Há o pensamento errado de que a saúde oral e geral estão separadas. Claro que, uma boa saúde oral é uma parte essencial do bem-estar geral – a distinção entre os dois tem mais a ver com a forma como os cuidados de saúde são praticados, e valorizados, do que com a ciência médica propriamente dita.
Mas, infelizmente, esta enganadora separação faz com que muitas pessoas acreditem que a saúde oral é menos importante do que os restantes cuidados médicos gerais. Pretendemos com este artigo ajudar a esclarecer algumas dúvidas.
De facto, do mesmo modo que as unhas, os dedos e as orelhas estão ligadas ao resto do corpo, existe obviamente uma continuidade sistémica em todo o corpo e portanto o que seria de estranhar era que a boca estivesse imune aos problemas do resto do corpo e vice-versa. Assim, muitas doenças do foro geral têm manifestações orais precoces e muitas doenças com ponto de partida oral têm importantes manifestações sistémicas.
Por exemplo, a cárie dentária e a periodontite estão entre as doenças orais mais prevalentes em todo o mundo, com efeitos adversos na saúde geral do indivíduo.
O consumo de açúcares tem sido inequivocamente associado a um risco aumentado de desenvolver cárie dentária. Recentemente, a prevalência de cárie dentária, mercê de uma melhor higiene oral e de alterações na dieta, diminuiu significativamente, mas a cárie continua a ser um grande problema em saúde pública.
De facto, a cárie precoce da infância (CPI) é a presença de uma ou mais superfícies dentárias cariadas, em crianças com menos de seis anos de idade. A CPI era anteriormente chamada de “cárie de biberão” e deve-se principalmente à exposição prolongada do esmalte a líquidos açucarados causando cárie em crianças. Para abordar este problema, tanto a Academia de Nutrição e Dietética quanto a Academia Americana de Pediatria promulgaram orientações limitando o consumo de sumos de frutas por bebés e crianças.
A pobreza ou acesso limitado a alimentos podem ter igualmente um impacto negativo na ingestão de frutas e vegetais, carne magra, grãos integrais e laticínios. Esse consumo inadequado de alimentos ricos em nutrientes, combinado com uma menor alfabetização em saúde e acesso limitado a cuidados de Saúde Oral, pode colocar as populações com mais necessidades, em maior risco de cárie e outras doenças bucais.
A natureza complexa da doença periodontal torna difícil determinar a sua relação com a dieta e a nutrição, mas o consumo frequente de alimentos e bebidas ácidas está associado a um risco aumentado de erosão dentária.
Supõe-se que alguns fatores dietéticos influenciam a cavidade oral, incluindo macro e micronutrientes, vitaminas, propriedades do pH, bem como os comportamentos associados ao seu consumo. Além disso, fatores como o estágio de desenvolvimento, doenças específicas e status socioeconómico, podem levar a alterações na dieta e considerações nutricionais específicas. Pacientes mais velhos, por exemplo, podem apresentar perda dentária, redução da capacidade mastigatória e diminuição do apetite, o que pode, por sua vez, influenciar o seu estado nutricional. Uma revisão sistemática examinou a associação entre ingestão de alimentos e saúde oral em idosos, e concluiu que a perda dentária na população mais velha está associada a mudanças na ingestão alimentar e deficiência nutricional.
Hiposialia – a hiposialia (diminuição na produção de saliva) e a consequente xerostomia (sensação de boca seca) e seus efeitos associados na saúde oral e na qualidade de vida geral, podem ser desencadeados ou exacerbados por doenças das glândulas salivares mas também por fatores dietéticos, como alimentos secos ou ácidos, cafeína, álcool, múltiplos medicamentos e até por radioterapia.
De acordo com o National Institute of Health (NIH – Maryland, EUA), mais de 90% de todas as doenças comuns apresentam sintomas orais.
Em seguida, enumera-se uma lista não exaustiva de doenças provocadas por vírus, bactérias e outras doenças, que demonstram esta ligação.
Está demonstrado que as bactérias orais e a inflamação associada à gengivite podem contribuir para várias doenças graves, incluindo:
Endocardite – esta é uma infeção muito grave do revestimento interno das válvulas cardiacas, ou do endocárdio, que pode ocorrer, por exemplo, quando bactérias da cavidade oral “se espalham” pela corrente sanguínea e se fixam em áreas específicas do coração.
Doença cardiovascular – embora a conexão ainda esteja a ser estudada, pesquisas sugerem que diversas outras doenças cardíacas, artérias obstruídas e hemorragias podem estar ligados à inflamação e infeções com ponto de partida na doença gengival.
AVC – As evidências vão aumentando, estudos recentes também relacionam a doença periodontal com acidentes vasculares cerebrais.
Pneumonia – esta e outras doenças respiratórias podem ser causadas quando bactérias oriundas da cavidade oral, por alguma razão, chegam aos pulmões e aí encontram condições para proliferar.
Gravidez e complicações no parto – periodontite (uma forma potencialmente grave de progressão da doença gengival) tem sido associada ao parto prematuro e a baixo peso de recém-nascidos.
Diabetes – pode ser particularmente problemática, resultando num ciclo vicioso difícil de controlar. Pessoas com diabetes são mais suscetíveis à doença periodontal, originando por sua vez esta mesma doença periodontal que o controlo do açúcar no sangue seja mais difícil.
Doença renal – pacientes com doença gengival geralmente têm sistemas imunológicos mais fracos e são mais suscetíveis a infeções. A doença renal pode ocorrer como resultado de uma infeção crónica a nível oral.
Doenças autoimunes — o pênfigo e o líquen plano têm manifestações orais, a primeira é potencialmente mortal e começam frequentemente pela cavidade oral.
VIH — leucoplasia pilosa intra-oral (manchas brancas na língua e face interna da bochecha ) e sarcoma de Kaposi, são indicadores de VIH.
Anemia de Fanconi — Esta anemia é uma síndrome genética rara de transmissão autossómica recessiva caracterizada por atraso do crescimento, aplasia medular (diminuição da atividade da medula óssea) e desenvolvimento de tumores na cavidade oral em adultos jovens. O distúrbio genético surge unicamente em jovens do sexo masculino e tem sido associado a uma tendência aumentada para a doença periodontal e outras anormalidades dentárias, podendo também coexistir microcefalia, atrofia testicular, malformações ósseas e renais.
Vírus do papiloma humano — O vírus do papiloma humano tem sido inequivocamente associado a tumores da orofaringe, conforme documentado num estudo recente conduzido pelo New England Journal of Medicine.
Tumores Pancreáticos — Em 2007, pesquisadores na Harvard School of Public Health publicaram os resultados de um estudo onde encontraram fortes evidências ligando a doença periodontal ao aumento do risco deste tipo de tumor. Este tumor é a quarta principal causa de morte oncológica nos Estados Unidos, com uma taxa de sobrevivência de cinco anos inferior a cinco por cento.
Além disso, as bactérias encontradas nas artérias coronárias e coágulos sanguíneos também foram encontradas associadas a estes tumores, bem como no cérebro em pacientes com Alzheimer.
Logo, fica bem demonstrado que a ligação entre o bem-estar oral e geral não é simbólica – é física. A cavidade oral é o caminho de acesso principal para o interior do corpo e constitui um ambiente ideal para as bactérias prosperarem. Estima-se que existam 100 milhões de bactérias por mililitro de saliva na cavidade oral, e de mais de 600 espécies diferentes. Felizmente a maioria é inofensiva, ou pelo menos bem controlada pelas defesas naturais do corpo – desde que seja praticada uma boa higiene oral. Mas se isso se tornar um problema, a má higiene oral leva à gengivite que, eternizada, pode progredir para periodontite e as bactérias podem multiplicar-se, entrar na corrente sanguínea e disseminar-se para outras partes do corpo.
A Universidade de Illinois (UIC – Chicago) observou que a importância da higiene e dos cuidados orais vai além do bem-estar individual. De facto, os problemas causados pela má saúde oral podem afetar e afetam a sociedade como um todo.
Doenças da cavidade oral, como cáries, podem afetar a capacidade de aprendizagem da criança, causando diminuição do apetite, depressão e incapacidade no foco e atenção – com um risco elevado de menor frequência escolar e desempenho na aprendizagem.
Crianças de famílias com acesso limitado a cuidados preventivos perderão três vezes mais dias de aulas devido a problemas de saúde oral.
As consequências para os adultos podem incluir a progressão dolorosa da doença dentária, dispendiosas idas ao hospital e dias perdidos no trabalho.
A UIC observou que o tratamento preventivo regular é vital. Muitas doenças orais são evitáveis com tratamento precoce, incluindo 80% das cáries infantis, que poderiam ser evitadas. E cada euro gasto num atendimento preventivo, pode ser economizado em tratamentos restauradores e de emergência. Estas mudanças necessárias em grande escala exigem comprometimento e ação de todos os principais interessados – incluindo académicos, profissionais de saúde, Ordem dos Médicos Dentistas, Ordem dos Médicos, Governo, bem como da FDI (World Dental Federation) e da OMS – para colocar a saúde oral na vanguarda da saúde global e nas agendas de saúde pública.
Para não falar na autoestima e capacidade de socializar de forma eficaz. Os sintomas e sinais de má saúde e má higiene oral podem levar ao comprometimento da interação social e psicossocial.
Em termos quotidianos, uma saúde oral comprometida, significa que é menos provável causar uma primeira impressão positiva. É menos provável sorrir, isso interfere na felicidade e bem estar social, e aumenta significativamente o risco de demência e deterioração cognitiva.
É difícil separar a causa do efeito quando se trata de saúde mental e saúde oral. No entanto, as pessoas com problemas de saúde mental, pela incapacidade que o transtorno mental normalmente acarreta, estão em maior risco de doenças orais adicionais, como gengivite, periodontite e cárie dentária. Por sua vez, isto pode criar uma espiral de eventos em que a fronteira entre má saúde bucal e saúde física é ténue.
“Todos podem efetivamente melhorar a sua saúde oral com o mínimo de tempo e investimento financeiro”, refere o autor de um estudo, Cyprien Rivier, pós-doutorado em neurologia da Escola de Medicina de Yale num comunicado à imprensa da American Heart Association. Depois de analisar os resultados, ele explica: “A má saúde oral, pode causar declínios na saúde neurológica, por isso precisamos de ter cuidado extra com a nossa higiene oral porque tem implicações muito para além da boca”.
Resumindo, são várias as repercussões que estes problemas podem acarretar, fazendo consumir recursos que deveriam com vantagem estar incluídos num programa abrangente de saúde oral. Rastreios periódicos identificariam atempadamente lesões orais malignas que acabam sempre em intenso sofrimento, tratamentos extremamente onerosos e perda de vidas. Os problemas psicológicos relacionados com a aparência da própria pessoa quando têm falta de dentes anteriores, interferindo com a sua autoestima e motivando a procura de apoio psiquiátrico e de medicação auxiliar, são outro fator a ter em conta.
De facto, uma boa saúde oral é mais do que “exibir” um sorriso saudável durante uma reunião de negócios ou entrevista mas, infelizmente ainda é comumente associada a indivíduos com capacidade financeira e os portugueses merecem o direito à saúde na integra, e se, em Saúde Oral, nos queremos equiparar aos países da União Europeia, ficamos com a ideia bem firme de que estamos muito longe das estratégias de sucesso que eles implementaram. Merecemos entrar na Europa?
Tomemos nota que em Portugal, na Saúde Oral do Serviço Nacional de Saúde (SNS), até há poucos anos, quase só trabalhavam estomatologistas, e esta parca oferta, tal como hoje, não chegava à grande franja da pobreza em Portugal. A saúde oral, está muito esquecida em Portugal e, se nada for feito, tem um péssimo prognóstico. Sabemos que a mudança não pode ser realizada de um dia para o outro, mas o percurso correto tem que começar a ser delineado.
Hoje a saúde oral em Portugal continua inserida em insuficientes e escassos programas de cuidados de saúde primários, e a maioria desses serviços de estomatologia ou medicina dentária continuam a ser prestados pelo setor privado, o que constitui, por si só, uma barreira na acessibilidade aos cuidados de saúde oral.
Trata-se de uma carência atual do SNS. Apesar de todos os avanços de que o SNS foi alvo, é importante referir que o único serviço de saúde onde não existe universalidade, além dos cuidados de saúde mental, é justamente o da saúde oral. Por outro lado temos uma vulnerabilidade dos profissionais de saúde oral, até porque a maioria dos médicos dentistas é trabalhador independente no setor privado. De facto, não existe nenhuma carreira que permita a estes profissionais estarem integrados nos quadros do SNS. Entretanto, a falta de respostas de proximidade em saúde oral tem levado à celebração de contratos de prestação de serviços entre os ACES e empresas de trabalho temporário que “fornecem” médicos dentistas, existindo hoje cerca de 135 a 150 médicos dentistas em centros de saúde, escassíssimos para assegurar estes cuidados primários.
Em simultâneo, temos um excesso de médicos dentistas, que estão a ser formados (mais de 600 por ano!) para o desemprego, subemprego e trabalho precário.
Nos últimos dias uma réstia de esperança foi divulgada com o anúncio de que mais Centros de Saúde serão dotados de consultórios de Saúde Oral e de que, finalmente, haverá até 2025 a criação da carreira de Medicina Dentária no SNS. É uma promessa do Diretor Executivo do SNS, Professor Doutor Fernando Araújo.
Em 2022 foram feitas cerca de 100000 consultas de saúde oral por médicos dentistas nos Centros de Saúde e o tímido objetivo é duplicar essas consultas aumentando também o número de consultórios que atualmente ronda os 147, para o dobro, para que haja um consultório em cada município…
Claro que já sabemos que tudo isto é ainda muito insuficiente, pois se o Ministério da Saúde quisesse resolver apenas o problema da saúde oral básica dos 20% da população abaixo do limiar de pobreza, teria de contratar 1379 profissionais e instalar gabinetes de saúde oral na maioria dos Centros e Extensões de Saúde, pois só em Portugal Continental temos 357 Centros de Saúde e 1767 extensões de saúde… estamos pois muito longe das necessidades…
Por outro lado, enquanto esses profissionais estiverem contratados a recibos verdes, por empresas de trabalho temporário, muitas vezes com vencimentos líquidos inferiores a 700 euros/mês e a trabalharem no SNS sem fazerem parte do mesmo, estamos conversados…
Entretanto, nos 28 hospitais do SNS com Serviços de Estomatologia, local por excelência para cuidados diferenciados, e onde os médicos estão integrados na tão desvalorizada carreira médica do SNS, existe há muitas décadas uma esforçada população de cerca de 150 especialistas em Estomatologia e cerca de 60 médicos internos da especialidade, que têm feito o “milagre” de, além de atender as urgências, tratar os doentes internados e os doentes que apresentam problemas orais em contexto de multipatologia, polimedicação e “necessidades especiais”, e ainda dar a cobertura (im)possível aos doentes que os cuidados primários não conseguem tratar, por manifesta falta de profissionais de saúde oral. A Estomatologia hospitalar no SNS, fez em 2015 mais de 225000 consultas e cerca de 10000 cirurgias. Hoje, com uma população de médicos em acelerada renovação e bem mais jovem, já ultrapassa esses números! É espantoso, para apenas centena e meia de especialistas!
É caso para dizer que, na Saúde Oral, e apesar de estarmos com um sério problema de Saúde Pública, temos profissionais, só falta mesmo é investir neles! O Governo deve intervir rapidamente. Ontem já era tarde!