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Assistimos nos dias que correm a um colapso do Estado — ao colapso do Estado mais caro e mais sôfrego de impostos de que há memória. Porque o que tem contado não é servir o público, é sim servir o PS. |
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A máxima de Abraham Lincoln era “que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da Terra” (discurso de Gettysburg). A máxima de António Costa é “que o governo do Estado, pelo Estado e para o Estado jamais desapareça da face de Portugal”, sendo que em Portugal o Estado é o PS. |
As últimas semanas foram de novo elucidativas. No pacote da habitação, onde a iniciativa privada é vista com desconfiança e se acredita que o Estado pode fazer o que nunca fez, que é construir ou recuperar todas as casas que fazem falta. No pacote de combate à inflação, em que os funcionários públicos receberam um bónus mas não houve alívio fiscal para os trabalhadores do sector privado. Na promoção de um PRR onde se esqueceram as empresas – ou melhor, onde para o sector privado não vão fundos para os seus projectos, mas os fundos que resultarem dos projectos do Estado. |
Esta é sempre a matriz, mesmo quando se afirma o contrário. A matriz que levou a quase acabar com as PPP na saúde. A matriz que levou a abrir guerra com as escolas com contrato de associação, fazendo com que os alunos que lá andavam tivessem deixado de ter anos escolares tranquilos para ter os anos escolares caóticos e perturbados pelas greves sem fim das escolas do Estado. A matriz que, ao reverter a privatização da TAP, abriu as portas às trapalhadas sem fim que nos surpreendem todas as semanas. A matriz que ao recuar na intenção de privatizar as empresas de transportes das áreas metropolitanas manteve quem aí vive refém das agendas sindicais. A matriz que leva a multiplicar regulamentos, que cria a via sacra dos licenciamentos, que multiplica taxas e taxinhas. |
A esta fé no Estado e na sua omnisciência podia corresponder um investimento na eficiência do Estado ou, mais modestamente, numa capacidade de resposta mínima dos serviços públicos. Mas não: como o Estado também tem de ser o PS, e como para o Estado ser o PS, o PS tem de se eternizar no poder, a lógica não tem sido o investimento num Estado mais eficiente mas num Estado mais clientelar e mais atento às agendas das corporações. Por isso, ao mesmo tempo que se colocava o Estado no centro de tudo, desinvestia-se: nos primeiros anos da geringonça o investimento público desceu para os níveis mais baixos desde a década de 1940. Ao mesmo tempo que se faziam juras pelo SNS e se escrevia uma lei da bases da Saúde onde o sector privado é quase proscrito, fazia-se a reversão da lei das 35 horas que fez com que, apesar dos milhões de horas extraordinárias e dos milhares de milhões gastos em novas contratações, em 2018 se tivessem trabalhado menos horas no SNS do que em 2015, o que significa que se ofereceu menos serviço aos utentes. |
O resultado destas opções – e a convicção de que a reforma do Estado é pôr “vacas a voar”, no fundo um simplex de fachada pois ao mesmo tempo que se facilitam as interacções electrónicas, complica-se o labirinto dos processos – levou a um resultado paradoxal: o colapso dos serviços públicos, o mesmo é dizer o colapso do Estado. |
O que aconteceu na última semana com o NPR Mondego é um bom exemplo disso mesmo: o navio que se jurava estava em condições de navegar saiu para o alto mar e, pouco depois, teve um apagão total, ficando às escuras e à deriva ao largo da Madeira até ser rebocado para um porto secundário. Porque é que isto sucedeu? Porque se em 2010 gastávamos 113 milhões de euros por ano com as despesas com operação e manutenção da Marinha, esse montando caiu para 88 milhões com os apertos dos anos da troika (o que se compreende, havia uma emergência financeira) e depois caiu ainda mais, para um valor entre os 70 e os 72 milhões (o que não se compreende, pois diziam-nos que tudo corria às mil maravilhas). |
Naturalmente que sem dinheiro para manutenção e investimento tudo se degrada, e as Forças Armadas ainda guardarão muitos segredos. Fora dela vivemos dos anúncios sempre repetidos. Em 2017, por exemplo, o primeiro-ministro esteve no Barreiro a apresentar os projectos para aquilo a que pomposamente chamam “Arco Ribeirinho Sul” e disse que as obras do novo hospital do Seixal começariam daí a um mês. Em Julho de 2017, mais concretamente. Esta semana voltou ao mesmo concelho do Barreiro para repetir as mesmas promessas, mas sem data. Isto enquanto o seu ministro da Saúde prometia abrir o concurso para esse hospital até ao final do ano. Ou seja, nem seis anos depois as obras começarão. |
Podia multiplicar os exemplos, mas os portugueses estão a par das constantes falhas do SNS, os portugueses não ignoram o mal-estar (e as greves) que minam a escola pública e os levam a migrar os seus filhos para as escolas privadas (que pagam do seu bolso), os portugueses conhecem os atrasos que há um pouco por todos os serviços públicos e como na sua relação com estes só encontram desânimo, desesperança, quando não má criação. |
Mas isto é o PS a ser PS. O PS a tornar tudo mais Estado, mais rígido e mais regulamentado, mais controlado mas mais ineficiente. |
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Mais um exemplo, que conheço de perto: a decadência de uma das poucas coisas que funcionava bem na zona onde habito, a Parques de Sintra/Monte da Lua, que gere os monumentos de Sintra assim como as áreas florestais. Para esta semana está marcada uma greve, a primeira e logo a afectar a Páscoa, um dos períodos de maior afluência. Porquê? Há muitas razões que levariam muito tempo a contar, mas a principal é que os gestores do PS resolveram substituir o regime de contratação livre por um contrato colectivo com condições salariais piores do que as da Administração Pública. Por isso a empresa onde, como dizia o seu grande dinamizador, António Lamas, dava gosto trabalhar porque nela todos trabalhavam com gosto e entusiasmo, essa mesma empresa é hoje um zombie que não consegue sequer reter os funcionários, sobretudo os quadros que contrata. |
Com o PS, este PS, o PS de António Costa, é assim por todo o lado e já não se tapa o sol mesmo com a mais densa peneira – todos vimos, estamos a ver, como um hospital que funcionava bem com regras privadas, o de Loures, se tornou num sarilho sem fim com as regras do sector público a que está agora obrigado depois do fim da PPP. |
E como é assim por todo o lado assistimos à prova prática de que não são as declarações que amor pelo sector público que melhoram, ou mesmo salvam, esse mesmo sector público. Pelo contrário: estes anos têm sido de corrosão da máquina do Estado, que é hoje mais cara, mais pesada e não apenas menos eficiente, pois a sua disfuncionalidade leva à desistência de quem nela trabalha. Venha lá o ordenadinho que o resto não conta. |
É como se todo o sector público estivesse a ser minado pela formiga branca – por fora ainda parece que funciona (como o NPR Mondego), por dentro esboroa-se ao ponto de já nem ter salvação. |
No tempo da I República um outro Costa, o Afonso Costa, usou a “formiga branca” (as suas milícias informais) para aterrorizar as oposições e assegurar o poder do partido dominante, o seu partido republicano. Agora a “formiga branca” já não invade jornais mas, silenciosa, está a apertar o nó cego onde nos deixámos prender, um nó cego onde o Estado pesa cada vez mais e faz cada vez menos, um país onde há cada vez mais dependentes porque há também cada vez mais pobres. |
De repente o mundo está a mudar outra vez |
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Não, não falo da guerra da Ucrânia e das suas consequências globais, nem de Xi Jinping e das suas ambições milenares – falo de uma coisa chamada ChatGTP, de que já muitos ouvimos falar, e de tudo o que ainda não ouvimos falar. Falo, naturalmente, de Inteligência Artificial, algo que a maioria de nós nem sabe muito bem o que é. Mas também não sabíamos o que era um computador pessoal e um processador de teto quando surgiram os primeiros, tal como não fazíamos ideia do que seria uma rede social e de como as redes sociais marcariam os dias que vivemos. |
Não sei se o leitor já experimentou ir a uma plataforma de ChatGPT e começar a dialogar com ela. As respostas que lhe são devolvidas nada têm a ver com as buscas que faz nas redes ou com as sínteses da Wikipedia – as respostas são pessoais, tão pessoais que parecem ter sido escritas por pessoas. Os anteriores desenvolvimentos tecnológicos – e eu tenho idade suficiente para ter vivido antes deles – mudaram imenso a nossa vida, a forma como trabalhamos e nos relacionamos, a forma como conhecemos o mundo. Alguns deles fizeram desaparecer milhões e milhões de postos de trabalho, e criaram muitos outros. Agora assustamo-nos com a possibilidade destas novas ferramentas não fazerem apenas desaparecer muitos empregos – aflige-nos a possibilidade de no limite algumas delas dispensarem o ser humano. |
É um mundo novo, um mundo onde hoje se concentra toda a atenção, um mundo que trará mudanças muito difíceis de prever. Por isso comecei a dar-lhe cada vez mais atenção, pelo que hoje partilho convosco alguns artigos (e alguns podcast) que achei interessantes. |
Do Wall Street Journal seleccionei uma abordagem mais clássica, chamemos-lhe assim. Em A Psychologist Explains How AI and Algorithms Are Changing Our Lives dá-se a palavra a um cientista comportamental, Gerd Gigerenzer, alguém que levou décadas a investigar a forma como as pessoas fazem escolhas e autor do livro “How to Stay Smart in a Smart World”. Nesta entrevista ele considera que muitos de nós já estamos a deixar que a Inteligência Artificial faça as escolhas por nós, algo que considera preocupante. Complementarmente chamo a atenção para um dos podcast do WSJ, The Future of Everything, em particular para um episódio recente, Algorithms Are Everywhere. How You Can Take Back Control. |
Já no Washington Post vale a pena ler 3 things everyone’s getting wrong about AI e ouvir dois dos seus podcasts: Did the AI behind ChatGPT just get smarter? (aqui na loja Apple) e Finding love in an AI place (aqui). Este último é especialmente perturbante por contar a história de um outro software, chamado Replica, que cria “parceiros” amorosos e mesmo sexuais (virtuais) com o objectivo de equilibrar relações emocionais. Problema: quando se actualiza o software isso pode levar à ruptura dos laços sentimentais — sim: laços sentimentais — criados entre o utilizador e a persona gerada pelo Replica. |
Estamos mesmo num mundo radicalmente novo, um mundo onde até já é possível que uma máquina imite de forma perfeita, ou quase, as nossas vozes, o que pode ter as mais inesperados consequências, como Mary Wakefield relata na Spectator em Beware the AI voice thieves (no podcast The Edition desta semana podem ouvir-se algumas dessas vozes realmente indistinguíveis das originais). |
Tudo isto é fascinante, e também inquietante porque não temos forma de saber em que mundo novo estaremos a entrar, mas não se duvide: estamos mesmo a assistir à chegada de uma nova realidade. |
Um livro sobre leituras, mas com um sabor amargo |
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Quando, há cerca de um ano, saiu Stalin’s Library: A Dictator and his Books, do historiador Geoffrey Roberts, li algumas recensões e tomei nota para um dia ler o livro. Fiquei por isso contente quando, mais cedo do que esperava, ele também chegou às nossas livrarias pela mão da Zigurate. Não pude pois deixar de comprar e de me embrenhar em A Biblioteca de Estaline – Um ditador e os seus livros, com a curiosidade de quem gosta de livros e detesta o ditador soviético. De facto, que livros teria ele lido, que notas teria escrito nas margens das páginas, que relação existiria entre as suas leituras e as suas políticas? |
De entrada o livro não desilude, e é mesmo possível, como defende o autor, ir percebendo melhor o personagem através daquilo que leu, e de como leu, até porque, como recorda Geoffrey Roberts, Estaline não deixou nenhum diário nem escreveu memórias, mas deixou uma biblioteca de cerca de 25 mil livros, entre eles 11 mil clássicos da literatura russa e universal. Mais: não deixou apenas uma coleção de livros, deixou uma biblioteca seleccionada e muito lida, com os livros – que marcava com papelinhos, nunca dobrava os cantos das páginas – profusamente anotados. Aliás Estaline não se deixava impressionar quando entrava na casa de alguém e verificava o tamanho da biblioteca – tratava também de verificar se os livros haviam sido realmente lidos e, em muitos casos, podia pedir algum emprestado (sendo que houve quem o fizesse e depois se queixasse de que ele deixara nódoas de gordura nas páginas…). A sua biblioteca ocupava também a principal divisão da datcha onde passava a maior parte do tempo. |
Mas ao mesmo tempo que íamos descobrindo esta nova faceta de Estaline, ao avançarmos na leitura esta ia-nos deixando um certo amargo de boca – é que o autor, mesmo tratado sempre Estaline como “o ditador”, ao mesmo tempo ia dando dele não só uma visão muito mais humanizada, como ia apresentando a uma luz mais favorável do que o habitual as suas lutas políticas, a sua ascensão no partido, a forma como esmagou Trostky ou como conduziu as purgas. Numa entrevista que entretanto deu a Isabel Lucas do Público, Geoffrey Roberts reconhece o perigo de “humanizar Estaline”, mas vai mais longe, defende que “a sua ideologia, as suas crenças, eram autênticas”, ficando perto de compreender as suas acções e a sua brutalidade. |
Como o livro é também, de certa forma, uma biografia de Estaline – começa de resto com as suas leituras proibidas na escola eclesiástica onde estudou, na sua Geórgia natal – podemos ver como, amiúde, o autor apresenta de forma relativamente benigna para Estaline alguns episódios da sua vida. Um exemplo apenas: o relato da sua sangrenta passagem, durante a guerra civil, por Tsarítsin (cidade que depois seria rebaptizada Estalinegrado e hoje se chama Volvogrado) não vai além de referir “uma vaga de encarceramentos e prisões aplicadas àqueles que eram considerados desleais ou traidores” (pág. 94). A descrição de Antony Beevor do que aí se passou em Rússia – Revolução e Guerra Civil (1917-1921) é bem mais crua: Estaline chegou lá, reforçou a Tchecka (a primeira polícia política dos bolchevistas) e “instou-a a levar a cabo massacres assustadores”. |
Como nunca tinha lido nada de Geoffrey Roberts tentei perceber melhor quem ele era e percebi que a sua visão mais “benigna”, digamos assim, de Estaline como intelectual não diverge do que defendeu noutros livros sobre o seu papel, e o da URSS, na II Guerra Mundial. Em Stalin’s Wars: From World War to Cold War, 1939-1953, por exemplo, ele será descrito como um grande estadista. Por isso, e porque vivemos tempos em que o putinismo trata de incensar a glória da “Grande Guerra Patriótica”, um bom contraponto a estas visões mais “compreensivas” do estalinismo é esta aula de Antony Beevor no Hillsdale College, The Soviet Role in World War II (vídeo do YouTube). |
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Feita esta divagação, regressemos à biblioteca de Estaline e às notas que ele deixou, pois aí, guiados pela mão de Geofrrey Roberts, também descobrimos pequenas elucidativas pérolas, como ficar a saber que, à margem clássico de Edward Gibbon sobre a queda do Império Romano, o ditador soviético destacou o seu comentário sobre os soldados de Roma temerem mais os seus oficiais que os seus inimigos. Aconteceria o mesmo com muitos dos soldados do Exército Vermelho. |
A quem pertencem as nossas cidades? |
Mais uma semana em que se discutiram políticas de habitação e mais uma semana em que me lembrei da inesquecível prestação de Marina Gonçalves no Parlamento, quando defendeu que “toda a gente tem o direito a viver nas zonas mais caras de Lisboa e do país” e que “cabe ao Estado dar essa resposta”. Quando se têm prioridades como esta na cabeça não me surpreende que se produza um pacote de medidas totalmente desconchavadas, como defendi de novo depois de ouvir na quinta-feira António Costa (neste Contra-corrente: O Governo ainda conseguiu piorar o Mais Habitação). Quando se tem prioridades dessas também se deve pensar que o maior problema das nossas vidas não é a falta de dezenas de milhares de habitações, sobretudo para os mais pobres, e mais depressa se viram baterias contra a “gentrificação” (e o seu braço armado, o alojamento local), que trouxeram vida e muita gente para as tais zonas de Lisboa e do Porto onde antes ninguém queria viver e onde hoje todos acham que têm “o direito” de viver. Ainda ontem algumas manifestações foram disso mesmo sinal, assim como da deriva violenta de certos activismos. Enfim, desanuviemos, e a minha sugestão é que o façamos precisamente passeando e conhecendo melhor as nossas cidades, a começar pela minha, Lisboa. É dela, e de uma vista tirada do secular Elevador de Santa Justa, que vos deixa hoje uma imagem. Uma imagem “gentrificada”, suponho. |
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Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |