1 Acaba de ser publicado entre nós o muito recente livro de Francis Fukuyama que vem ocupando o centro do debate político e intelectual nos EUA e no Reino Unido. Trata-se de Liberalismo e Seus Descontentes(Liberalism and its Discontents, Profile Books, Março de 2022), traduzido entre nós em tempo record pela Dom Quixote. Juntamente com o livro de Mathew Continetti que aqui comentei há duas semanas (The Right: The Hundred Year War for American Conservatism, Basic Books), o livro de Fukuyama vem dominando o debate político educado na imprensa, rádio e televisão naqueles países.

2 À primeira vista, poderíamos ser levados a pensar que o ”Liberalismo” de Fukuyama se refere à metade “esquerda” do espectro político, em complemento à metade “direita” estudada por Continetti. Mas o autor logo de início esclarece que esse não é o caso. Por “liberalismo”, Fukuyama não entende o termo como ele é em regra usado politicamente nos EUA — hoje sobretudo como sinónimo de “esquerda quase socialista”; nem mesmo como tende inversamente a ser interpretado em muitos países da Europa continental, isto é como centro-direita anti-socialista. Também não se confunde com o chamado “libertarismo”, que Fukuyama designa como “doutrina específica, fundada na hostilidade liminar ao governo.”

O liberalismo a que Fukuyama se refere “é um amplo chapéu onde se abriga um largo espectro de opiniões políticas que, no entanto, concordam sobre a importância fundamental da igualdade de direitos individuais, do primado da lei e da liberdade” (p. 10). [Neste sentido, uma boa parte da “Direita” tratada no livro de Continetti inclui-se, como aliás o próprio defendeu, na designação “liberal” de Fukuyama].

3 Trata-se, por outras palavras (minhas) mais de uma disposição liberal do que de um programa liberal. E essa disposição liberal pode ser e é comum a correntes políticas de centro-direita e de centro-esquerda. É essa disposição liberal — centrada na limitação de todos os poderes sob a lei e na protecção da liberdade igual de todos os indivíduos — que está subjacente, como Fufkuyama sublinha — ao adjectivo “liberal” na expressão “democracia liberal”.

[Recordo a propósito, se me é permitido, que em tempos idos Mário Soares me perguntou em tom crítico por que razão eu usava a expressão “Democracia Liberal” no título de um debate no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, a que ele nos deu o privilégio da sua presença e participação. Respondi, respeitosamente, que usávamos o termo no sentido Constitucional, não no sentido partidário ou programático. Com exímio fair-play e sentido de humor britânico (não sei se ele subscreveria o adjectivo ‘britânico’) , Soares respondeu: “Nesse sentido, está muito bem. Vejo que foi bom eu ter feito a pergunta para obter esse esclarecimento”.

4 Alguns leitores (não será o meu caso) podem achar este conceito de liberalismo demasiado abrangente e fluido. Em contrapartida, permito-me alertar para que este entendimento abrangente torna mais preocupante o tema central do livro de Fukuyama: o de que a disposição liberal está sob ataque cerrado de concepções tribais vindas da direita e da esquerda iliberais; e que estes ataques vêm criando sérias ameaças às democracias liberais no próprio Ocidente que as gerou (para não falar nos ‘terceiro-mundistas’, designação minha, como o sr. Putin que — a meu ver, não surpreendentemente — gosta de declarar que “o liberalismo está obsoleto”).

Por outras palavras, o liberalismo que está sob ataque da esquerda e da direita iliberais não é um programa político particular. Muito mais grave do que isso, o que está sob ataque é a disposição liberal para limitar todos os poderes e para garantir a liberdade ordeira sob a lei.

5 Um dos aspectos (a meu ver) mais estimulantes (e acertados) da análise de Fukuyama consiste em sustentar que os ataques da direita e da esquerda iliberais contra a disposição liberal têm um fundo comum: “tanto a direita nacionalista-populista como a esquerda progressista têm dificuldade em aceitar a diversidade que existe na sua sociedade” (p. 160).

Sobre a direita: “O núcleo duro da direita nacionalista-populista corresponde àquilo que teríamos de classificar como etno-nacionalistas, bem representados entre os amotinadores que invadiram o Capitólio a 6 de Janeiro de 2021.” (P. 160)

Sobre a esquerda: “Os progressistas, pela sua parte, terão de aceitar o facto de que aproximadamente metade do país não concorda com os seus objectivos nem com os seus métodos e que é pouco provável conseguirem simplesmente vencerem-nos nas urnas num futuro próximo” (p. 164)

6 Para concluir, Fukuyama apresenta seis propostas fundamentais para a reforma do liberalismo, no seu contraste fundamental com o iliberalismo de direita e de esquerda. Não tenho aqui espaço para prestar homenagem a todos os pontos que ele propõe e que subscrevo: (1) qualidade impessoal do governo; (2) subsidiariedade; (3) liberdade de expressão; (4) primazia dos direitos individuais sobre os direitos de grupos; (5) autonomia individual não deve ser entendida como hostil às comunidades voluntárias, religiosas ou outras; (6) moderação, como uma das virtudes cardeais do Liberalismo.

7 Se me é permitido, gostaria de subscrever todas as propostas de Fukuyama. E gostaria de enfatizar a 6ª: Moderação. Esta constitui, em meu entender, o segredo das democracias de língua inglesa. Fukuyama aliás reconhece isso mesmo, quando reconhece aos Conservadores ingleses de Disraeli a capacidade de reformar sem revolução. Também nos trabalhistas britânicos, ao contrário da esquerda continental, existiu esse comum espírito liberal, hostil às revoluções e favorável à reforma no âmbito constitucional.

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