Toda a gente sabe que as identidades nacionais não são graníticas nem estão fechadas a interpretações e a reinterpretações; mas ninguém parece saber, ou querer saber, que o processo que está em curso não é a sua “reinterpretação”: é a sua estratégica desconstrução e diluição num tolerante todo transnacional, mediante o contrito cancelamento de um “passado de opressão e violência”. Ora, daqui, poderá vir tudo menos a anunciada “libertação do jugo das pertenças” e a insinuada paz na Terra entre “a população” de boa vontade.

Num tempo de leviandade e ignorância em que, em nome de grandes e fluidos princípios humanitários, se faz uma guerra silenciosa mas impiedosa à História e às identidades nacionais – um tempo particularmente permeável à ilusão de que as declarações universais das Nações Unidas ou o crescente rol de direitos da União Europeia são mais importantes para a defesa das liberdades e dos interesses dos cidadãos do que a independência das nações – a memória da História, da nossa História tornou-se num bem essencial.

Conhecer, reconhecer, recordar, os momentos de nascimento, de risco e de consolidação da nossa independência não será, por isso, um exercício fútil.

Para nós, Portugueses, Aljubarrota é um desses momentos fundacionais, um momento de risco e de consolidação do que somos, ou do que também somos e também nos determina. Ou do que não quisemos então ser.

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Nos finais do século XIV, com a independência em risco depois da morte de D. Fernando, o momento era de crise.

Como quase todas as crises de poder medievais, a crise de 1383-1385 começava por ser uma crise de legitimidade e de sucessão dinástica. D. Fernando não tinha herdeiro varão, mas tinha, do seu casamento com Leonor Teles, uma filha, D. Beatriz, prometida ao rei de Castela, D. João I. O Tratado de Salvaterra de Magos, de 2 de Abril de 1383, ratificava a promessa e, numa série de cláusulas conformes com correcção político-jurídica do tempo, entregava Portugal a Castela.

E recomeçou a guerra entre Portugal e Castela, embora a guerra quase fosse o estado natural das coisas entre os Estados medievais e, dentro deles, entre feudos e clãs. A guerra que então começava era também um episódio da Guerra dos Cem Anos, entre franceses e ingleses, e nela também pesava a divisão da Igreja, com um Papa em Roma e outro em Avinhão.

No reinado de D. Fernando, as guerras com Castela tinham sido sucessivas e a terceira correra mal para Portugal; daí o Tratado de Salvaterra – uma tentativa de reequilíbrio, negociada na mó de baixo. D. Fernando morre em Outubro de 1383, pouco depois do Tratado, e Leonor Teles, a viúva, fica regente.

O Conde de Andeiro, principal conselheiro da Rainha-Regente e pró-castelhano, é então morto por D. João, Mestre de Aviz, e por outros patriotas. D. João de Castela volta a invadir Portugal em 1384 e Nun’Álvares derrota os castelhanos nos Atoleiros. E em 1385, nas segundas Cortes de Coimbra, João das Regras, depois de demonstrar a ilegitimidade de todos os pretendentes – D. João de Castela, os Infantes D. João e D. Dinis, filhos de D. Pedro e Dona Inês de Castro, e D. João Mestre de Avis, filho natural de D. Pedro e de D. Teresa Lourenço –, persuade as Cortes a aclamar o Mestre, “de Pedro único herdeiro/ Ainda que bastardo, verdadeiro” (como depois dirá Camões). E fá-lo em nome de uma nova legitimidade identitária, numa decisão pioneira de reivindicação proto-nacional que se afasta do direito feudal, favorável ao Rei de Castela, e da legitimidade reinante, que levava a grande nobreza a apoiar Castela (aprendi com Martim de Albuquerque que em 1383-1385 a divisão das elites se dava entre os chefes das grandes casas e os bastardos e filhos segundos).

Em Coimbra – com o apoio político e jurídico de João das Regras – funcionou a dupla D. João Mestre de Avis/Nuno Álvares Pereira, dupla que vai ser decisiva para a vitória. De resto, Nun’Álvares terá também sido bastante persuasivo nas Cortes, apresentando-se em Coimbra com um séquito de homens armados, por via das dúvidas e dos duvidosos.

Quando o Rei de Castela vem reivindicar os seus direitos pela força, invadindo Portugal na Primavera de 1385, esta dupla já está consolidada. A avançada castelhana pela Beira Alta sofre a derrota de Trancoso, mas é em Aljubarrota que tudo se joga.

Da batalha, temos os relatos de dois cronistas da época – Froissart e Lopez de Ayala –, a Crónica do Condestabre e, algumas décadas depois, a de Fernão Lopes. Há também cartas de D. João de Castela a cidades de Espanha, a explicar a batalha e a derrota. Modernamente, sobretudo à volta das “covas do lobo” e das obras de defesa dos Portugueses, que teriam armadilhado a investida castelhana, há uma polémica – aberta por Afonso do Paço, com os contributos de Alcide de Oliveira, Gastão de Melo Matos, Salvador Arnault, Nuno Valdez dos Santos e outros – que, mais tarde, João Gouveia Monteiro veio esclarecer.

Mas o que mais aqui se destaca é a decisão de Nun’Álvares de dar batalha, e batalha decisiva, e de para isso fazer as preparações necessárias, que incluíam as tais disposições defensivas no terreno. Bem pelo contrário, e como conta Ayala, do lado castelhano dominou a arrogância, o menosprezo, ou mesmo o desprezo, pelos Portugueses, dos orgulhosos senhores castelhanos e dos muitos nobres portugueses passados para o lado castelhano.

E foi a batalha, com os resultados que se conhecem. Como em outras grandes batalhas antigas (Canas, por exemplo), a decisão foi rápida. Quebrada a linha da frente castelhana, começou a debandada e o massacre dos vencidos.

A estratégia seguida em Aljubarrota por Nun’Álvares não era original: tinha sido inaugurada por Eduardo III e pelos ingleses nas batalhas de Crécy e Poitiers na Guerra dos Cem Anos e era, fundamentalmente, uma adaptação inteligente e realista da táctica aos recursos humanos e materiais disponíveis. Os franceses eram mais numerosos e tinham uma cavalaria superior. Por isso, os ingleses escolheram uma batalha a pé, com os arqueiros a cobrir a infantaria, em posições vantajosas, e ganharam em Crécy, em 26 de Agosto de 1346. Dez anos depois, foi a vez do Príncipe Negro, filho de Eduardo III, vencer o rei de França, em Poitiers.

Nun’Álvares tinha, com certeza, conhecimento destes sucessos. Havia também uma colaboração próxima com os ingleses: as cidades marítimas de Lisboa e Porto eram ligadas comercialmente a Inglaterra e tinham tomado partido pelo Mestre. De Inglaterra tinham também vindo umas centenas de arqueiros, que alinharam em Aljubarrota e que foram decisivos.

Quando, ainda na instrução primária da “longa noite fascista”, estudei História de Portugal, os castelhanos eram 32 mil e os portugueses 7 mil. Depois li no Oliveira Martins que alguns desses castelhanos eram não-combatentes – parte do imenso trem logístico que seguia o exército e que, com a pilhagem, o abastecia –, o que baixava o número de inimigos no terreno para uns 20 mil, enquanto o dos portugueses subia ligeiramente para cerca dos 10 mil. Entretanto, João Gouveia Monteiro fez o estudo crítico da “Batalha Real” e a Fundação de Aljubarrota, instituída graças a um significativo legado de António Champalimaud, continua a estudar e a divulgar Aljubarrota às novas gerações.

Independentemente dos números e do ineditismo da estratégia, o mais importante, desde o início da crise, é a vontade de liberdade e de independência dos Portugueses (estimulada pelo tratamento que os castelhanos tinham dado ao povo nas invasões do reinado de D. Fernando); ou o facto de essa vontade colectiva de resistência ter sido bem interpretada, assumida, enquadrada e guiada por uma dupla de líderes – D. João, Mestre de Avis, e Nuno Álvares Pereira – com a assistência jurídica e institucional de João das Regras.

Aljubarrota foi o choque da determinação portuguesa com a ambição castelhana de unificar a Península. Ambição que, 200 anos depois, com Filipe II, triunfaria – mas que seria outra vez vencida em 1640 e nas campanhas da Guerra da Restauração. Até hoje.

E no entanto, há uns anos, em nome de considerações economicistas, cancelou-se o feriado que lembra esse 1º de Dezembro de 1640, o feriado em que se celebra ou devia celebrar a nossa secular vontade de independência. E não foi um governo de esquerda que o cancelou.

Lembrando hoje Aljubarrota, lembremos também que a falta de sensibilidade à memória e à História, a falta de coragem e de liderança e a aceitação passiva e acrítica da dependência, da “legitimidade reinante” e da “modernidade transnacional” costumam anteceder tudo o que é invasão, saque, ocupação, cancelamento.