Passam agora 150 anos sobre as famosas conferências do Casino, em que uma geração, a Geração de 70, se afirmou, rompendo com o que seria o conservadorismo da época.
Era uma geração contestatária, progressista, crítica, e as “Conferências Democráticas do Casino Lisbonense”, de 1871, eram iniciativa do grupo. Integravam o grupo, ou o Cenáculo, muitos dos que viriam depois a ser reconhecidos como o escol da época: Antero de Quental, Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins e dois futuros presidentes da República – os primeiros – Teófilo Braga e Manuel de Arriaga.
Tinham vinte anos e queriam denunciar o atraso português e anunciar as novas ideias que então circulavam e imperavam na Europa. E eram ambiciosamente solenes nos objectivos:
“Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a sociedade civilizada; procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência modernas; estudar as condições de transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa.”
Ao reler a agenda dos conferencistas, não podemos deixar de pensar nas vezes em que fomos vendo repetida em manifestos políticos e intelectuais esta mesma urgência obsessiva de nos pôr a par das “nações civilizadas” da Europa. Os conteúdos podiam ser diferentes, por vezes até opostos, mas a urgência de civilizar Portugal não mudava.
Seria assim na República e no início da Ditadura Militar, com as proclamações dos modernistas e da revista Ordem Nova, de Marcello Caetano, ou dos “Seareiros”. Seria também assim despois, com os liberais europeizantes e tecnocratizantes do marcelismo. E, mais tarde, com o rol de manifestos maoistas, trotskistas, estalinistas, moderados, europeus, neoliberais, que foram surgindo nesta Terceira República de Abril que, a mais de dois anos de distância, já tem comissões nomeadas para as comemorações cinquentenárias.
Em todos estes manifestos persistem duas ideias: a de que o Portugal herdado é um país imbecilizado, reaccionário, anquilosado, meio mediévico, bárbaro ou mesmo primitivo e a de que o grupo de inovadores preocupados que denuncia o atraso, gente viajada e instruída, o vai reformar e modernizar para que finalmente se torne “europeu” e “civilizado” ou para que, recorrendo à incorrecta expressão de Almada Negreiros, deixe finalmente de ser “a África reclusa dos europeus”.
Vinte anos depois
Que Portugal precisa de reformas não restam dúvidas. Não nos restam a nós agora e não restavam então a todos os que o foram querendo reformar. Mas para os pioneiros de há 150 anos, a ânsia modernizadora dos vinte anos foi sendo pesada e repensada e a ideia de civilização foi evoluindo com os anos ou arrepiando caminho. E não deixa de ser curioso que, vinte anos passados sobre as Conferências, e sob o choque do Ultimatum, quase todos eles mudassem; não só no seu desdém por Portugal, mas também, saindo das suas redomas elitistas, na procura de soluções que excedessem a simples “cópia servil dos países mais avançados da Europa”. E em 1884, Eça de Queirós fez um mea-culpa, confessando, numa carta a Oliveira Martins, o seu provinciano “francesismo”:
“Eu mesmo não mereço ser exceptuado da legião melancólica e servil dos imitadores. Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês – excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, um gosto depravado pelo fadinho e no justo amor do bacalhau com cebolada. Em tudo o mais, francês de província (…) eu fui educado e eduquei-me a mim mesmo com livros franceses, ideias francesas. Da gente portuguesa conheço apenas a alta burguesia de Lisboa – que é francesa e que há-de pensar à francesa – se algum dia vier a pensar. Como é feito por dentro o português de Guimarães e Chaves? Não sei. O Padre Amaro é mais adivinhado do que observado”.
Esta reacção crítica do “afrancesado” Eça ao francesismo, uma reacção que o leva a idealizar, numa espécie de contrastante utopia rústica com a ultra-civilizada e ultra-privilegiada vida parisiense, o Portugal que o Jacinto de A Cidade e as Serras encontra em Tormes, ou o limes imperial e colonial africano onde Gonçalo Mendes Ramires acha redenção para os pecados familiares e nacionais, leva-o também a definir nas Últimas Páginas o seu Portugal como um país “traduzido do francês em calão”. E o seu é um volte-face cultural, mas também político, que toca parte da Geração de 70.
Camilo, a face e o braço realistas dessa utopia rústica queirosiana, dando-nos o Portugal profundo, rústico, dos morgados miguelistas da Brasileira de Prazins ou dos heróis e heroínas românticos sombrios, mortos por amor e pela tuberculose, também se indignava com o luso afrancesamento. Como é que um Portugal que, 50 anos antes, enfrentara ferozmente os soldados de Napoleão, um Portugal “de onde pululavam Viriatos como tortulhos bravos quando chove!”, mudara tanto; e mudara ao ponto de “já todos trajarmos à francesa e pensarmos francesamente”.
Oliveira Martins, um realista com muitos e vastos interesses intelectuais, também ultrapassou o radicalismo de 1870, abandonando progressivamente o socialismo utópico de Proudhon e o republicanismo iberista, para posições próximas do chamado socialismo catedrático alemão, e de um monarqusimo kaiseriano à Bismarck. Reagiu também a um certo negativismo crítico em relação à expansão e passou a valorizar, através da biografia de “heróis” históricos e numa pedagogia nacional, figuras exemplares como o Condestável, os Filhos de D. João I, D. João II, Febo Moniz. Ao mesmo tempo, viveu uma progressiva translação da cultura francesa para a alemã, com especial atenção a Hegel e à sua obra. E por exercício de razão prática e historicista, foi-se aproximando das soluções autoritárias e da fórmula “um pensamento servido por uma espada”, que alguns partidários do Estado Novo iriam glosar.
Antero permaneceu o mais idealista de todos. O autor das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares era um espírito inquieto, permanentemente perturbado pelas angústias e questões metafísicas e animado pela necessidade de justiça social e definia-se politicamente por um socialismo democrático que, na sua raiz inspiradora, tinha muito de evangélico – e que por isso nunca aceitaria as versões “científicas” e violentas da “luta de classes” e da conquista armada do Estado. E se lhe repugnava uma sociedade estática – governada pela injustiça, pelo privilégio, pelo parasitismo – também não assumia a versão maniqueísta do marxismo revolucionário.
Vinte anos depois das Conferências do Casino, alguns dos jovens da Geração de 70, já homens maduros ou a irem para velhos pelos cânones do tempo, estariam entre os Vencidos da Vida, um grupo que jantava entre o Café Tavares e o Hotel Bragança. Lá veríamos Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, os condes de Sabugosa, de Arnoso, de Ficalho e de Mafra e o marquês de Soveral. Eça juntar-se-ia ao grupo em 1889. Eram agora um grupo jantante que queria, além de jantar e conversar, influenciar o príncipe D. Carlos, herdeiro do Trono, para que fosse ele o instrumento da mudança.
Estas gerações “estrangeiradas” sempre existiram por cá e sempre quiseram sacudir o país para o pôr ao ritmo da Europa e do Mundo. Quiseram-no os estrangeirados do século das Luzes, os liberais do Primeiro Romantismo, com o Herculano e Garrett, os conferencistas do Casino. E, no século XX, os integralistas, os modernistas, os católicos progressistas, os “europeus”.
Houve sempre uma intelligentsia que, entre o idealismo, a originalidade e o pedantismo, procurou impor-se como motor de mudança. Mas de Verney e Ribeiro Sanches a Herculano e Antero, dos modernistas do Orpheu aos Seareiros e a António Sérgio, sempre foram seres pensantes e com sentido de patriotismo e bem público, mesmo quando estavam enganados.
O grande casino
A tragédia é o que agora nos chega do grande casino norte-americano do puritanismo radical. E chega-nos já em calão e sem que seja sequer exigida qualquer tradução, adaptação ou pensamento intermédio. Ao contrário: tradução, adaptação e sobretudo pensamento são actividades particularmente desencorajadas.
E, no entanto, é isto o que nos chega agora como “modernidade” e “civilização”. A forma é inquisitorial e maniqueísta e não pode nem deve ser questionada. A linguagem é neutra e inclusiva e é para ser adoptada. A auto-culpabilização pessoal e histórica é obrigatória; a individualidade e a especificidade cultural ou nacional, se o individuo, o grupo ou a nação em questão fizerem parte do Index, são banidas, o pensamento é inibido e a consciência negada. Tudo em nome de uma vaga, descarnada, e irrealista ideia de bem global e paritário num mundo-parque temático de infinitas possibilidades e perpétuo consumo.
Não há conferencistas neste grande e fluido casino sem fluidez para quem não quer jogar, e os manifestos, aqui, não são assinados; são anónimos e colectivos, uma vez que denunciam e anunciam “a verdade”, a “única verdade”. Quem os apresenta são pessoas-arco-iris, seres-cartaz que, por raça ou opção sexual ou política, encarnam o capital de denúncia requerido por capatazes que, na rua, nos jornais, no ciberespaço, nos parlamentos servem um fanatismo primário e persecutório. Não há aqui subtilezas, nem compreensões ou contextualizações e muito menos reconsiderações, mudanças de atitude ou de pensamento – uma vez que não há pensamento, só a verdade, e a verdade é simples e inquestionável e já nos chega previamente definida. O que nas proclamações e manifestos passados podia identificar-se como blague, estratégia, procura de efeito de choque para épater le bourgeois, não existe já, nem pode existir porque o pensamento totalitário não admite nem processa desinformações ou excessos de informação ou de formação. Como não admite adversários, dissidentes ou sequer indiferentes.
É contra esta agressão que temos de defender a nossa História, as nossas liberdades e os nossos valores, desde logo a liberdade de expressão, orwellianamente ameaçada por documentos garantistas, como a Carta Europeia dos Direitos Humanos, que passou sem oposição no nosso Parlamento. Ou como o “Relatório sobre a situação da saúde e direitos sexuais e reprodutivos no âmbito da saúde da mulher” da União Europeia, que, com o reconhecimento do “direito ao aborto”, pede a redefinição da objeção de consciência como “negação de assistência médica”. Enfim, verdadeiros tratados sobre a Decadência dos Povos Ocidentais, pináculo de 150 anos de civilização, com os promotores da mentira a exigirem que não pequemos contra a verdade e os promotores da morte a exigirem que nos proclamemos Vencidos da Vida.