Há hoje na Europa e nos Estados Unidos muitas direitas e partidos de direita, alguns até no governo e eleitos com maiorias substanciais. Mas se as direitas são uma realidade tão vasta e complexa como as esquerdas, há uma diferença importante: enquanto o retrato das esquerdas, entre nós senhoras da academia e da comunicação, é geralmente um lisonjeiro auto-retrato, o das direitas é quase sempre a grotesca caricatura de um “outro”, intencionalmente ignorado e amalgamado.
Há uma boa mistura de má-fé, maniqueísmo, arrogância, ignorância e estupidez na caricatura que as esquerdas fazem da direita. Como nas velhas caricaturas racistas de negros ou judeus, a individualidade, a diversidade ou até a humanidade são aqui anuladas, e os traços “característicos da raça” grotescamente exagerados para que o caricaturado surja no seu pior. E como o pior à direita foi o hitlerismo, ligado ao etnocentrismo genocida e fanático que arrastou a Europa para a guerra e para a decadência, é isso que sai na caricatura. Já no auto-retrato à esquerda, não há Maos ou Estalines, Revoluções Culturais ou Goulags, capitalismos de direcção central ou tomadas de assalto de novas “minorias” que ensombrem o rosto pleno de ideal, ciência e progresso e o olhar generoso e justiceiro do auto-retratado.
Revolucionários e conservadores
O fascismo italiano, que foi arrastado na amálgama, era anterior e muito diferente do nazismo. E não tinha veleidades racistas. Mussolini lançou o movimento em Itália, em Março de 1919, quando os socialistas e comunistas italianos, imitando os bolcheviques, tentavam o assalto ao poder. A partir dos princípios nacionalistas-revolucionários do Manifesto de Piazza San Sepolcro, que iam das reivindicações territoriais da “vitória traída” à nacionalização da Banca e ao combate à influência do Vaticano, os fascistas italianos apareceram como alternativa autoritária e violenta à violência da esquerda radical. E três anos depois, com a neutralidade colaborante das forças conservadoras – Monarquia, Exército, Igreja, Indústria –, chegaram ao poder pela via mista, insurrecional e legal.
Esta direita revolucionária teve cópias na Europa – a Falange, em Espanha, os nacionais-sindicalistas, em Portugal, Oswald Mosley, em Inglaterra, Léon Dégrelle, na Bélgica, a Guarda de Ferro, na Roménia.
Paralelamente a esta direita fascista ou fascistizante surgiu, na mesma linha de reacção ao “perigo comunista” (que era um perigo real), uma direita nacional-autoritária, não-revolucionária e até reaccionária. Era uma direita tradicionalista com raízes nas escolas francesas contra-revolucionárias que, de Joseph de Maistre a Charles Maurras e à Action Française, tinham desenvolvido uma teoria do Estado que se opunha radicalmente aos princípios da Revolução Francesa, qualificada através do Terror.
Estas duas direitas, uma totalitária e outra autoritária, uma mais popular outra mais elitista, não eram liberais. Na Europa, os autoritários chegaram ao poder através de ditaduras militares – Pilsudsky, na Polónia, Horthy, na Hungria, Primo de Rivera, em Espanha, Salazar, em Portugal, Metaxas, na Grécia – e fundaram regimes quase sempre apoiados pelas Igrejas oficiais e pelas classes médias. Nem os fascistas nem os nacionais-autoritários aceitavam o liberalismo (excepto na economia) e muito menos a democracia partidária.
Há depois uma terceira classe de direitas: as liberais-conservadoras ou conservadoras-liberais, inspiradas em autores como Chateaubriand e Tocqueville e num conservadorismo à inglesa. Mas nos vinte anos entre as duas Guerras, esta direita liberal-conservadora, fiel aos princípios constitucionais, foi sendo neutralizada na Europa, sobrevivendo apenas em França, na Grã-Bretanha e nas monarquias nórdicas.
A Segunda Guerra Mundial varreu os regimes e os partidos fascistas e autoritários que se tinham aliado com o Terceiro Reich e o comunismo veio com os exércitos soviéticos e ocupou toda a Europa Oriental, erguendo a Cortina de Ferro. Para Ocidente, ficaram democracias liberais e, na Península Ibérica, dois regimes nacionais-autoritários, socialmente conservadores, que duraram mais ou menos o tempo de vida dos seus fundadores.
Depois da Guerra Fria
Em 1989-1991, a URSS implodiu e libertou a Europa Oriental. O mundo tornou-se, então, um vasto mercado, e o liberalismo económico dos conservadores anglo-saxónicos – representado pela dupla Reagan-Thatcher e coincidente com a abertura do capitalismo de direcção central na China de Deng Xiaoping – cresceu para a globalização.
As consequências económicas e sociais desta nova globalização – a deslocalização de parte das indústrias da Europa e dos Estados Unidos para a Ásia e as migrações para um Ocidente em queda demográfica – romperam o centrismo ideológico do mundo euro-americano da Guerra Fria.
À direita, na Europa, os partidos conservadores e democratas-cristãos deixaram-se dominar pelo europeísmo, desvalorizando os factores nacionais e identitários e ignorando o progressivo descontentamento das massas populares. À esquerda, as vanguardas radicais, numa recuperação nostálgica do libertarismo “soixante-huitard” com laivos de totalitarismo maoista e comunista, abandonaram a “luta de classes”, acomodaram o internacionalismo ao globalismo e dedicaram-se à engenharia social e humana com a tentativa de imposição, por influência e por legislação avançada, de causas ou micro-causas “fracturantes”. Gramsci passou a contar mais que Lenine.
Tal como, outrora, o perigo comunista, tudo isto provocou e provoca reacções. Numa época de ofensiva e de radicalização disruptiva, os movimentos políticos reagem sobretudo ao que percepcionam como o inimigo principal. Daí uma escalada que já levou a soluções extremas, como o Brexit, ou a conflitos quentes, como o da União Europeia com a Hungria e a Polónia.
Assim, de uma ponta à outra da Euro-América, crescem muitas direitas: como, na Rússia, a direita de Putin, nacionalista, popular, autoritária e aliada com a Igreja Ortodoxa; ou, nos Estados Unidos, à volta de Trump e centrada no Sul e no Midwest, uma direita também popular, conservadora e religiosa.
Na Europa Continental predominam duas direitas: uma é nacional-conservadora e popular, com uma agenda de combate político e cultural à hegemonia de Bruxelas, às imposições da nova esquerda e à imigração descontrolada, como a húngara e a polaca; a outra é mais popular ou populista, menos conservadora nos costumes e mais radical na hostilidade às “elites dominantes”, na denúncia da imigração indiscriminada e no apelo a factores nacionais e identitários. É a direita dos Fratelli d’Italia, de Giorgia Meloni, do Rassemblement National, de Marine Le Pen e da AFD alemã. Os seus apoiantes têm características sociais próximas dos que, no passado, apoiavam os movimentos de direita revolucionária; tal como os partidários dos nacionais-conservadores de agora e aproximam, em perfil social, dos antigos apoiantes dos modelos autoritários.
A diferença profunda de todas estas direitas em relação aos movimentos fascistas e autoritários de há 100 anos, que tinham uma agenda anti-democrática ou pelo menos anti-democracia partidária e concorrencial, é o facto de não proporem uma teoria de legitimação do poder que exclua eleições livres e justas.
O exotismo português
Em Portugal, porque a esquerda tem o quase monopólio da interpretação e da comunicação, persiste a absolvição generalizada do radicalismo dos descendentes de Lenine, Trotsky e Estaline, que também contamina a direita, a par da tentativa, por parte da esquerda no poder, de absorver as extremas-esquerdas absolvidas para se instituir como uma só entidade, democrática e de “rosto humano”.
Entretanto, qualquer esboço de resistência à direita, qualquer tentativa de saída do gueto do centrismo obediente, são logo catalogados como perigosas revivescências do “nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar”, para usar o célebre “mantra” de Álvaro Cunhal. Ou seja, a direita tanto é amalgamada em bloco como uma hidra fascista de uma só cabeça – a fim de unir as esquerdas –, como é encorajada a dividir-se por linhas vermelhas, demarcando-se dos seus veios “iliberais”, a fim de que reine “a Esquerda”, legítima detentora do “regime democrático”. E, dado o panorama, não parece que isto vá mudar.