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Portugal não é só o folhetim da TAP e as polémicas do Chega – Portugal é também aquele país onde o governo acrescenta mais mil milhões à despesa com as pensões porque está preocupado com as sondagens. |
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Passei fora do país boa parte das duas últimas semanas, acompanhando à distância e sem muita atenção a nossa política doméstica, mas não pude deixar de sorrir quando um bom amigo me enviou a seguinte mensagem: “Estou espantado com o golpe de ilusionismo político das pensões ao dar com uma mão o que tirou com a outra… Considero que é um teste à maturidade política do eleitorado português – se resultar fica a porta aberta para exercícios políticos com maior prestidigitação. Até que ponto o nosso eleitorado é adulto?” |
Confesso que sorri, mais pessimista do que optimista. Eu lembrava-me do que António Costa tinha dito em Setembro, quando anunciou a antecipação do pagamento de meia-pensão em 2022 e um aumento menor do que a inflação em 2023. Lembro-me de ele ter explicado que o país estava “a viver uma inflação extraordinária, anómala, atípica” e que transformar essa inflação “num impacto permanente na Segurança Social poria em causa a sustentabilidade” do sistema. Na altura até foi preparado um documento mal amanhado em que se tentava mostrar que impacto teria no sistema um aumento das pensões de acordo com o que estabelecia a lei de 2007 e falou-se da necessidade de reforçar o “contrato entre gerações” e a confiança dos trabalhadores, “que mensalmente entregam as suas contribuições à Segurança Social, em como a sua pensão futura é garantida”. |
Mas isso, repito, foi em Setembro de 2022. Agora estamos em Abril de 2023, as sondagens mostram o PS a cair e a ser ultrapassado pelo PSD, algumas indicarão mesmo que os socialistas estão a perder apoio entre os pensionistas, neste momento a sua base eleitoral mais forte. Vai daí decide-se dar agora o aumento das pensões que não se tinha dado há seis meses, mas isso terá uma consequência: “elevar o nível das pensões em dezembro de 2023 para o nível que teriam caso a actualização para 2023 tivesse seguido estritamente o critério legal incrementa de forma permanente a despesa com pensões em aproximadamente mil milhões de euros (0,4% do PIB de 2022) a partir de 2024 (inclusive)”. |
A frase está na análise que o Conselho de Finanças Públicas fez ao Programa de Estabilidade 2023-2027 que o governo levou esta semana ao Parlamento. Mais: esta despesa extra “pode afetar a despesa com aumentos salariais dos trabalhadores da Administração Pública”, como disse aos deputados a presidente desse conselho, Nazaré Costa Cabral. |
Ocupados que temos estado com as cada vez mais rocambolescas peripécias do folhetim da TAP, distraídos que temos estado com os debates sobre o “perigo do Chega”, pouca atenção demos a estes documentos, mesmo sendo certo que o nosso futuro próximo passa pelo que está, e pelo que não está, nesse tal Programa de Estabilidade 2023-2027. É certo que o documento, de acordo com a análise da UTAO (a unidade técnica da Assembleia que dá apoio aos deputados), é quase omisso na informação que dá sobre medidas como a “redução da carga fiscal”, os “ganhos de eficácia em benefícios fiscais” ou a “revisão da despesa fiscal”, limitando-se a enunciar o nome dessas mesmas medidas e a acrescentar uma estimativa sobre quanto custarão, pelo que, “assim, como estão apresentadas, as três medidas não podem ser consideradas credíveis”. Repito: “não podem ser consideradas credíveis”. |
Mesmo assim, quem se importa? Para já anuncia-se uma descida da carga fiscal até porque, como confessou o próprio Fernando Medina a José Miguel Júdice, os focus group indicam que o eleitorado mais jovem, aquele que o PS não tem conseguido cativar, está preocupado com a carga fiscal. A promessa é para cumprir até 2027, valerá por isso bem pouco, mas fica sinalizada, pois os socialistas não brincam em serviço e levam as sondagens a sério. |
Fez sentido aumentar as pensões a meio do ano, de surpresa, para mais numa altura em que está a trabalhar um grupo de trabalho que deverá rever as formas de financiamento e as regras de cálculo das pensões? Não, não faz sentido sobretudo depois daquilo que se disse há apenas seis meses, mas dar este bónus aos imenso corpo eleitoral formado pelos pensionistas é uma boa forma de segurar eleitorado e tentar reverter a queda nas sondagens. |
Faz sentido anunciar um alívio da carga fiscal sem especificar como e sem a mais pequena das preocupações com o IRC, a taxa sobre os resultados das empresas que, em Portugal, é das mais elevadas da Europa e afasta o investimento? Não, não faz sentido, mas os socialistas não podem deixar só para os liberais o discurso sobre a necessidade de descer os impostos. |
Por outras palavras: em vez de governar a pensar no país, o PS de António Costa preocupa-se sobretudo com governar a pensar na popularidade e não perde uma oportunidade para uma acção de “agitação e propaganda”. É como se o lugar de vice-primeiro-ministro, que não existe, fosse ocupado pelo spin doctor de serviço, e como se agradar aos focus group fosse mais importante do que criar as condições para que os tais jovens que fogem de votar no PS não tenham também de fugir do país, como hoje sucede. |
Quanto à “maturidade do eleitorado português” de que falava o meu amigo, eu espero para ver, até porque aquilo que me incomoda – e incomoda-me muito, por exemplo, ter um primeiro-ministro que visita supermercados para “verificar preços”, uma cena mais própria da Venezuela chavista do que de um país da União Europeia – parece não incomodar por aí além os meus concidadãos. |
PS. Não falei nesta newsletter do Chega nem do que se passou no 25 de Abril, mas sobre esses temas recomendo-vos dois textos. O primeiro é de Rui Ramos e foi publicado no Observador: Costa, Marcelo e Santos Silva não ameaçam a democracia? (A ameaça maior às democracias é a daqueles que inventam “inimigos da democracia” para degradarem as instituições, e assim justificam toda a descrença nelas.) O segundo é de António Barreto e saiu no Público: Não basta. Nem chega (Aos democratas, não lhes compete prender, banir ou mandar calar os populistas. Aos democratas compete-lhes fazer melhor e com mais competência do que hoje. E de modo a que a população sinta e perceba.) |
A morte dói mais quando não a esperamos |
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Era uma rotina de todas as quartas-feiras – ao começo da noite caía-nos no mail a crónica de Paulo Tunhas, ou então um aviso a dizer que a enviaria até às 7 da manhã de quinta-feira. Esta semana a rotina foi quebrada e fiquei a pensar que talvez tivesse avisado alguém de umas férias quando eu estava fora. Mas não era essa a razão para a quebra da rotina, como todos descobrimos na sexta-feira, ao fim do dia – o Paulo tinha morrido, assim, de repente, sem aviso prévio. |
É sempre um choque quando nos chega uma notícia destas, para que não estávamos preparados. E um choque maior quando percebemos que há uma companhia que perdemos para sempre – a companhia das suas crónicas semanais, sempre tão finas, tão irónicas, também tão eruditas quando não ácidas. Paulo Tunhas, com quem tomei pela primeira vez contacto pela leitura de Impasses, o livro que escreveu em 2003 em conjunto com Fernando Gil e Danièle Cohn sobre as controvérsias pós-11 de Setembro e a guerra no Iraque, era, como recordaram os seus amigos ao Observador, “um homem absolutamente invulgar” e “um intelectual a tempo inteiro”. Vai fazer-nos muita falta – e eu já sinto a sua falta, pois nunca mais voltarei a abrir os seus mails tardios para descobrir o que nos dizia a cada semana a sua voz profundamente original. (Na foto, numa iniciativa da Oficina de Liberdade.) |
Regresso à Ucrânia e a um futuro que é já hoje |
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O primeiro texto que vos sugiro para hoje é… em russo. Mas não se assustem, é possível lê-lo em inglês ou mesmo em português usando o Google Translator. O texto chama-se How Putin came to hate Ukraine (Como Putin começou a odiar a Ucrânia), pode ser encontrado aqui, e para o ler em inglês ou português basta activar a tradução automática. Publicado pelo jornal online Verstkam, escrito por Ilya Zhegulev, que foi correspondente de SmartMoney, Forbes, Meduza e Reuters, este longo trabalho baseia-se em dezenas de entrevistas com pessoas do círculo do presidente russo e revela como os motivos de Putin para começar uma guerra com a Ucrânia foram do ressentimento pessoal a um desejo de vingança. A decisão de atacar Kiev foi tomada sensivelmente um ano antes da operação militar, em Fevereiro-Março de 2021, e nos meses que se seguiram o Kremlin alimentou sempre um conjunto de pressupostos e cálculos que se revelaram profundamente errados. O texto, bastante longo (e um pouco difícil de ler, porque a tradução automática tem muitos defeitos) está dividido em seis partes: |
- A primeira tentativa de dividir a Ucrânia
- Como Putin se ofendeu com a América
- O que os filósofos ensinaram ao presidente russo anti-ucraniano
- Como Putin decidiu tomar a Crimeia
- Por que o presidente russo se ofendeu com Zelensky?
- Quando a decisão de guerra amadureceu
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É dos melhores trabalhos que li até hoje não só sobre o modo como o Kremlin funciona, mas também sobre os mecanismos de tomada de decisão do presidente russo. |
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Creio que a maior parte dos meus leitores conhecerão Yuval Noah Harari, o historiador e filósofo israelita que escreveu Sapiens – História Breve da Humanidade. Não sendo eu o maior fã de algumas das suas teses, não deixo contudo de considerar que a forma como pensa é estimulante e informada. Por isso chamo a atenção para duas das suas intervenções recentes, ambas sobre um tema a que precisamos de dar mais atenção, os desafios que a Inteligência Artificial coloca à Humanidade. |
A primeira dessa intervenções é um ensaio que publicou na The Economist, AI has hacked the operating system of human civilisation, onde nota, entre outras coisas, que…
“In a political battle for minds and hearts, intimacy is the most efficient weapon, and ai has just gained the ability to mass-produce intimate relationships with millions of people.” |
A segunda dessas intervenções é uma entrevista ao londrino The Telegraph, ‘I don’t know if humans can survive AI’, onde chama a atenção para esta realidade perturbante:
“We need to understand that AI is the first technology in history that can make decisions by itself. It can make decisions about its own usage. It can also make decisions about you and me. This is not a future prediction. This is already happening.” |
Um livro cativante |
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Já me tinha acontecido com O Espião e o Traidor – A maior história de espionagem da Guerra Fria, voltou agora a acontecer-me com Agente Sonya – A história real da espia mais extraordinária da II Guerra Mundial. Os livros de Ben Macintyre são daqueles que nos agarram noite dentro, sem os conseguirmos largar. Mesmo sendo biografias, mesmo tratando histórias reais, possuem o magnetismo das melhores novelas de espionagem de John Le Carré. A “Sonya” retratada neste livro chamava-se na realidade Ursula Kuczynski e era uma judia alemã que se tornou espia soviética, alguém que foi “mãe, dona de casa, romancista, técnica de rádio, coordenadora de espiões, especialista em sabotagem e no fabrico de bombas”, mas sobretudo agente secreta e protagonista da guerra fria. Trabalhou na China e no Japão antes de se instalar no Reino Unido, onde montou uma rede que de espiões comunistas infiltrada no programa britânico de armas nucleares. Perseguida por vários serviços de contra-espionagem, nunca foi apanhada, acabando por regressar à Alemanha, mais exactamente à Alemanha de Leste, onde passou a escrever livros infanto-juvenis. Não exagerarei se disser que a sua história, como a de tantos outros espiões, desafia os limites da ficção e que Ben Macintyre é o melhor guia que podemos ter para a conhecer. |
Pelos Caminhos de Santiago |
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Fiz os meus primeiros Caminhos de Santiago em 2015, esta semana terminei o meu sexto, que desta vez me levou desde Viana do Castelo à Praça do Obradoiro, seguindo primeiro pelo Caminho Português da Costa e fazendo depois a Variante Espiritual. Foram 225 km divididos por oito etapas, provavelmente o mais bonito e o mais intenso de todos os caminhos que fiz até hoje. Peregrinar, mesmo que com motivações diversas, é um exercício que nos obriga a reencontrar connosco mesmos e onde o esforço que implica nos reconforta em dobro. E este ano, ao chegar a Santiago de Compostela no dia 24 de Abril, confundimo-nos com um mar de portugueses que também aproveitara o fim de semana alargado para agendar o seu “camiño”. Na Catedral a missa do peregrino foi concelebrada por um padre português e por um padre ucraniano e no fim os 150 jovens que tinham vindo do colégio de Nossa Senhora do Rosário, no Porto, ainda ofereceram o incenso e pudemos assistir, de novo, à cativante cerimónia do “botafumeiro”. Um ano destes tenho de arranjar tempo para fazer, de seguida, o Caminho Francês, o mais percorrido, 800 km desde a fronteira dos Pirenéus. Destes últimos dias ficam-me inúmeras recordações, desde os caracóis que pontuavam o trilho à saída de Viana do Castelo à viagem na barca do peregrino, onde, por sermos tantos os portugueses e por ser véspera do 25 de Abril, se tocou (e muitos cantaram) o Hino Nacional e o Grândola. |
(Nas imagens, os caracóis no início do Caminho e o botafumeiro já na Catedral de Santiago.) |
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Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |