A pouco mais de um mês do cinquentenário do 25 de Abril, a democracia portuguesa mostrou a sua maturidade com a maior descida da abstenção de há décadas e a afluência às urnas de um eleitorado jovem, que, com elevado sentido cívico e vontade de participação democrática, saiu à rua para votar.

No entanto, os comentadores e as forças vivas (e mortas) do regime, que começaram a noite eleitoral a saudar esta mudança (“O povo português é sábio e responde prontamente quando sente que a democracia está em perigo”), acabaram por ter de dar ao (afinal não tão sábio) povo uma lição de democracia:

“É importante que haja mais gente a votar, mas … dependendo do objectivo desse voto”; ou “Eu percebo que o nosso instinto quando vemos a abstenção baixar seja de nos congratularmos do ponto de vista cívico e democrático, mas tudo depende dos partidos que representarem essa queda da abstenção.  É arriscado dizermos que a abstenção cair é bom sem sabermos quem foi o maior contribuinte para ela baixar.” (Sic)

Era, de facto, arriscado dizer que era bom, quando já havia indícios de que o maior contribuinte para a queda da abstenção e para o voto jovem pudesse ser um partido “anti-democrático”. O PCP?  O Bloco de Esquerda?  O Livre? O PAN? Não: os animais propriamente ditos, os Untermensch, os grunhos, os “deploráveis” do Chega, aqueles com quem a Esquerda já tinha dito que ninguém na Esquerda e muito menos na Direita podia falar; os que, liderados pelo único demagogo da política portuguesa, tinham conseguido ludibriar o povo com falsas promessas.

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Com os barões da democracia parlamentar em pé de guerra perante o engrossar do grupo de sem-maneiras, de pé-descalços, de pobretanas, de iletrados, de novos-ricos da política, enfim perante um grupo fresquinho de “fascistas” (PSD e CDS podiam, por escassos momentos, folgar as costas enquanto o pau ia e vinha em costa alheia), quase nos esquecemos que estas eleições antecipadas foram geradas por uma crise política.  Uma crise que pode ter sido uma gota de água, mas que foi a gota de água que fez transbordar uma degradação acelerada das instituições, com casos altamente duvidosos sobre a honorabilidade e competência das pessoas no poder. E sobretudo, que ocorreu num quadro de falência geral dos serviços públicos, nas áreas onde os cidadãos esperam ter resposta – na Saúde, na Educação, na Segurança.

Vigilância, saudosismo e condescendência

Também quase nos esquecemos, entre linhas vermelhas, que a 10 de Março, no ano do centenário do 25 de Abril, a Direita conseguiu a sua maioria mais expressiva de sempre.

E talvez não tenhamos ainda reparado que, passadistas, agora, só os toques a reunir da Extrema-esquerda – a esquerda à esquerda do PS. Especialmente debilitada desde Domingo e entre um moderno arco-íris de fobias várias atiradas a eito, a esquerda mais extrema parece regressada ao PREC, na ânsia de fazer uma frente anti-qualquer coisa que não se sabe bem o que seja e a que, por defeito, tique e saudosismo, chama “fascismo”.  Também em estilo vintage-realismo soviético surge um cartaz da Juventude Socialista apelando à Resistência! (estando o governo socialista ainda em funções); um cartaz com um punho em primeiro plano e umas rodas dentadas em fundo.  Quanta saudade.

Mas se uma parte mais incomodada ou mais radical dos “democratas” reage assim aos “anti-democratas”, há sectores mais liberais que revelam maior abertura para como os “iliberais”, recorrendo a um passado mais recente, a 1985, e a uma atitude mais paternalista.  Afinal, os eleitores do Chega, à semelhança dos eleitos, são também gente básica, grosseira, primária, com graves deficiências de formação e informação, logo, permeáveis à propaganda e à demagogia de André Ventura, o único demagogo português. E depois, não será caso para alarmes, pois, tal como aconteceu com o PRD – que, em 1985, chegou a ter 45 deputados, mas logo se reduziu à irrelevância, acabando por servir de trampolim para a maioria cavaquista –, também o Chega, depois do presente fogacho eleitoral e do futuro contributo para ingovernabilidade, se havia de evaporar, abrindo caminho a um regresso ao mundo encantado da alternância democrática.

Acontece que o PRD, de Ramalho Eanes, além de não ter apresentado, em termos de ideias, grandes diferenças em relação ao PS ou à esquerda do PSD, não correspondia, como hoje o Chega, a uma vaga de fundo europeia. Só uma gestão desastrada e suicida do espaço conquistado – o que é difícil, mas não impossível – levaria a que a tese do fogo-fátuo se aplicasse ao partido de Ventura.

A política, como a natureza, tem horror ao vazio, e o Chega vem tentar preenchê-lo. A religião, a nação, os valores e os costumes essenciais à continuidade civilizacional não desaparecem assim, num caos inorgânico de micro causas e utopias mais ou menos voluntaristas. As novas direitas só nasceram das urnas e pelas urnas porque os partidos tradicionais foram, por medo ou correcção ideológica, abandonando valores e grupos sociais considerados ultrapassados ou tornados “deploráveis”. Os mesmos valores que, embora esquecidos pelos partidos e movimentos políticos, permaneceram em núcleos minoritários de elites intelectuais alternativas. E entre “o povo”.

Ora, aparentemente, no sistema partidário português os partidos à direita do PS – apesar da AD de Sá Carneiro, do PSD cavaquista dos anos 80, de Passos Coelho e do CDS-PP de Manuel Monteiro –, deixaram de se identificar com as antigas agendas da direita social e não parecem identificar-se com as actuais agendas das direitas europeias. Quer da direita nacional conservadora, conservadora nas questões éticas e fracturantes e voltada para a defesa da identidade e da independência nacional perante o federalismo europeu; quer da direita mais popular e populista, igualmente centrada na independência nacional e, sobretudo, na imigração descontrolada, mas mais liberal ou laica em matéria de costumes, embora crítica do wokismo.

As novas direitas

Das direitas conservadoras, fazem parte o Fidesz, de Órban e os polacos do Lei e Justiça; das populares, o Rassemblement National, de Le Pen, e a AFD alemã. Os Fratelli d’Italia estão no meio caminho. São diferenças naturais porque, ao contrário das esquerdas, fundamentalmente internacionalistas, as direitas, por serem nacionalistas e identitárias, variam de país para país.

O problema da classe política na Europa e nas Américas no pós-Guerra Fria foi geral: não atendeu às graves consequências para as classes trabalhadoras – e agora para as classes médias – de uma política económica globalista que levou à desindustrialização de vastas regiões da América e de muitos países europeus; e sacrificou os valores comunitários a um neoliberalismo economicista sem preocupações sociais. Enquanto isso, a Esquerda, finda a URSS e os partidos “operários”, abandonava as causas sociais, concentrando-se na defesa das minorias reais, imaginadas e imaginárias da “nova esquerda”.

E depois da euforia pós-Guerra Fria, dos entusiasmos fukuiâmicos da ordem internacional liberal, a realidade da natureza dos Estados e dos homens, até por necessidade de sobrevivência, voltou a impor e a repor esses valores no quadro das opções democráticas.

Valores tão fortes que alguns dos que os representam conseguem triunfar apesar das suas personalidades algo histriónicas e pós-modernas –ou, às vezes, por causa delas.

Aqui, em Portugal, o fenómeno chegou mais tarde. Associando os valores da Direita ao Estado Novo vencido há cinquenta anos, a Esquerda conseguiu manter uma forte hegemonia cultural, explorando os complexos de inferioridade e a ânsia de “correcção” das classes políticas dos partidos à direita do PS.

O sucesso de André Ventura – que, apesar da feroz oposição quase unânime dos media e da opinião publicada, conseguiu romper a cerca – foi ter aparecido como alternativa para um eleitorado desiludido e afastado da política (os abstencionistas), para parte significativa dos novos eleitores e para os desiludidos com a crise, a precariedade e a decadência  da sociedade e do país.