Babyblues e depressão pós-parto: quando a felicidade traz a tristeza |
Poucos dias depois de o Manel nascer, umas amigas de infância foram-me visitar a casa. Mal abri a porta, desmanchei-me a chorar. Chorei como se a criança tivesse morrido, aos soluços, incontrolavelmente, perante o olhar atónito e apavorado das duas irmãs que atiraram as malas para o chão, na ânsia de me abraçar, e perscrutando a sala com o olhar, em busca de algo que justificasse aquela descarga emocional. |
Eu, a primeira de todo o grupo de amigos a ser mãe, estava um caco, dando uma péssima primeira impressão da maternidade às minhas amigas. Tinha 25 quilos a mais, as minhas mamas apresentavam-se ciclópicas, a barriga parecia guardar um feto de tamanho igual à criança (quatro quilos de gente à nascença) e chorava como se a vida tivesse perdido o sentido. Quando hoje vejo no Instagram algumas fotografias de mães estupendas na maternidade, de cabelos em cacho, vestidos irrepreensivelmente brancos que assentam como uma luva nas suas cinturinhas de vespa, sorrindo como se tivessem ido colher o bebé a um campo de flores, sei que nos separa um oceano de hormonas. Não há censura neste meu relato da sua perfeição, que fique claro. Preferia de longe ver as fotos dos dias dos meus quatro partos e não ser aquela baleia desgrenhada e de nariz abatatado, com uma camisa de dormir de tamanho obsceno manchada de leite. Mas… é o que é. Foi o que foi. |
Quanto ao dia em que não conseguia parar de chorar, foi avassalador. Eu queria dizer às minhas amigas que estava feliz, que aquele ser humano tão pequeno era já a minha primeira razão de viver, que tinha ocupado todo o espaço do meu coração, mas também dos órgãos limítrofes, e de todo o meu ser, em bom rigor, e que não conseguia explicar por que raio estava naquela lamúria, mas que tinha acordado assim, num vazio qualquer, num buraco escuro, num vórtice rumo a um abismo incompreensível. |
É óbvio que, como mãe de primeira viagem, tinha lido incontáveis livros sobre maternidade e já sabia da existência do fenómeno baby blues. Mas uma coisa é ler e registar que existe, outra totalmente diferente é sentir aquele chapadão de mão aberta no focinho, e não conseguir, por nenhuma via (nem sequer a da racionalidade), sair desse momento de dor e de espanto. Bom, foi questão de uns quatro dias. Assim como veio, aquela tristeza profunda foi-se. Um dia, acordei e puff. Nem vestígio. Tinha voltado a ser eu. |
Acontece que há quem não volte a encontrar-se, pelo menos num tempo tão próximo. Há casos em que em vez do baby blues chega uma depressão pós-parto, que é uma daquelas depressões que quase ninguém entende. As pessoas, em geral, tendem a compreender uma depressão provocada pela morte de um filho, por exemplo, mas ficam a anos-luz de entender que alguém possa entrar numa tristeza funda e prolongada quando “tem tudo para ser feliz”. E que expoente maior de felicidade pode uma mulher almejar do que ser mãe? Donde resulta que uma mãe deprimida só pode ser alguém que não merece o ar que respira, alguém que não soube levar a cargo a mais alta missão que lhe foi confiada, e coitadinha da criança, onde foi ter o azar de nascer. Calculo que esta seja a leitura imediata de uma esmagadora maioria. Não fiz um estudo, não posso ter a certeza disto, mas sou menina para apostar qualquer coisa em como seria este o pensamento de muitos, senão da maioria. |
Com efeito, não é fácil entender, principalmente se aquela mulher queria muito ser mãe e se, por vezes, tentou durante anos. Uma depressão pós-parto, nesses casos, afigura-se como um mistério, uma incógnita, uma bizarria. O facto é que, até para quem está deprimido, o sentimento é o mesmo: “Como é que eu estou neste estado, se era isto o que eu mais queria?” |
Não sou psicóloga nem psiquiatra e, dessas matérias, só sei o que vivi como paciente (não de depressão pós-parto, mas de outras maleitas da mente). Mas, do que li, há infindáveis explicações: desde as estritamente físico-químicas, hormonais, às mais complexas que podem passar pelo medo de falhar naquela que é a tarefa mais exigente de todas; pelo confronto com a criança que se foi e o eventual renascer de traumas antigos; por inseguranças várias que se acentuam quando se quer ser a mãe perfeita do bebé perfeito; o luto de um período de liberdade pré-bebé; o não se rever naquele corpo transformado; dificuldades na amamentação; etc. Se a tudo isto somarmos a privação de sono e eventuais depressões anteriores, temos o caldo perfeito. Visto assim, não parece tão estranho. |
Nos meus tempos de jornalista, entrevistei uma mulher que chegou a ser internada, tal foi o ponto a que chegou. Não queria ver o bebé, não suportava o seu choro, o seu cheiro, deu por si a pensar em desaparecer, fosse este desaparecer o que fosse: não é que pensasse especificamente em morrer, era mais um desejo de se volatilizar, de se esfumar, de sair em modo vapor de água pela janela. Impressionou-me muito o modo como ela conseguia, anos volvidos, recordar a violência que representou ser mãe, uma violência tão grande que a fez cortar-se por várias vezes para que a dor física superasse a dor emocional. Além de se ver como “má mãe”, ela odiava o marido pelo belíssimo pai que revelou ser. Ela era a errada, ele o certo. Para piorar, nem a mãe nem a sogra souberam lidar com o assunto, fazendo-a sentir-se ainda mais culpada. |
Neste artigo da CNN, uma entrevistada conta que esteve à beira de deixar o seu bebé à porta da igreja ao fundo da sua rua. “Não estava propriamente a pensar livrar-me dela”, diz. “Eu simplesmente acho que não estava a pensar, de todo.” Também vale a pena ler este explicador sobre o tema, da secção Mental do Observador, que esclarece bem, com a ajuda da médica psiquiatra Sónia Oliveira, o que é esta perturbação da saúde mental. |
A depressão pós-parto é uma condição real, grave, que afeta entre 10 e 20% das recém-mães e que deve ser acompanhada o mais depressa possível. Familiares e amigos não bastam, ainda que estarem lá para ouvir (mais do que para falar, sobretudo se não se souber o que dizer) possa ser importante. Mas procurar ajuda especializada é fundamental. |
Depois do meu primeiro filho e daquele baby blues tão agressivo, achei que no segundo parto não me iria acontecer. Já era mãe, já estava preparada, já sabia ao que ia. Ah, doce e rotundo engano! E o que é mais engraçado: à terceira voltei a ter a certeza absoluta de que não iria ter semelhantes achaques. Fiquei a chorar uma semana. O baby blues pode não ser uma depressão, mas é uma belíssima amostra. Uma sensação de vazio, de precipício, de angústia, de tristeza, de desesperança, tudo embrulhado por uma total incompreensão. Ao quarto filho já sabia que ia passar uma semana de rastos. Foi aceitar. Quando comecei no pranto, ria-me ao mesmo tempo. Parecia um bêbado: “Eu sei que isto passa e que isto não é tristeza e que eu amo este filho mas eu estou tão tristeeeeee” (ler com entoação arrastada como quem já tivesse emborcado duas garrafas de tinto). |
Diria que se a depressão é um tornado, o baby blues é um valente vendaval – dá para ficar com uma ideia. E, voltando ao apelo, digo sem hesitar: se o meu estado durasse mais do que durou, eu iria de joelhos implorar ajuda a um médico. Ninguém merece ter o maior dos presentes da vida à frente dos olhos e não o conseguir enxergar. Ninguém devia passar por uma fase tão deslumbrante e feliz, com os olhos rasos de lágrimas (a não ser que seja de emoção). |
Vale a Pena… |
… Assistir ao musical Fénix, no CCB |
Vou ver hoje à noite com o filho número dois e a número três. Foi a minha irmã que me mandou uma mensagem a dizer que tinha mesmo de ir ver com os miúdos. Ela também não viu, mas conhece não sei quantas pessoas que ficaram rendidas e o chefe dela foi ver pela segunda vez com o filho. Dizem-me que este musical, de Matilde Trocado e Artur Guimarães, está sublime, espero que sim. O que sei é que são histórias de adição, sobrevivência, recaída e recuperação. Ainda com mais valor (para mim, pelo menos) porque é baseado e inspirado em casos reais. Para lá das cicatrizes, dos erros que cometemos, é possível recomeçar. É possível renascer das cinzas. Todos podemos ser Fénix.
Se vos suscitei interesse, têm de ser rápidos: o espetáculo sai de cena amanhã. Têm hoje às 16h (se não estiver já esgotado à hora que lerem esta newsletter) e às 21h00, e amanhã às 15h00.
Neste espetáculo usam-se luzes estroboscópicas (strobe).
Bilhetes a partir de 15 euros |
… Ler o livro Uma Pequena Vida, de HanyaYanagihara |
Pedem-me que me cinja a recomendações familiares, nesta newsletter. Mas, quer dizer, isso abrange tudo. Toda a gente tem uma família, uma vez que ninguém surge de geração espontânea (e, ainda que surgisse, acabaria enredada numa família qualquer). Esta é a história de quatro amigos, que começam por ser quatro colegas de faculdade, e acabam por ser como uma hidra, de várias cabeças, mas com um único corpo. Os anos passam e nós, leitores, vamos acompanhando as suas vidas, os empregos, os sucessos, os fracassos, os afastamentos uns dos outros e as uniões mais fortes. Um deles torna-se central por ter uma vida de que ninguém sabe nada, mas que todos suspeitam ser cheia de misérias. A verdade é que nenhum deles sonha o quão miserável foi, com efeito, a sua vida (nem nós, leitores, que nos vemos esmagados, progressivamente mais esmagados, por tudo o que ele passou). E então, torna-se também um livro sobre superação, sobre dor extrema, amizade, amor, entrega, confiança. E perda. Muita perda. Se é daqueles que diz à boca cheia: “Ai, eu livros sobre desgraças nem pensar, que para desgraçada já basta a vida”… não leia. Coma antes uma peça de fruta.
(ed. Presença) |
… Ler o livro Beliscaram a Minha Felicidade, de Diana Ginja |
A Diana tem 9 anos e foi vítima de bullying. Então, decidiu exorcizar os fantasmas e escrever um livro sobre isso mesmo. Os que atacam só porque sim (ou porque, no fundo, estão tão feridos que precisam de magoar os outros), e os que sofrem os ataques, e tudo o que neles se quebra. Por já ter passado pelo mesmo, Diana dá umas dicas de como se ultrapassar. Um livro bonito de ajuda para quem passa por este pesado ostracismo na infância, sobretudo porque é escrito por uma criança que passou pelo mesmo. Pena que alguém tenha de viver isto.
(Ed. Flamingo) |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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