Tenho a sorte de ter um trabalho de que gosto e uma família que me ama e apoia em todas as aventuras e desafios.
Tenho a sorte de, em conjunto com a minha mulher, ganharmos o suficiente para podermos ter um apartamento T2 em Lisboa, podermos ter as nossas filhas numa creche perto de casa (o que, infelizmente, acaba por ser um luxo), e podermos de vez em quando ir almoçar ou jantar fora com amigos.
Tenho a sorte de ter nascido numa família que, não tendo muito dinheiro e nunca tendo tido a possibilidade de me dar férias com amigos, roupas de marca ou a possibilidade de estudar fora, nunca deixou que nada me faltasse, nada de essencial, incluindo oportunidades de estudos.
Tenho a sorte de ter nascido numa família que, tendo pais separados, acabava por ser unida, e me desafiou intelectualmente a evoluir.
Tenho a sorte de ter tido a oportunidade de conviver com gente incrível que fui conhecendo na escola, na paróquia, nos campos de férias, em diversas associações pelas quais fui passando enquanto voluntário, nos vários trabalhos que tive desde a adolescência, e em tantas outras ocasiões em que me cruzei com pessoas de quem me fui aproximando e tornando amigo.
Tenho a sorte de ter tido a oportunidade de conviver desde cedo com pessoas muito diferentes de mim, de estratos sociais muito distintos, e que muito me ensinaram sobre a (dureza) da vida.
Tenho a sorte de ter conseguido um trabalho, logo a seguir à universidade, numa área de que gostava e que não era a minha formação de base, e que me moldou e formou de forma positiva (provavelmente para o resto da vida).
Contudo, e com tanta sorte, porque é que muitas vezes me sinto infeliz, ou cansado da vida? Ou porque é que sinto que a vida é difícil? Tenho a sensação de que não sou o único a sentir o que sinto, talvez seja isto que canta o triste fado português, que nos acompanha a todos.
“A vida é difícil” — é assim que começa o livro de Scott Peck, O Caminho Menos Percorrido. Na fase de vida em que me encontro, em que é tão grande a pressão do trabalho, da família a crescer, das contas para pagar, e de tantas outras responsabilidades comuns a muitos de nós, cada vez mais sinto que a vida é difícil. Ser adulto é difícil. Mas com tantas sortes, e pondo a minha vida em perspetiva, eu não me sinto no direito de sentir que a minha vida é difícil… mas sinto. O meu trabalho está relacionado com prisões, e conheço muita gente que está presa, e olhando em perspetiva apercebo-me de que essas é que são vidas difíceis, não a minha. A minha está cheia de sortes. Ou pensando nas vítimas desses crimes, penso ainda mais que não tenho o direito de sentir que a vida é difícil. Porque a minha vida está cheia de sortes.
Apesar de ser novo, a verdade é que vejo cada vez mais pessoas à minha volta que vão morrendo precocemente, por acidente ou vítimas de doenças fulminantes. Isso sim é difícil. A minha vida está cheia de sortes. Apesar de ser novo, sinto que muitas vezes a minha cabeça e rotina são de um velho que já pouco sai de casa. Mas uma pessoa mais velha, fechada em casa, sem visitas e impossibilitada de se mexer é que tem uma vida difícil. A minha vida está cheia de sortes.
Mas então, sabendo que a minha vida está cheia de sortes, como é que posso sentir que a vida é difícil?
Quando nasceu a minha segunda filha, antes do Verão, entrei numa fase de profundo cansaço. Dizem que é normal. Senti-me preso às rotinas, aos choros, e ao mesmo tempo a sentir que o trabalho cada vez mais de mim exigia. Desde essa altura tenho feito um grande esforço, até por medo de entrar em burnout, para não trabalhar demasiadas horas (mesmo que algumas coisas tenham que ficar por fazer), para fazer exercício, para tentar dormir melhor à noite, e até para tentar aproveitar as pequenas coisas que a vida me vai dando. E no meio de todas as estratégias que tenho tentado adotar, parece-me que a que melhor tem funcionado tem sido tentar reparar nas pequenas coisas boas da vida, e na alegria que isso me pode trazer.
Comecei a estar mais atento a estas pequenas coisas depois de um serão em família a ver o filme Soul, da Pixar, em que Joe acaba o filme a concluir que a nossa alegria está nas “coisas normais da vida” e em “viver cada minuto” que nos é dado. Depois deste filme, e daqueles serões filosóficos em que acabo à conversa com a minha mulher sobre onde está a verdadeira felicidade, lembrámo-nos de uma peça de teatro a que fomos assistir sobre Todas as Coisas Maravilhosas, escrito por Duncan Macmillan e interpretado por Ivo Canelas, onde o protagonista faz uma lista de todas as coisas maravilhosas da vida (que inclui coisas tão banais como torradas com manteiga).
Estes serões acabaram por me fazer olhar para as pequenas coisas normais da minha vida.
Partilho três pequenas coisas que me têm trazido alegria recentemente:
Pequena Coisa 1: Quando chego a casa e a minha filha mais velha, de dois anos, vem a correr a gritar “Pai!” para me dar um abraço e a dizer que “não quer cócegas”. Isso sim é uma pequena (grande) coisa que tem que ser vivida e revivida no presente. Tento invariavelmente ficar ali agarrado o máximo de tempo possível, talvez numa tentativa vã de fazer perdurar essa pequena coisa e essa felicidade, contudo ela farta-se normalmente muito rápido. Mas, esta mania de nos tentarmos agarrar às coisas boas é muito de adulto.
Concluo que a alegria das pequenas coisas não tem que durar muito tempo.
Pequena Coisa 2: Lá por casa todos têm estado bastante doentes, as viroses do costume. Já tivemos, inclusive, direito a duas idas às urgências e, claro, noites muito mal dormidas, como se pode imaginar. Uma das minhas cunhadas (que por acaso “só” tem três filhos para cuidar) liga-nos a dizer que vem a nossa casa deixar comida para a semana toda, porque tinha estado a cozinhar e achou que nos podia ajudar. Claro, a felicidade de não ter que cozinhar uma semana é enorme, mas a “pequena” coisa de saber que existem pessoas à nossa volta que se preocupam connosco, e a quem nem precisamos de pedir ajuda para já nos estarem a ajudar, é enorme.
Concluo que a alegria das pequenas coisas às vezes também depende dos outros.
Pequena Coisa 3: De vez em quando tenho ouvido álbuns de música do princípio ao fim, sem shuffles. Muitas vezes isto tem levado a sessões de dança coletiva lá em casa.
Concluo que a alegria das pequenas coisas também depende de olhar (e reparar) nas coisas boas que o mundo vai produzindo e nos vai dando a todos.
Existem muitas outras pequenas coisas que me trazem alegria. Não querendo ser lamechas, mas sendo, uma cerveja ao final do dia com amigos, um pôr do sol, uma ida à praia, ler um livro, andar a pé a ouvir música no meio da cidade, ver equipas que lidero a crescerem sozinhas, ver a família a crescer… são tudo pequenas coisas que me trazem uma enorme alegria.
Acabo este artigo com mais perguntas do que conclusões. Pergunto-me se será possível nós, humanos, não deixarmos que as responsabilidades e pressões do ser adulto (a tal vida difícil) tomem conta da nossa vida? Se será possível mantermos a inocência das crianças e a leitura atenta das realidades que nos rodeiam e tirar daí as nossas alegrias? Pergunto-me se a alegria das pequenas coisas não poderá ser a solução para tantos casos de burnout, ansiedades e outro tipo de dificuldades pessoais por que muitos passam? Por agora, aproveito a alegria das pequenas coisas.
Duarte Fonseca nasceu na cidade do Porto, onde se formou em Terapia Ocupacional e trabalhou durante um ano numa prisão. Trabalhou durante quatro anos na Beta-i como consultor de inovação e durante três anos na Associação Just a Change. É atualmente Diretor Executivo da APAC Portugal, uma associação que cofundou em 2015, que tem como missão garantir a reinserção digna de todas as pessoas que estão ou estiveram presas e que promove o negócio social Reshape Ceramics. Faz parte da comunidade Global Shapers do World Ecomic Forum desde 2019.
O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.