“Chegam-nos notícias alarmantes.” É assim que uma publicação de Facebook, do passado dia 6 de julho, começa por alertar os internautas, partilhando um suposto artigo que refere o seguinte: “Mais mortalidade associada à vacina Covid-19 do que o somatório de todas as vacinas nos 31 anos anteriores.” Chegou às 217 partilhas e aos 334 gostos. Trata-se de uma publicação já anteriormente desmentida e, por isso, falsa.

Consultando o artigo em questão, somos direcionados para a página “Paradigmas”, que tem partilhado vários textos contra a Covid-19, sobretudo no que diz respeito às restrições sanitárias. Ora, o artigo, para sustentar a sua tese, cita os dados da VAERS (Vaccine Adverse Event Reporting System), uma “entidade que reporta os efeitos adversos dos fármacos” (neste caso, as vacinas) contra o novo coronavírus. Diz também que estas vacinas foram responsáveis por “um aumento sem precedentes (a palavra está mal escrita no artigo) na mortalidade, sem que tal seja devidamente noticiado pela comunicação social”.

Ora, para perceber o que está em causa e se os dados em questão têm sequer uma base credível, o Observador consultou o Infarmed, um dos organismos responsáveis por acompanhar o processo de vacinação em Portugal. “Trata-se de uma interpretação deturpada de um sistema de notificação espontânea como o VAERS”, refere aquele instituto, numa primeira abordagem. Portanto, este sistema norte-americano faz um acompanhamento da segurança das vacinas, recolhendo todas as informações suspeitas de reações adversas associadas. Só que existe um senão importante: “Essa recolha é feita independentemente da existência de uma relação causal entre a vacina e o efeito em estudo”, diz o Infarmed. Trata-se, por isso, de uma possibilidade — muito remota ou não — e não um facto consumado, devidamente certificado.

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Até porque, para se auferir a causalidade, “toda esta informação é depois analisada com recurso a algoritmos complexos e a grupos de peritos clínicos, entre outros, para uma avaliação mais precisa da causalidade”, argumenta o Infarmed. Para se perceber esta explicação, pode ser importante dar um exemplo concreto.

Recentemente, foi notícia o caso da síndrome de trombose com trombocitopenia, uma reação adversa muito rara associada a algumas vacinas contra a Covid-19. Tudo começou por alguns casos isolados, “até se perceber, através de uma análise agregada e detalhada”, que existia uma associação entre a causa e o efeito, argumenta o Infarmed. “É também por esta razão que mesmo os casos de morte de baixo grau de associação casual com, por exemplo, uma vacina, não são eliminados destas bases de dados, uma vez que estes podem sempre ser revisitados em qualquer altura e ser reinterpretados à luz de nova informação”, conta aquele organismo.

A verdade é que, por outro lado, uma morte que possa estar associada a uma vacina pode ter outra explicação. Ou seja, é preciso diferenciar entre o que é uma morte provocada pela toma de uma vacina e o caso de alguém que foi vacinado e que acaba por morrer por motivos não relacionados com essa toma.

Para isso, tomemos novo exemplo, agora em Portugal. “A média dos casos de morte suspeitos de associação a uma vacina contra a Covid-19 é de 78 anos, ou seja, indivíduos de idade mais avançada e com patologias associadas a essa faixa etária”, afirma o Infarmed. Portanto, quaisquer dados referentes a bases de dados como a VAERS devem ser interpretados com cautela e analisados por profissionais de saúde especializados nesta matéria. E não por um artigo interpretativo de um site.

Olhemos novamente para os dados apresentados e as comparações estabelecidas pelo artigo — que estão, na sua essência, incorretos por sofrerem vários “vieses de informação”. O Infarmed listou quatro pontos importantes que permitem concluir que, no fundo, a publicação está errada:

  1. Pode ter havido maior número de notificações para uma determinada vacina por razões externas à mesma, o que, no caso da Covid-19, tem importância pelo número gigante de vacinas e de mediatização do tema num curto intervalo de tempo;
  2. Uma vacina pode ter um maior número de casos suspeitos de morte, mas serem todos (ou a sua maioria) de baixo grau de associação causal;
  3. As populações a comparar também serão seguramente muito diferentes;
  4. As comorbilidades das populações-alvo das diversas vacinas serão também bastante distintas. Ou seja, as conclusões retiradas do artigo são precipitadas e carecem de validação científica, bem como de um maior aprofundamento dos dados.

Já Luís Graça, médico e investigador do Instituto de Medicina Molecular, recordou ao Observador que “nunca houve uma campanha de vacinação tão grande como esta” e, sempre que houve uma morte, foi aberta “uma investigação, porque as autoridades levam muito a sério essa questão”. O especialista acaba por concordar com o Infarmed na função que sistemas de notificações espontâneas como o VAERS têm, reforçando que, até agora, “não há nenhuma evidência de que as mortes sejam um efeito secundário das vacinas da Covid-19”. Exceção feita, claro, aos casos pontuais como os fenómenos tromboembólicos muito raros, originados com a vacina da Astrazeneca ou da Janssen.

Por último, importa olhar para outros desmentidos feitos a esta publicação. A USA Today olhou para o artigo que já tinha sido ampliado por outros canais conservadores, como a Fox News. E, ao falar com vários especialistas, chegou à mesma conclusão do Observador: este “excesso” de mortes por vacinas de Covid-19 não significa que as vacinas sejam mais mortíferas.

Refere também que a VAERS foi criada pela Food and Drug Administration como um sistema de alerta para detetar possíveis problemas de segurança de vacinas devidamente licenciadas nos Estados Unidos da América. Várias pessoas ligadas à área da saúde reportam reações adversas da vacinação, mas não são chamados sintomas ou efeitos secundários porque, mais uma vez, não são verificados nem podem ser diretamente ligados às vacinas. Só que, na verdade, qualquer pessoa pode reportar essas reações à VAERS, o que torna todo o sistema mais parcial e menos apurado.

Importa também dizer que, após os dados serem enviados ao VAERS, o Centro para Controlo de Doenças e Prevenção examina essa informação, bem como autópsias, registos médicos e outros documentos para perceber se o reporte pode ser considerado credível.

Conclusão

Não é verdade que as vacinas de Covid-19 tenham registado um maior número de mortes que todas as outras vacinas nos últimos 31 anos. A publicação em questão baseia-se numa base de dados norte-americana, a VAERS, que serve para reportar reaçoes adversas das vacinas, por parte de profissionais de saúde mas também de pacientes. Ou seja, praticamente qualquer pessoa pode fazer esse reporte, que depois precisa de ser devidamente validado e certificado por diferentes autoridades. Infarmed explicou o Observador que isto se trata de uma “interpretação deturpada” porque este tipo de sistemas recolhe todo o tipo de informação, independentemente da existência de uma relação causal entre a vacina e o efeito em estudo.

A comparação feita pelo autor do artigo é, por isso, cientificamente incorreta. Até porque os dados analisados podem ter mais pontos não analisados: pode ter havido maior número de notificações para uma determinada vacina por razões externas; uma vacina pode ter um maior número de casos suspeitos de morte mas serem todos de baixo grau de associação causal; as populações a comparar são diferentes entre vacinas. Há, portanto, vários fatores a ter em conta quando se olha para estes sistemas, que não podem ser interpretados por alguém sem formação na área.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No about:blank este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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