Lembro-me do meu pai, reunido com colegas da faculdade, a programarem um dos primeiros protótipos de inteligência artificial. Estávamos nos primeiros anos de 2000, e o mundo da IA ainda dava os primeiros passos. Os computadores eram pesados, mais parecendo uma mistura entre um calhau e uma nave espacial. Eu olhava para o monitor, embasbacado. O meu pai explicava-me com entusiasmo as conquistas da programação moderna e como o computador podia realizar ações sem a interferência humana, parecendo quase ter uma vontade própria.

A inteligência artificial, com o seu avanço exponencial, tem causado grandes transtornos e traz à tona uma pergunta cada vez mais premente: a IA vai substituir profissionais e artistas?

Como pode uma máquina criar uma obra de arte sem sentir as emoções humanas, sem sofrer um desgosto amoroso ou uma perda irreparável? Como pode um sistema reproduzir a aleatoriedade humana, que nasce das vivências e experiências? Isso é algo irreproduzível. Uma máquina nunca vagueou pelas ruas cinzentas de Seattle, escrevendo “Come As You Are” entre as memórias de Kurt Cobain, traumatizado por uma adolescência conturbada, misturada com as drogas. O resultado foi o Grunge, um estilo único que marcou, de forma indelével, uma geração.

A IA vai apenas gerar algo a partir de uma média de referências extraídas de dados, sempre com base no que já existe. O rasgo humano, com a sua capacidade de inovar, é o único capaz de criar algo verdadeiramente novo. Não vejo alguém a pagar boas dezenas de euros para ver um medley de músicas ou obras de arte misturadas por um algoritmo. Quando assistimos a um filme ou ouvimos uma música, é como mergulhar no âmago da alma do seu criador, nas suas dores, sonhos, expectativas, traumas, ódios e paixões. Ninguém quer mergulhar em referências perdidas, como se folheássemos uma daquelas revistas juvenis dos anos 90, onde as emoções genuínas se perdem entre as páginas.

No fundo, esta certeza traz-me uma certa tranquilidade. Nenhum processador vai poder passar por aquela rejeição da miúda mais gira do secundário ou experimentar drogas leves atrás de um pavilhão qualquer. A diferença está naquilo que nos faz humanos. Por mais que as máquinas evoluam, e apesar de já haver alguns avanços, não acredito que algum dia sintam, pelo menos da mesma forma que o palpitar de um coração.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR