A propósito da polémica sobre a desinformação, é importante começar por relembrar que se há sector que carece urgentemente de regulação é o digital. E não, não há excesso de regulação, há exatamente o oposto: ausência de regras que rejam o comportamento das grandes plataformas e que enquadrem a utilização das tecnologias emergentes, como a Inteligência Artificial.

Mas a tarefa de regular o espaço digital não é fácil e a dificuldade começa logo na ponderação entre a defesa da liberdade de expressão e a proteção dos “processos políticos democráticos, processos de elaboração de políticas públicas e bens públicos”, ou seja, exatamente o dilema dos últimos dias em torno do artigo 6.º da Carta dos Direitos Humanos na Era Digital, que garante o direito à proteção contra a desinformação. Nada mais do que o velho conflito entre o bem da cidade e o interesse do cidadão. Acontece que o artigo 6.º negligencia essa devida ponderação e abre a porta a abusos ao direito fundamental à liberdade de expressão, desde logo quando define desinformação com base na veracidade de qualquer “narrativa”.

É certo que a definição de desinformação presente no artigo 6.º tem por referência documentos de orientação europeus, em particular o Plano de Ação Europeu contra a Desinformação. Mas as referências às orientações da UE ficam por aí, já que no mais se afasta da abordagem europeia ao problema, que tem optado por desconsiderar a criminalização ou a proibição da desinformação do leque de possíveis soluções.

A União Europeia tem apostado numa estratégia inteligente para a desinformação que nos deve servir de inspiração. Antes de mais, parte do princípio de que há uma clara distinção entre aquilo que é conteúdo ilegal e aquilo que é conteúdo legal, mas nocivo, pelo que este requer medidas diferentes no seu combate. Em segundo lugar, a desinformação é entendida como um fenómeno de manipulação em grande escala dos sistemas das grandes plataformas. Um post individual no Twitter não configura, portanto, desinformação, uma vez que esta é de natureza sistémica. Sendo um fenómeno de manipulação sistémica das plataformas, é fundamental ir à raiz do problema e criar regras para um funcionamento mais transparente e responsável dos sistemas dos gigantes digitais que permitem a amplificação e a disseminação da desinformação. Falamos aqui das políticas de moderação de conteúdo e dos algoritmos subjacentes aos sistemas de recomendação e de publicidade direcionada das plataformas. Um outro aspecto, que beneficia de um largo consenso entre instituições internacionais, académicos e especialistas em desinformação, é a escolha de uma solução co-regulatória, em que as autoridades públicas e as plataformas colaboram na avaliação do risco sistémico e na aplicação e adequação de medidas de combate à desinformação, garantindo os devidos checks and balances. Nem Estado nem privados devem ter a última palavra sobre o que é ou não legítimo ser partilhado online.

A lógica subjacente a estas medidas é a de que a desinformação combate-se melhor através da regulação das grandes plataformas, que amplificam e disseminam esse tipo de conteúdo, e não através de legislação sobre a veracidade de conteúdos legais, ainda que potencialmente nocivos, sob pena de se abrir a porta a uma eventual exploração política para suprimir vozes dissonantes. Em última análise, e paralelamente à regulação das plataformas, a melhor arma de combate contra a desinformação é o aumento da literacia mediática e digital. Cidadãos com uma verdadeira capacidade de discernir a natureza dos conteúdos que consomem online formam comunidades políticas mais resistentes a manipulações.

Do ponto de vista político, ainda que faça todo o sentido Portugal assumir-se como pioneiro na defesa de um espaço digital pautado por princípios éticos e onde os direitos fundamentais são plenamente respeitados, não podemos perder de vista a perspetiva europeia. Enquanto Presidência do Conselho da UE, Portugal tem sido intransigente na defesa de um Mercado Único Digital harmonizado como elemento fundamental para reforçar a competitividade e a influência global da UE. Seria recomendável passarmos da proclamação à ação.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR