Estou aqui porque o ofício me chama. Procuro pistas como numa caça ao tesouro, e desta vez trata-se de reconstituir a passagem do meu bisavô por estas terras do equador.
Tenho para mim que uma boa história não pode, nem deve, morrer inédita. São precisas apenas cinco gerações para enterrarmos a memória de alguém, e só então ela morre em definitivo, não resistindo mais à prova do tempo. Talvez por isso resolvi-me fixá-la, não por se tratar da vida do meu bisavô e eu me situar no fim da linha da quarta geração, mas por ser, sem dúvida, um boa história: a história de um rapaz curioso e aventureiro nascido em 1871 na Guarda, educado por mulheres — entre irmãs e primas direitas eram dez — pouco dado aos estudos, mas com uma forte vontade de contrariar o destino. Terá pensado em dedicar-se à honrosa e inovadora profissão de médico-dentista (julgo que nunca tenha arrancado um dente na vida!) mas, anestesiado pelo perfume do risco, esqueceu a cadeira de dentista e deitou mão a todos os negócios prováveis e improváveis que lhe saltaram ao caminho: corretoria de mercadorias das colónias, casas de saúde, companhias de seguros, bancos, prédios, quintas, empresas de navegação e investimentos em São Tomé, como era moda na Lisboa vibrante do início do século XX. Porém, as pistas são escassas e é preciso descobrir o homem de vícios e virtudes de quem tantas histórias ouvi, por entre este novelo entranhado dos negócios. Não havendo já cartas de família, perdidas entre gavetas e sótãos, resta-me mergulhar nos arquivos, bibliotecas, jornais, recibos, atas, certidões e testamentos. Peça a peça vou assim, lentamente, reconstruindo um puzzle complexo quando dou pela falta de uma peça-chave: São Tomé.
Aterro. Daqui levo várias lições e retiro uma possível conclusão que ultrapassa, em muito, a vida finita do meu bisavô.
Por cima de mim, no tecto do Arquivo Histórico de São Tomé, nem as pás de uma ventoinha afastam o ar quente. Sobre a mesa, duas pastas amarelecidos com o nome de uma roça: Dona Augusta. Folhas de salários dos trabalhadores nos idos anos 40, uma carta manuscrita, meia dúzia de fotografias tristonhas que me fitam desconfiadas. Lá dentro, no fresco do ar condicionado, a diretora gentilmente desilude-me: “Não há muito sobre a roça que deseja, só isto”. E transita para o calor fazendo correr as duas folhas sobre o tampo da minha mesa. Passo os olhos sobre o catálogo dos livros disponíveis para consulta. Muito mexidos, folhas soltas. Talvez em Lisboa saiba mais. Porém Lisboa, a cidade da branca-luz, não é para aqui chamada.
Primeira lição: na ilha de São Tomé tudo se faz de distância — no tempo e no espaço. Visito as roças de Mantero — grande amigo do meu bisavô — de Valle-Flôr, do barão de Agua-Izé, quando as fortunas se faziam à custa do trabalho dos “selvagens” e dos preços chorudos a que o cacau das colónias era vendido ao mundo “civilizado”. Todos eles tinham aqui a sua porção de terra — hectares e hectares de árvores nascidas em potes de ouro com centenas de obedientes serviçais acoplados. E uma Casa Grande. Varanda sobre o mato. Em baixo, as esquinas de um rio. Peitoris esculpidos na madeira, como um fino trabalho de renda. Mais além havia o hospital, a enfermaria, a creche, o terreiro, a capela, as sanzalas. Ah, as “sanzalas”! Palavra maldita que esconde uma condição tenebrosa. Quem haveria de trabalhar a terra senão “eles”? Angolanos, guineenses, moçambicanos, já que, segundo Mantero “o clima hostil aos portugueses favorecia os trabalhadores oriundos de países tropicais mais produtivos e mais resistente aos flagelos de África”. E o dia dos robustos trabalhadores agrícolas era longo e pesado, um fio infinito de horas tórridas até que o abençoado sol – ao toque do sino – caísse a pique e um borrão de noite viesse apagar de uma assentada o mar, a terra e o trabalho forçado. Vi-os nos livros, pousavam para nós nos retratos e só aí. Elas vestidas de branco, eles de fato engomado desafiando o destino; o resto dos dias não admitiam nem roupa limpa, nem poses para retratos. Ninguém quer lembrar o tempo das serapilheiras usadas pelos escravos, essa designação hedionda forrada a culpa que se evita formular. Escravos? Eles, escravos depois do martírio do Rei Amador no século XVI? Escravos? Não! Pessoas “contratadas” na costa africana, segundo o dizer de alguns — “bem tratadas, disciplinadas, cristianizadas e bem alimentadas»”… “uma sepultura de onde ninguém sai vivo” segundo os outros ( Relatório Burtt, in Mantero, Francisco, “A mão de Obra em São Tomé e Príncipe”, Lisboa, 1910).
Só lhes fazia falta irem e voltarem livremente para as suas terras, mas isso são já contas de outro rosário que o relatório Burtt, qual britânica arma de arremesso, testemunhava no início do século XX. (Em resultado do relatório do Sr. Burtt, e da concorrência desleal aos ingleses, os maiores fabricantes de chocolate — Cadbury, por exemplo — deixaram de importar “cacau escravo” de São Tomé.)
Segunda lição: não estou dentro de um retrato antigo. Estou aqui na roça do meu bisavô a cem anos de distância, onde as tonalidades amarelas-alaranjadas dos frutos nos cacaueiros são agora contas perdidas no verde-mato. Sobram os vestígios da Casa Grande: um varandim arruinado habitado por dezenas de miúdos que se entrincheiram no seu castelo antes de recolherem às sanzalas.
E há qualquer coisa misteriosa nisto tudo: os filhos que hoje vivem na roça recebem-me em festa “doce, doce, brrrrranca, doce, brrrranca”, e põem-se a desfiar sonhos: um quer ser piloto, outro veterinário e outro astronauta, enquanto um, muito pequenino, debruçado sobre um riacho pardo, pesca à mão um peixe graúdo. As meninas — mães e filhas — seguem-me descalças copiando-me os gestos e tocando-me no cabelo como quem descobre um tesouro diferente.
Nos pais não sinto ódio, indiferença, revolta ou amargura. Mas também não vejo esperança, há talvez resignação ou abandono que, de todas, é a forma mais triste de rever alguém. Fomos colonizadores, patrões, feitores, capatazes as mais das vezes algozes; fomos médicos, enfermeiros, professores, marinheiros, padres; construímos ou mandámos construir cidades, casas, estradas, pontes, cais e até uma linha de caminho-de-ferro. Fomos os maus e os bons da história.
Terceira lição: três perguntas sem resposta.
Quanto tempo resistirá esta ilha africana, o paraíso selvagem de areia branca e água turquesa, até ser transformada numa Miami de néon?
Os santomenses que se revoltaram em 1953, fazendo valer a sua condição de homens livres, são mais ou menos felizes depois de nós, portugueses, lhes termos virado costas em 1975, descolonizando à pressa, deixando casas, cidades e aldeias ruir como baralhos de cartas? Alguns queixam-se de abandono. Será assim? E o novo progresso de turismo e néon se vier e quando vier fá-los-á mais felizes?
E agora? Que podemos nós fazer para ajudar os santomenses? E será que esta pergunta, por mais generosa, não repete, num outro tempo, antigas superioridades de capatazes e senhores de roça como era o meu bisavô? Será que os santomenses querem ser assim ajudados? Mais educação, mais saúde, melhor habitação, mais trabalho, melhores salários… pequenos passos, um de cada vez. Deixo as contas para os economistas e as ideias para os políticos, mas, alerto, a História, o passado, a proximidade presente e a humanidade comum trazem responsabilidades: CPLP, Instituto Camões, UCCLA, ONGs está aí alguém? Vi jovens portugueses voluntários nas ONGs a darem tudo por tudo em condições quase insuficientes… Será possível ajudar e trabalhar bem, assim? Ou é só para inglês ver, como dantes? Nada disto descansada ou anima. É verdade: dizem que há petróleo no mar mas, tal como as tartarugas, é melhor não mexer — “leve leve, que só traz problema”.
E uma conclusão: São Tomé, um país de beleza infinita em que o mato e o golfo da Guiné se apropriaram à má fila. Restam as vozes afinadas, os tons e matizes de verde a derreterem todas as outras cores, os uniformes que levam os miúdos à escola — 60 numa sala sem livros, nem lápis, a recitarem a tabuada numa roça em ruínas.
E há paz. Para quem vai de passeio ou à procura da peça-chave do puzzle.
É ver para crer como São Tomé (e Príncipe)… Tudo o resto são histórias.