O que está em causa?
A discussão é antiga e até animou a campanha das legislativas de 2015, com o PS a acusar o PSD e o CDS de quererem cortar as pensões a pagamento em 600 milhões de euros. O assunto foi reavivado esta sexta-feira, no debate do Orçamento do Estado para 2018, quando o ministro do Trabalho e Segurança lembrou que “há pouco mais de dois anos, a direita em coro defendia que a Segurança Social necessitaria de um corte nas pensões a pagamento em mais de 400 milhões e mais umas receitas para atingir os tão conhecidos 600 milhões.”
Para isso o ministro lembrou dois momentos: o Programa de Estabilidade 2015-2019 enviado por PSD e CDS a Bruxelas em maio de 2015 e a proposta de corte de permanente de pensões a partir de 2015 — que acabou chumbada em agosto de 2014 pelo Tribunal Constitucional.
As declarações do ministro incendiaram as bancadas do PSD e do CDS, que se defenderam de uma coisa que o ministro não os tinha (desta vez) acusado diretamente: de quererem cortar 600 milhões de euros em pensões. O ministro chegou a falar de “400 milhões”, mas nunca de “600 milhões”.
Por ironia, o próprio ministro começou a defender-se de valores que não tinha antes referido. Pelo menos, não desta vez e não de uma forma direta. O que é certo é que o ministro acusou a direita de — quer em 2014, quer no Programa de Estabilidade — ter um plano para cortar as pensões a pagamento. É isso que é preciso apurar.
Quais os factos?
O líder da bancada parlamentar do PSD, Hugo Soares, acusou o ministro de “pela enésima vez” dizer “ao plenário que o Programa de Estabilidade que o anterior Governo enviou para Bruxelas previa um corte de 600 milhões de euros nas pensões a pagamento”. Vieira da Silva não o tinha dito diretamente, mas tinha falado de um corte de 400 milhões nas pensões a pagamento, de um bolo total de 600 milhões (a poupar no sistema de pensões). Ou seja: ao falar nos “tão conhecidos 600 milhões”, Vieira da Silva quis voltar a reavivar a posição de sempre do PS: que a direita queria cortar este valor.
Antes do ministro falar, o próprio líder da bancada do PCP leu a parte do Programa de Estabilidade em que o número aparece. Lembrou que era na página 39 do Programa de Estabilidade 2015-2019 — entregue em maio de 2015 pela então ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque — que refere um “impacto de 600 milhões de euros no sistema de pensões, independentemente da combinação de redução da despesa ou acréscimo da receita.”
Vieira da Silva leu depois também o documento para falar no tal “impacto positivo na ordem dos 600 milhões de euros no sistema de pensões”. E acrescentou que “logo a seguir se diz que como hipótese técnica, meramente técnica [aqui em tom ironia], se utilize o modelo que foi chumbado pelo Tribunal Constitucional: corte de pensões, aumento do IVA e aumento da TSU.”
O que diz ipsis verbis o documento — onde o Governo de Passos Coelho salienta que quer chegar a acordo com o PS — é o seguinte:
Assim, não se apresenta de momento o detalhe da medida a aplicar, definindo-se apenas uma obrigação de resultado de obter um impacto positivo na ordem de 600 milhões de euros no sistema de pensões, independentemente da combinação entre medidas de redução de despesa ou de acréscimo de receita que venha a ser definida”
Fica claro no documento do Governo PSD-CDS que estes partidos descreviam uma poupança de 600 milhões por ano no sistema de pensões a partir de 2015. Não concretizam, porém, “o detalhe da medida a aplicar”, embora falem em “combinação entre medidas de redução de despesa ou de acréscimo de receita”.
É verdade que a palavra “corte” não está lá e que os 600 milhões de euros de poupança previstos no documento não seriam apenas de cortes (“redução de despesa”), já que incluíam necessariamente acréscimo de receita. Ora, seria difícil (se não quase impossível) haver redução de despesa sem haver corte nas pensões a pagamento. Há também, neste particular, ainda outro ponto que não abona a favor dos argumento direita nesta discussão — e que o ministro Vieira da Silva recordou: o corte nas pensões que o Governo PSD/CDS propôs em abril de 2014 quando esboçou o Documento de Estratégia Orçamental para 2014-2018 é dado como “hipótese” no Programa de Estabilidade.
No documento entregue por Maria Luís Albuquerque em Bruxelas está a seguinte referência:
Para efeitos meramente quantitativos de modelização do cenário, foram utilizadas as hipóteses técnicas assumidas no Documento de Estratégia Orçamental para 2014-2018 (DEO 2014-2018), de abril de 2014, salientando que, dada a decisão de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional, a configuração da medida será necessariamente diferente”.
Ou seja: tecnicamente, o Governo PSD/CDS descrevia que não queria cortar os 400 milhões em pensões — já que o Tribunal Constitucional chumbou — mas não apontava outra solução (e até deu esta como exemplo matemático), demonstrando que a sua ideia passaria por uma posição similar.
Além disso, mesmo que o tenha deixado cair no documento que entregou em maio de 2015 (ano eleitoral) em Bruxelas, efetivamente PSD e CDS defenderam — quando estavam no Governo — o corte de pensões a pagamento (com instrumentos como a Contribuição de Sustentabilidade). Porém, o Tribunal Constitucional chumbou as intenções do Governo de Passos Coelho.
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Há um facto, contudo, que o Partido Socialista ignora: o segundo executivo de José Sócrates, numa altura em que Vieira da Silva era um influente ministro (então com a pasta da economia), defendeu um corte das pensões nos mesmos moldes.
O PEC IV — que nunca chegou a ser aplicado porque o Governo caiu após chumbo do documento no Parlamento — definia que “adicionalmente, ainda para garantir uma redução na despesa com pensões, será alargado o âmbito de aplicação da Contribuição Extraordinária de Solidariedade, criada em 2010, aplicando-a de forma similar à utilizada na redução das remunerações da administração pública em 2011, ou seja, a pensões acima de 1500 euros. Esta medida permitirá uma redução da despesa de 0,25% do PIB.” Ora, os 0,25% do PIB correspondiam na altura a 420 milhões de euros. Ou seja: antes de Passos Coelho, já o Governo do qual fazia parte Vieira Silva tinha tentado cortar pensões pelo mesmo método.
A conclusão
O ministro reavivou a discussão em torno de um corte de pensões de 600 milhões de euros, lembrando o Programa de Estabilidade 2015-2019, apresentado por Maria Luís Albuquerque em Bruxelas. Mesmo sem o dizer diretamente, Vieira da Silva sugeriu que o Governo propunha nessa altura cortes de 600 milhões. Do ponto de vista estritamente técnico e semântico, o Governo de Passos Coelho não defendia isso nesse documento.
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A direita defendia, porém, uma poupança de 600 milhões, que não excluía a existência de corte de pensões a pagamento e queria o PS envolvido na discussão. Quando o ministro acusa PSD e CDS de quererem cortar pensões a pagamento é parcialmente verdade: o Governo de Passos propôs isso em abril de 2014 (com efeitos a partir de 2015) e voltou a propor (de uma forma mais indireta e querendo puxar o PS para jogo) em maio de 2015. Por outro lado, não é rigoroso falar em “corte de 600 milhões”. Porque, isso, PSD e CDS não defenderam de uma forma direta nesse Programa de Estabilidade. Defenderam, porém, um corte de 400 milhões. Tal como o Governo do qual Vieira da Silva fez parte.