Quem ouve o líder do Chega, sem os holofotes de uma comunicação social obsoleta e tendenciosa, para não dizer manipuladora, depara-se com uma situação desconcertante.
Os valores que Ventura apregoa, mesmo que os não concretize se integrar uma solução governativa e nela vier a ter algum espaço de decisão, são rotundamente os valores da esquerda moderada ou do socialismo democrático, se lhe quisermos dar uma conotação ideológica.
É assim que André Ventura (apesar de ainda não ter sido feita uma apresentação oficial do programa eleitoral com que o Chega vai a votos a 10 de março), e independentemente de alguns totós que se pavoneiam no partido (des)venturado, nos fala em emigração controlada, que precisamos de emigrantes que venham ajudar na produção nacional, sobretudo em áreas em que falta a mão de obra nacional, que podemos e devemos receber refugiados perseguidos politica ou religiosamente em outras latitudes, que os imigrantes que falam a língua portuguesa são bem vindos (brasileiros e cidadãos dos PALOP), que a comunidade cigana integrada não deve ser discriminada, que a aculturação por civilizações e religiões diferentes deve ser limitada, que não é racista nem xenófobo, que os homossexuais são cidadãos como os outros e não devem ser descriminados, desde que não se organizem em lobbies, que respeita a matriz cristã, faz a crítica do regime estabelecido, a importância do Estado social e da Escola pública que o próprio diz ter sempre frequentado (quantos defensores da escola pública têm os filhos nos melhores colégios privados?), etc.
Como promessa eleitoral Ventura defende que nenhum idoso tenha uma pensão abaixo do salário mínimo nacional, o que se concretizaria com uma verba próxima dos 7,5 milhões de euros a executar em seis anos, mas em duas fases, primeiro equiparar as pensões mínimas ao IAS (Indexante dos Apoios Sociais), o que custaria cerca de 1,5 mil milhões de euros, e depois, nos últimos três anos (dos seis) aproximar as pensões mínimas do salário mínimo, que custaria cinco a seis mil milhões de euros. Demagogia? Populismo eleitoralista? O que é que os demais partidos do arco governativo têm feito nos últimos anos, se não isso!
É também o político conhecido da praça pública que mais insistentemente fala no combate à corrupção e ao tráfico de influências, ao branqueamento de capitais, no delapidar do erário público que prejudica os portugueses que pagam os seus impostos, que valoriza o sistema contributivo como nos países nórdicos e repudia quem foge ao fisco, que denunciou o compadrio do filho de Marcelo no caso das gémeas brasileiras, que denunciou o favorecimento fiscal de Montenegro e de Pedro Santos nas casas de Espinho e de Lisboa, o desaire financeiro da TAP, a (ga)lambice do ex-ministro dos Transportes e Infraestruturas, como aliás todos os partidos à direita e à esquerda do PS. A equiparação remuneratória, ao nível dos suplementos, de todas as forças de segurança é uma bandeira da direita, ou será que a esquerda já esqueceu o igualitarismo salarial (a trabalho igual salário igual) que durante tantos anos advogou?
Mesmo a divisa da “identidade” de género, não é uma causa propriamente de esquerda. O lóbi LGTB+ não tem ideologia política, e perpassa todos os movimentos e partidos da esquerda à direita. Defender que a verba de 400 milhões para promover a ideologia de género (que também inclui o combate à violência doméstica) e a igualdade entre homens e mulheres, seja transferida para a justiça, as forças de segurança e os ex-combatentes, numa perspetiva de reforço do aparelho de Estado, é ideologia de direita? Não são os socialistas e comunistas os principais defensores do Estado de Direito? E precisam da alocação de verbas no OE esses desígnios da não discriminação em razão da orientação sexual, a promoção da igualdade entre homens e mulheres e o combate à violência doméstica para se consolidarem na sociedade portuguesa, ou é uma questão de sensibilidade, formação e consciência?
Também o líder parlamentar Pedro Pinto anunciou na última Convenção que o seu partido pretende acabar com o IMI, “o imposto mais estúpido que existe em Portugal”, acabar com o IUC e baixar o IVA da restauração para 6% (ao contrário dos 13% previstos no OE de 2024) que se manteria nos 23% na venda de bebidas alcoólicas, refrigerantes e águas gaseificadas. Quem verdadeiramente é de esquerda, não concordará com estas medidas? É de continuar a aceitar o IMI, quando as sedes dos partidos e o edificado religioso não o pagam? Da mesma forma é de manter o IUC quando as estradas estão cada vez mais degradadas e são apenas os cidadãos automobilizados a ficar com o ónus da descarbonização? Acabar com estes impostos é uma prerrogativa da direita liberal ou da direita radical, ou também é da esquerda popular? É despropositado e populista manter o IVA zero em todos os produtos necessários até ao final deste ano e o IVA zero em todos os produtos portugueses, como forma de fazer face a um custo de vida excecionalmente elevado, fruto de várias circunstâncias internas e externas que não vale a pena aqui elencar?
A política das contas certas de que o PS se augura, é uma política de esquerda? Apoiar os agricultores contra uma política agrícola comum que vai esmagar o sector primário é uma política de direita? Os marxistas sempre apoiaram o campesinato e o operariado, ou agora preferem defender os lobbies das energias renováveis, dos yuppies urbanos, contra o mundo do trabalho braçal, ou do que resta dele?
Só o Rendimento Social de Inserção parece dividir a prosápia da “esquerda” alegre do populismo da “direita” radical, mas mesmo aqui há na chamada esquerda ideológica quem defenda o Rendimento Básico Incondicional (RBI) como contraponto ao RSI que não chega a todos os que dele necessitam e chega a muitos que dele não precisam. A divisa do RSI não é, portanto, um fator de distinção ideológica, mas uma parangona eleitoral.
Parece também Ventura ter abandonado a narrativa da castração química para os pedófilos, a mesma que defendia o “Podemos” da esquerda radical espanhola, que no passado mês de dezembro abandonou a coligação de esquerda “Somar” que fez acordo de incidência parlamentar com o PSOE de Pedro Sánchez.
Como toda a chamada esquerda democrática também apoia a Ucrânia contra a Federação Russa de Putin e não se lhe conhece posição acerca do conflito israelo-palestiniano, que divide a sociedade portuguesa.
Que mais querem do homem?
Toda a ideologia – ou toda a «acusação» de ideologia – se apresenta como um sistema de interpretação do mundo social. Por este facto, implica um «sistema de valores» e de valoração. A possessão ideológica é absoluta, não admite partilha. E por isso projeta a negação-de-si para o outro, pela ideologização do outro. Por outro lado, toda a ideologia apresenta-se, sempre, como uma certeza de facto, uma «exigência» de ser, em que o ideológico se engana a si mesmo, projetando o seu engano no outro.
Segundo o piagetiano Oliveira Cruz, todo o sistema tende, fatalmente, para a sua própria conservação e, por isso, sistematiza. É, ao mesmo tempo, um instrumento de poder e do poder, mas reconhecer o papel castrador das ideologias no “processo” democrático, não significa que é possível fugir à “ideologia”. É utópico admitir sequer o fim das ideologias, porque isso não acontecerá. Faz parte integrante da natureza humana. Mesmo as teorias mais niilistas não o advogam, até porque contêm no seu cerne a própria ideologia, mesmo que lhe chamem contraideologia.
Como na frase que o divórcio de Júlio César com a segunda mulher Pompeia transformou no ditado popular “à mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecê-lo”, também podemos dizer de Ventura que mais vale ser de esquerda do que parecê-lo, até para não afastar a sua base social de apoio que integra descontentes, desencantados com o estado atual da nossa democracia, pejada de casos e casinhos, como é vulgo dizer-se, num quadro em que a desigualdade se agrava e os índices de pobreza aumentam. Claro que também haverá extremistas nas hordas do Chega, mas não os haverá, ainda que mais maquilhados, em outros partidos do nosso espetro político-partidário?
Com o Chega de André Ventura é a matriz ideológica social-democrata (PSD e PS) que está em perigo, não a democracia política. O centrão partidário, cada vez mais “desideológico” e mais “paraideológico” quer servir-se deste epifenómeno que se chama Chega para estribar a sua permanência no poder, sacralizando o debate e contaminando a opinião pública que cada vez mais padece de literacia política, que o “regime” não parece querer cultivar. Tem toda a plêiade de comentadores de pacotilha para ajudar.
Dizia-nos, há dias, um ex-autarca e militante socialista que não tem medo do Chega no poder e do seu crescimento, porque a União europeia tem mecanismos para impedir no seu seio medidas e devaneios que ponham em causa a estabilidade política na Europa e salvaguardar os valores tradicionais da democracia ocidental. Os casos de Itália (Giorgia Meloni, do partido conservador Irmãos da Itália, é primeira-ministra desde 2022) e da Holanda (O Partido pela Liberdade, liderado por Geert Wilders, foi o mais votado nas eleições de 2023 para o parlamento dos Países Baixos, e quase duplicou a sua votação anterior), por exemplo, são prova disso. Nunca entraram em Itália tantos imigrantes como nos últimos dois anos e tão-pouco foram afundadas as embarcações que amiúde conseguem aportar em Lampedusa, sobrelotadas de refugiados magrebinos ou sírios.
Será que hoje André Ventura e seus apaniguados são mais “socialistas” que António Costa e seus sucedâneos?
Quase, em jeito de pantomina que é o teatro da política (é vulgo chamar aos políticos pantomineiros!), apetece sugerir para futuro uma nova e criativa geringonça, em vez da “sabe-se lá” AD/CH (Acreditar em Portugal), a do PS/CH (Portugal mais inteiro), em prol da pacificação da sociedade portuguesa e para evitar a radicalização crescente no País.
Afinal, como é dito à boca cheia nalguns sectores do palratório político, não é o Chega um produto do Partido Socialista?