma aceleração de um milímetro por ano nos últimos tempos, como está descrito no site do Serviço de Monitorização Mundial de Glaciares. Parece um aumento ligeiro? Imagine um enorme cobertor de água com três centímetros de espessura no topo da superfície marítima, que já cobre 71% do planeta e tem uma área de 361 milhões de quilómetros quadrados.

Michael Zemp, que dedicou a vida académica à contagem de glaciares a nível global — é precisamente esse o tema da tese que publicou em 2012 —, diz que a estimativa mais recente e rigorosa do número de glaciares é do Randolph Glacier Inventory: 215.500, indica o inventário baseado em imagens de satélite captadas em 2000, que cobriam 705.740 quilómetros quadrados naquela época. Quantos eram em 1949, quando António Guterres nasceu? Ninguém sabe. Mas o mais certo é o número ter mesmo diminuído desde que o secretário-geral da ONU veio ao mundo.

O especialista indica que o valor apontado na publicação pode ser uma referência ao número total de glaciares registados numa outra base de dados: o Inventório Mundial de Glaciares, que se baseia principalmente em mapas topográficos e imagens aéreas captadas em meados do século XX, como pode ser consultado aqui. Mas esses números estão ultrapassados, garante Michael Zemp: “O Inventório Mundial de Glaciares é uma base de dados histórica que não está completo. É originária de um período temporal, os anos 80, em que o armazenamento digital não era possível. O inventário não está a ser continuado e foi substituído pelo Randolph Glacier Inventory”.

Conclusão

Não se pode afirmar que o número de glaciares em 2021 seja o mesmo que existia quando António Guterres nasceu: em 1949, com todas as limitações tecnológicas, não era possível contabilizar os glaciares que existiam no planeta, mas a tendência desde então até agora é que eles tenham diminuído. As estimativas mais recentes e rigorosas, que são de 2000, apontam para 215.500 glaciares. Em 1949, tendo em conta a tendência, deviam ser ser mais.

De qualquer modo, o número de glaciares não pode ser apontado como um bom indicador das alterações climáticas: ele pode diminuir porque as massas de gelo derretem à conta do aquecimento global; ou pode aumentar porque os grandes glaciares se desintegram em blocos mais pequenos.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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