Várias publicações que se tornaram virais no Facebook desde o início do surto da pandemia em Portugal dão conta de que “a verdadeira pandemia” é o facto de os deputados da Assembleia da República terem mais assessores do que os doentes têm médicos ou enfermeiros para os tratar. Numa das publicações pode mesmo ler-se que há “uma enfermeira para 20 pacientes” e “30 assessores para 1 deputado”. Noutra publicação, cuja imagem parece vir originalmente do Brasil, lê-se que há “um médico para 10 pacientes na UTI” (Unidade de Tratamento Intensivo, em português do Brasil), assim como “uma enfermeira para 20 pacientes da UTI” e “50 assessores para um deputado”.

A primeira publicação, cuja frase aparece num fundo vermelho, foi partilhada por um utilizador do Facebook em Portugal, a 3 de abril e, segundo os dados do Facebook, chegou a ter mais de 288 mil visualizações e milhares de partilhas. O ponto é: os deputados, em Portugal, têm assim tantos assessores? A resposta é não, embora não seja possível confirmar exatamente a proporção de assessores por deputado, uma vez que este tipo de funcionários da Assembleia da República é atribuído em função da dimensão dos grupos parlamentares, mas não à escala de ‘x’ assessores para 1 deputado. Mas já vamos olhar com mais detalhe.

Uma das publicações partilhadas no Facebook diz que a “verdadeira pandemia” é haver “30 assessores para 1 deputado”

Este tipo de publicações tem surgido de várias formas, com cenários de fundo diferentes e formulações semelhantes. A segunda publicação, com fundo preto, partilhada em Portugal a 7 de abril, e que também teve centenas de partilhas e visualizações, parece ter vindo originalmente do Brasil, devido ao uso da palavra UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) em vez de UCI (Unidade de Cuidados Intensivos), que é o termo usado em Portugal para se referir às unidades hospitalares onde são assistidos os doentes em estado mais grave.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Outra publicação, partilhada uns dias depois, tem o mesmo teor mas difere ligeiramente: “um médico para 10 pacientes, uma enfermeira para 20 pacientes, e 50 assessores para 1 deputado”, lê-se.

Mas vamos à questão do número de assessores por deputado. Questionado pelo Observador, o gabinete do secretário-geral da Assembleia da República remeteu as informações para os vários grupos parlamentares, uma vez que “as nomeações e exonerações do pessoal de apoio aos grupos parlamentares é da exclusiva responsabilidade destes grupos”. Fomos então ver até onde a lei permite aos grupos parlamentares contratar pessoal.

De acordo com a Lei de Organização e Funcionamento dos Serviços da Assembleia da República, que pode ser consultada aqui, encontramos, no artigo 46º do capítulo VII, relativo ao “apoio aos partidos, grupos parlamentares e comissões parlamentares”, uma lista exaustiva das regras de contratação de pessoal, em função da dimensão dos grupos parlamentares.

Assim, “os grupos parlamentares dispõem de gabinetes constituídos por pessoal de sua livre escolha e nomeação nos seguintes termos“:

 Com dois deputados, inclusive: pelo menos um adjunto, um secretário, um secretário auxiliar e ainda outros funcionários nos termos do disposto nos nºs 2 e 4 (que especificam um teto máximo de despesa para a contratação de pessoal);

Com mais de dois e até oito deputados, inclusive: um chefe de gabinete e pelo menos um adjunto, um secretário, dois secretários auxiliares e ainda outros funcionários nos termos do disposto nos nºs 2 e 4 (que especificam um teto máximo de despesa para a contratação de pessoal);

Com mais de 8 e até 20 deputados, inclusive: 1 chefe de gabinete e pelo menos 2 adjuntos, 2 secretários, 3 secretários auxiliares e ainda outros funcionários nos termos do disposto nos nºs 2 e 4 (que especificam um teto máximo de despesa para a contratação de pessoal);

Com mais de 20 e até 30 deputados, inclusive: 1 chefe de gabinete e pelo menos 3 adjuntos, 3 secretários, 3 secretários auxiliares e ainda outros funcionários nos termos do disposto nos nºs 2 e 4 (que especificam um teto máximo de despesa para a contratação de pessoal);

Com mais de 30 deputados: 1 chefe de gabinete e pelo menos 3 adjuntos, 3 secretários, 3 secretários auxiliares e ainda, por cada conjunto de 25 deputados ou resto superior a 10, pelo menos mais 1 adjunto, 1 secretário, 1 secretário auxiliar e ainda outros funcionários nos termos do disposto nos nºs 2 e 4 (que especificam um teto máximo de despesa para a contratação de pessoal).

A regra para a contratação de “outros funcionários” é definida através de um teto de despesa. As despesas com as remunerações previstas para esta categoria de “outros funcionários” não podem ultrapassar, anualmente, as verbas que resultam da seguinte fórmula:

a) Grupo parlamentar de 2 Deputados – 24 x 14 SMN (salário mínimo nacional) + 6 x 14 SMN por Deputado;
b) Grupo parlamentar de 3 a 15 Deputados – 45 x 14 SMN + 6 x 14 SMN por cada Deputado;
c) Grupo parlamentar com mais de 15 Deputados – 60 x 14 SMN mais:
6 x 14 SMN por Deputado, para 15 Deputados;
3 x 14 SMN por Deputado, para o número de Deputados que exceda 15, até ao máximo de 40;
2,25 x 14 SMN por Deputado, acima de 40 e até 80 Deputados;
1,8 x 14 SMN por Deputado, acima de 80 Deputados.

Ou seja, a lei não determina um limite para o número de funcionários dos gabinetes de apoio, mas estabelece um teto máximo de despesa com as remunerações. Assim, para os deputados únicos representantes de um partido, por exemplo, esse teto máximo corresponde a 14 vezes 14 salários mínimos nacionais por ano. Ou seja, no gabinete de um deputado único (como é o caso do deputado André Ventura que representa, sozinho, o Chega, ou do deputado João Cotrim de Figueiredo, que representa, sozinho, o Iniciativa Liberal), poderia haver 14 funcionários desde que cada um auferisse o salário mínimo nacional. Se cada um, por hipótese, ganhasse o dobro do salário mínimo nacional, então podia haver um máximo de 7 funcionários naquele gabinete. E assim sucessivamente.

Há um teto de despesa, não um limite numérico, cabendo, por isso, a cada grupo parlamentar definir quantos funcionários tem e em que categoria salarial se inserem — desde que estejam dentro dos tetos orçamentais estabelecidos por lei. Além disso, todas as nomeações (e exonerações) têm de ser promulgadas em Diário da República.

O Observador questionou, a título de exemplo, o gabinete da deputada não inscrita, Joacine Katar Moreira, que reiterou ter três assessores a trabalhar no seu gabinete: um em full time, e duas em part time. Ou seja, muito longe da proporção de “30 assessores” por “um deputado”. Antes de Joacine Katar Moreira estar como deputada não inscrita tinha ainda uma quarta pessoa no gabinete, mas saiu ainda antes das alterações em relação ao vínculo ao partido Livre.

Já no gabinete do deputado único André Ventura, por exemplo, trabalham seis pessoas, como se pode ver no despacho do Diário da República assinado a 13 de novembro de 2019 pelo secretário-geral do Parlamento, e publicado a 28 desse mês: um é o Chefe de Gabinete, Nuno Manuel Pinto Afonso; três são assessores, Diogo Velez Mouta Pacheco de Amorim, Manuel José Cardoso Matias, e Rodrigo Santos Alves Taxa; uma é assessora de comunicação, Patrícia Alexandra Martins de Carvalho; e há ainda uma funcionária administrativa, Filipa Isabel Lucas Caeiro Lourinho.

No caso do deputado único do Iniciativa Liberal, também de acordo com o despacho datado de 12 de novembro de 2019, e publicado a 28 desse mês, há quatro funcionários a trabalhar no gabinete de João Cotrim Figueiredo: um é o Chefe de Gabinete, Rodrigo Miguel Dias Saraiva; outra é assessora Carla Maria Proença de Castro Charters de Azevedo; há ainda o analista Bernardo Alves Martinho Amaral Blanco, e a jurista Maria Leonor Cano Crespo Dargent. Ou seja, são quatro assessores para um deputado, neste caso.

Em relação aos grupos parlamentares maiores, é mais difícil apurar quantos assessores existem, mas um deputado socialista (são 108 no total) afirma ao Observador que, individualmente, não tendo nenhum cargo de coordenação de nenhuma área ou comissão, nem fazendo parte da direção da bancada parlamentar, não tem “nenhum assessor a trabalhar” para ele. Ou seja, a maioria dos deputados dos grupos parlamentares maiores têm apenas os funcionários dos grupos parlamentares dedicados aos assuntos específicos, e não adjudicados aos deputados de forma proporcional.

Em 2010, uma notícia do Diário de Notícias, dava conta de dados divulgados pela secretaria-geral do Parlamento, que na altura revelava que havia um total de 102 assessores e consultores dos grupos parlamentares para a totalidade dos 230 deputados. Naquela altura, as duas bancadas maiores, do PS, com 97 deputados, e do PSD, com 81, tinham cada uma 24 assessores/funcionários de apoio técnico. Ou seja, se este número fosse igual nos dias de hoje, não dava para contabilizar sequer um assessor para cada deputado.

Conclusão

A lei que define as contratações de pessoal para os gabinetes dos grupos parlamentares/deputados únicos representantes de partido não especifica um número limite de funcionários para cada grupo parlamentar, cabendo estas mesmas nomeações e exonerações a esse mesmo grupo parlamentar. O que a lei define, isso sim, é um teto máximo de despesa para essas contratações, sendo que cada grupo parlamentar faz a gestão ao seu critério. São 230 os deputados eleitos para a Assembleia da República, mas olhamos com atenção para os deputados únicos representantes de partido e para o caso da deputada não inscrita para ver quantos assessores tinham estes deputados que, sozinhos, representam um partido: Joacine Katar Moreira tem três, André Ventura tem seis, e João Cotrim de Figueiredo tem quatro. Muito longe dos 30 assessores por deputado que é referido na publicação. Todas as nomeações têm de ser publicadas em Diário da República. A publicação baseia-se numa generalização sem qualquer fundamento, não sendo verdade que haja 30 ou 50 assessores para cada deputado.

Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

Errado

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

Nota 2: O Observador faz parte da Aliança CoronaVirusFacts/DatosCoronaVirus, um grupo que junta mais de 100 fact-checkers que combatem a desinformação relacionada com a pandemia da COVID-19. Leia mais sobre esta aliança aqui.

IFCN Badge