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Como a república começou a ser implantada antes de 1910 |
A guerra civil de 1832-1834 determinou o curso da história de Portugal. Para garantir a vitória, os liberais atingiram o que julgaram ter sido os pilares do miguelismo na década de 1820: a Igreja Católica e a aristocracia que dominara a monarquia no século XVIII. O Estado liberal esteve de relações cortadas com o Papa durante quase uma década, entre 1834 e 1843. Houve quem tivesse pensado mesmo em fazer em Portugal uma Igreja separada de Roma. A Igreja perdeu a maior parte dos rendimentos e do pessoal. O número de eclesiásticos baixou de cerca de trinta mil para dez mil entre 1820 e 1840, chegando aos cinco mil por volta de 1910. Em determinada altura, deve ter havido tantos ou mais maçons do que padres. |
A velha aristocracia titular foi igualmente expropriada e viu abolidos os mecanismos que garantiam a preservação do seu património, como o chamado “morgadio”, isto é, a possibilidade de as famílias manterem os patrimónios intactos reservando a herança para um dos filhos. Na década de 1880, metade dos palácios nobres em Lisboa foram vendidos. |
Não é possível exagerar o corte que tudo isto significou. Acabou assim o Portugal antigo das distinções de “sangue” e da homogeneidade católica. Alguém que diziam ser filho de um sapateiro – António José de Ávila — chegou a chefe do governo e a duque; uma larga percentagem de deputados e ministros não fazia segredo da sua condição de maçons. |
A partir de 1834, o título de liberal foi reclamado por gente que queria coisas muito diversas. Uns, mais conservadores, estavam sobretudo interessados em garantir aos indivíduos uma esfera de autonomia privada sob o império da lei. Outros, mais revolucionários, desejavam principalmente destruir a cultura tradicional, dinástica e católica. Havia quem visse os dois projectos como complementares: como garantir a autonomia individual, sem destruir uma ordem que submetera os indivíduos ao rei e aos padres? Mas também havia quem notasse a contradição: como garantir a autonomia individual, quando o Estado se propunha alterar o modo de vida e as crenças dos indivíduos? |
Surgiram assim uma esquerda e uma direita liberais, cada uma com os seus jornais e as suas lojas maçónicas, porque os rituais e as solidariedades da maçonaria serviam para os vários grupos políticos se organizarem, da esquerda à direita. A direita tentou reforçar a componente monárquica e religiosa do Estado liberal, de acordo com a Carta Constitucional de 1826. Falhou, porque não podia apelar para as forças socialmente mais conservadoras, comprometidas no miguelismo. O Estado liberal acabou por resvalar para a esquerda. A esquerda, porém, também nunca conseguiu manter-se estavelmente no poder. Os liberais haviam armado os seus partidários nas cidades, através da instituição de batalhões de voluntários e especialmente das chamadas Guardas Nacionais, uma milícia que em Lisboa chegou a ter cerca de 13 mil homens. |
Todas as questões entre liberais tenderam a ser motivo de conspiração e confronto armado. Até porque, entre a esquerda liberal, havia quem não tivesse desistido de viver em Portugal os rasgos da Europa revolucionária, incluindo as “carbonárias” italianas, os “pronunciamentos” espanhóis, e as barricadas francesas. |
Assim se fez a revolução de Setembro de 1836 em Lisboa. Perante o deslealdade revolucionária da esquerda “setembrista”, a direita cartista começou a ter líderes mais determinados em “vencer” do que em “convencer”, como disse António Bernardo da Costa Cabral, o homem forte do cartismo entre 1842 e 1846. Houve assim mais uma guerra civil, a chamada Guerra da Patuleia, em 1846-1847, desta vez entre liberais. Os miguelistas apareceram ao lado da esquerda liberal, na medida em que esta contestava a rainha D. Maria II, acusada de favorecer os cartistas. |
De facto, cartistas e setembristas eram apenas os dois agrupamentos mais combativos. Para além deles, havia uma massa de liberais que concordavam um pouco com cada um desses grupos, e que por isso preferiam acordos e amálgamas. A essas amálgamas chamavam-se “pastéis”, por causa da variedade dos seus ingredientes políticos. O escritor Almeida Garrett, que nos anos 1840 se dizia conservador mas amigo dos radicais, foi um assumido “pasteleiro”. |
Depois da derrota na guerra civil de 1846-1847, e sobretudo após o fracasso das revoluções de 1848 na Europa, uma parte da esquerda desistiu da revolução violenta. Mas não desistiu da revolução gradual. Em 1851, com o golpe militar da chamada “Regeneração”, os “cabralistas” – aquela parte da direita cartista mais decidida a resistir à esquerda — foram afastados do poder. A partir de então, os governos, baseados em coligações de antigos cartistas e de antigos setembristas, passaram a preferir um consenso que fez o liberalismo português identificar-se cada vez mais com um reformismo igualitário e populista. |
O Reino de Portugal adquiriu assim características singulares na Europa. Entre as monarquias, era aquela onde a nobreza titular tinha menos relevância na vida pública, e onde as defesas da ortodoxia religiosa eram menores. O princípio monárquico não correspondia de facto a uma verdadeira cultura de fidelidade dinástica. Jornalistas e homens de letras permitiam-se toda a espécie de irreverências para com a família real. Já em 1849, num grande jornal, Camilo Castelo Branco podia escrever um “folhetim” a insinuar intimidades entre a rainha D. Maria II e o chefe do governo, Costa Cabral. Muitos mais o imitaram ou ultrapassaram depois nessas ousadias. |
Portugal era, como muitos diziam, “uma república com um rei”. Em 1884, o principal dirigente político do regime, Fontes Pereira de Melo, explicou na segunda câmara do parlamento (a Câmara dos Pares do Reino), que os reis de Portugal tinham de “conformar-se com a aspiração das maiorias parlamentares que são apoio ao governo”, a menos que houvesse no país um “movimento de opinião pública” capaz de produzir uma maioria alternativa. Em 1907, João Chagas podia por isso argumentar que em Portugal “entre monárquicos e republicanos não há diferença de crenças. O que há é diferença de posições. Republicanos somos nós todos, mesmo os monárquicos. Se estes aceitam a monarquia, é porque a monarquia existe, nada mais”. Quando veio a república no sentido literal da palavra, em 1910, pôde ser inicialmente recebida por muitos como a consequência lógica do Estado liberal. O 5 de Outubro começara em 1833. |
Na próxima edição continuarei a viagem (que comecei há quatro semanas) por esse século liberal que ajudou a fundar o Portugal Moderno. |
E já que se fala de revoluções do século XIX, pode ouvir o episódio do podcast da Rádio Observador E o Resto é História em que falámos dos 150 anos da Comuna de Paris. |
Na última edição do programa, conversei com o João Miguel Tavares sobre a invasão soviética da Polónia e os cem anos da BBC. Ouça aqui o podcast. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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