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Depois de um longo interregno, o Macroscópio regressa hoje, e todos os domingos, agora numa fórmula semanal, mais variada e mais pessoal. Por isso mesmo recomeça com o relato de um jantar. |
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Podia não ter nada a ver mas tem tudo a ver. Poucos dias depois de a guerra na Ucrânia ter começado, a 7 de Março, Francis Fukuyama escreveu um artigo onde disse que, nesse conflito, nos tínhamos de preparar para a derrota da Rússia. Na altura ninguém pensava que fosse uma previsão realista, até porque ainda se contavam os dias para a possível — segundo a opinião dominante, a provável — queda de Kiev. Não foi assim que se passou e por isso hoje o cientista político que se tornou famoso quando escreveu sobre o “fim da História” sente-se vingado. E pensa ser capaz de explicar porque é que a guerra está a correr mal à Rússia. |
Esta sexta-feira, num jantar restrito que juntou na club house do Clube de Golfe do Estoril amigos e colaboradores do Instituto de Estudos Políticos da UCP, Fukuyama explicou o que é que a sua experiência dos últimos anos, desde 2014, em que passou largas e frequentes temporadas na Ucrânia, lhe ensinaram sobre aquele país. E talvez o mais importante é que foi nessa Ucrânia traumatizada pela ocupação da Crimeia e pela guerra no Donbass que ele encontrou, e sentiu, algo raro: o espírito de 1989, o espírito desse ano em que a História se acelerou e os países da antiga “Cortina de Ferro” saltaram para a liberdade. |
“Não devemos ter dúvidas, na Ucrânia tudo vai depender dos resultados militares e é importante que esses resultados apareçam depressa porque senão vai aparecer a narrativa perigosa de que isto é uma guerra longa, uma guerra de desgaste, de que não podemos manter as sanções para sempre e que será preciso começar a negociar a paz”. |
Ora, para Fukuyama, o que nessa altura estará em jogo – e devo dizer que subscrevo totalmente a sua opinião – não será apenas a integridade territorial da Ucrânia ou mesmo uma paz honrosa, o que estará em jogo é saber se nesta provação os regimes liberais e democráticos foram capazes de ser mais fortes e resilientes do que os regimes autoritários. “A Ucrânia é a primeira linha dessa nossa batalha”, diz-nos sem hesitações. |
Autor de um livro muito recente – Liberalismo e os Seus Descontentes, sobre o qual o anfitrião do jantar, João Carlos Espada, já escreveu no Observador –, Fukuyama contou-nos que decidiu escrevê-lo quando ouviu Vladimir Putin proclamar, em 2019, o falhanço dos regimes liberais. Ora, agora o que está a suceder – o que tem de suceder – é que vivemos uma guerra e nessa guerra a superioridade dos regimes liberais precisa de continuar a vir ao de cima. |
Vale a pena seguir o raciocínio de Fukuyama, a começar pela sua definição simples do que é uma sociedade liberal, algo que passa antes do mais pela ideia de que é necessário proteger as pessoas do poder excessivo do Estado. Um regime liberal é aquele onde existem checks and balances (pesos e contrapesos), é aquele onde vigora o império da lei (rule of law), é aquele onde se permite e até se fomenta a diversidade. Nada disto existe em regimes autoritários, como o russo ou o chinês, e por isso ele acredita que, mesmo sendo por vezes difícil, moroso, mesmo complicado e disfuncional tomar decisões em regimes liberais e democráticos, no longo prazo o processo de decisão política é mais eficaz. |
“Um regime em que se ouvissem as pessoas e se recolhesse toda a informação não teria cometido aquele que deve ser o maior erro estratégico das últimas décadas, num regime desses não existem pessoas como Putin que tomam decisões sem sequer terem toda a informação”, explicou. |
É muito por isso, mas não só, que as coisas não estão a correr bem para a Rússia na Ucrânia, um país que não é um regime de um homem só, um país onde existe uma sociedade civil vigorosa, uma nação que combate com soldados motivados, tudo ao contrário daquilo que sucede com os soldados russos que são enviados para a frente da batalha como carne para canhão. Por isso mesmo ele segue com particular atenção o que neste momento se passa no sul da Ucrânia, na frente em que se luta pelo controlo da estratégica cidade de Kherson, uma região onde acha possível que os russos possam mesmo vir a sofrer uma derrota catastrófica, muito pior do que as experimentadas em Kiev ou Kharkiv. Acha possível e naturalmente deseja. |
Nesse quadro, o momento que estamos a viver é, para os mais novos, um momento especialmente importante, pois recordou-lhes o que é e o que fazem os regimes autoritários. “Putin veio lembrar aos que não viveram 1989 que a verdadeira tirania não está em Bruxelas”, resumiu com uma ponta de ironia. |
Depois de uma conversa que se alongou ainda por outros temas – Durão Barroso também marcou presença e falou-se muito do futuro da Europa e do Reino Unido –, Fukuyama, que esteve em Portugal para participar nas Conferências do Estoril, não recusou o cálice de Porto com que brindámos no final do jantar. Um brinde à saúde, vejam lá, de Joe Biden e Marcelo Rebelo de Sousa. |
Noblesse oblige, e num local com um dos mais antigos campos de golfe de Portugal, a tradição ainda é o que era. Tudo em nome da democracia liberal, naturalmente. |
Um eterno “obrigado Gorbatchev” |
Mikhail Gorbatchev despediu-se de nós esta semana e a mim só me apeteceu repetir aquilo que há muitos anos – a 26 de Dezembro de 1991 – se escreveu, singelamente, numa das mais célebres capas do Público: “Obrigado Gorbatchev”. |
Discuti esta semana, com os ouvintes da Rádio Observador, o legado do homem que presidiu ao fim da União Soviética, num Contra-corrente onde inevitavelmente também se debateu a posição do PCP – Gorbatchev: o PCP é mais cunhalista que Cunhal –, e uma das coisas que recordei foi o que dele dissera um grande historiador, Archie Brown, autor de Ascensão e Queda do Comunismo. Numa conversa que tive com ele há mais de dez anos, precisamente quando o livro foi publicado em Portugal – A imensa sombra de Lenine, o imenso “obrigado” a Gorbatchev –, disse-me que “sem Gorbatchev é possível que o sistema comunista se tivesse mantido de pé até hoje”, algo em que tenho meditado muito, dando-lhe cada vez mais razão, sobretudo nestes dias que correm em que vemos o que líderes como Putin podem fazer. |
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Também por isso resolvi procurar, e reencontrei, uma imagem de 2001 em que estou eu próprio com Gorbatchev, quando ele veio a Lisboa para uma conferência por ocasião do 10.º aniversário do Público, de que eu era então director. Também por isso está nessa fotografia outra figura de quem guardo as melhores memórias: Belmiro de Azevedo (o senhor do bigode é o intérprete). |
Leituras do meu Verão |
Há quem não escolha para leituras de Verão livros volumosos e tidos como densos, mas comigo sucede o contrário – regra geral guardo para férias algumas leituras que é mais difícil ter no meu atarefado dia-a-dia. Por isso, mas não só, um dos livros que escolhi ler neste mês de Agosto foi Fome Vermelha: A Guerra de Estaline contra a Ucrânia, da Anne Applebaum. Devo dizer que sou um fã de Applebaum, autora de outros livros tão importantes como Gulag: Uma História ou A Cortina De Ferro: O Fim da Europa de Leste. O José Carlos Fernandes já escreveu longamente sobre este livro no Observador – Morrer de fome no “celeiro da Europa”: o plano de Estaline para aniquilar a identidade ucraniana – e eu reafirmo a sua recomendação: quem quiser perceber melhor o que se está a passar na Ucrânia, quem quiser entender o que sentem os ucranianos, deve ler esta obra da jornalista e escritora norte-americana que até é casada com um polaco e viveu muitos anos na Polónia. Até porque o livro vai muito além do relato do que se passou nos anos do holodomor. |
Mais: estejam atentos ao Observador que ainda hoje, domingo, será publicada uma entrevista com Anne Applebaum, que esteve em Portugal e conversou com o Luís Rosa. Deixo-vos o título como aperitivo: “Os russos não são geneticamente autocratas” |
A propósito ainda de leituras de férias e de livros que nos ajudam a perceber os dias de hoje – nem sempre é fácil perceber uma Europa que viveu um século XX tão radicalmente diferente do nosso, para não falar de tudo o mais – aproveito e recordo um outro livro, o que levei para férias o ano passado, o monumental romance de Vassili Grossman Vida e Destino. Tendo como pano de fundo a batalha de Estalinegrado, é um fresco impressionante sobre a Rússia soviética, e também sobre a Rússia eterna, e também sobre a luta até à destruição total de dois exércitos. São 856 páginas, e páginas densas, mas ao terminá-lo percebi porque muitos consideram esta obra a Guerra e Paz do século XX. |
Não podemos dizer que não lemos, não vimos, não sabemos |
O que se está a passar na Ucrânia não nos permite ficar indiferentes, e quem leu até aqui esta newsletter já percebeu que é uma situação que a mim me deixa tudo menos indiferente. Mas para que não digamos que não sabemos, ou que não sabemos tudo, ou que não compreendemos, deixo-vos mais duas sugestões de leitura, dois textos das últimas semanas que considerei especialmente pertinentes: |
- O primeiro é uma extraordinária investigação do Washington Post – Road to war: U.S. struggled to convince allies, and Zelensky, of risk of invasion – onde se relata, com incrível detalhe, a forma como os Estados Unidos e também o Reino Unido foram recolhendo informação sobre a preparação para a guerra da Rússia de Vladimir Putin e como, meses a fio, lutaram ingloriamente para convencer os aliados da iminência do perigo. Pequeno aperitivo: “The United States had obtained “extraordinary detail” about the Kremlin’s secret plans for a war it continued to deny it intended, Director of National Intelligence Avril Haines later explained. They included not only the positioning of troops and weaponry and operational strategy, but also fine points such as Putin’s “unusual and sharp increases in funding for military contingency operations and for building up reserve forces even as other pressing needs, such as pandemic response, were under-resourced,” she said. This was no mere exercise in intimidation, unlike a large-scale Russian deployment in April, when Putin’s forces had menaced Ukraine’s borders but never attacked.”
- O segundo, também do Washington Post, é relativo ao diário de um soldado russo, um diário onde resultam bem evidentes os sentimentos de uma tropa que se sente maltratada e está desmotivada e desmoralizada, precisamente como Fukuyama nos disse no jantar a que já me referi. Em A Russian soldier’s journal: ‘I will not participate in this madness’ ficamos a conhecer os sentimentos do paraquedista, de 34 anos, Pavel Filatyev. Eis uma passagem da sua entrada relativa a 25 de Fevereiro, o segundo dia da guerra: “We reached a highway at around 8 a.m. and … I noticed the trucks of the guys from my squadron. They look kind of crazy. I walk from car to car, asking about how things are. Everyone answers me incomprehensibly: “Damn, this is f—ed up,” “We got wrecked all night,” “I collected corpses from the road, one had his brains all out on the pavement.”
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Uma fotografia e uma recomendação: Convento dos Capuchos, na Serra de Sintra |
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Vou procurar, todas as semanas, partilhar convosco uma ou mais imagens, muitas vezes fotografias que eu próprio tirei, outras vezes imagens que me marcaram por uma qualquer motivo. Hoje começarei por imagens minhas. |
Ora, quem me acompanha nas redes sociais sabe que moro na região de Sintra, um privilégio de que não deixo de tirar partido. Nos meus passeios pela serra passo com frequência por um dos seus monumentos mais originais e porventura ainda pouco conhecido, o Convento dos Capuchos. Voltei a visitá-lo esta semana – são dessa visita as fotografias que aqui publico –, até para conhecer o resultado dos trabalhos de restauro que nele decorreram, e só posso aqui deixar elogios. É especialmente notável a forma como foi feita a recuperação dos forros de cortiça, que sempre caracterizaram este complexo monástico encaixado num daqueles recantos de Sintra onde ainda resiste a floresta primitiva, uma construção humilde que aproveita o granito e é de um inexcedível ascetismo, mas agora que todo o espaço foi reabilitado, a cortiça é só um detalhe, pois temos não apenas uma nova leitura de todos os espaços conventuais, como entendemos ainda melhor como aqui todos os recantos se fundem harmoniosamente na Natureza. O projecto de recuperação já mereceu mesmo um prémio – o Europa Nostra 2022, o prémio da União Europeia para o Património Cultural. Mas ainda pode ganhar também o Prémio da Escolha do Público. O caro leitor pode contribuir para isso votando (até 11 de Setembro) aqui. |
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