As fábulas foram idealizadas como ferramenta moralista. Em reinos onde os animais falam, não se apontam dedos nem se branqueiam vícios. Fala-se, ao mesmo tempo, com a solenidade do rigor e com a leveza do que só o imaginário nos traz.
Tenho-me questionado o que diriam os grandes fabulistas se fossem hoje mais do que parte da memória colectiva. De Esopo a La Fontaine, passando por Fedro, com que monstro mitológico descreveriam o que aí vem e o que temos feito.
Não sei. Verdade é que não posso almejar mais do que uma analogia às estórias que os grandes mestres nos deixaram e hoje, recordo sempre os meus tempos de puerícia. Os contos ao colo dos avós, as lições de mão dada com os meus pais, a atenção pousada no regaço quando cruzava pernas para ouvir a educadora, remetem-me sempre para o mesmo lugar. Aquele verão soalheiro, naquela floresta onde a cigarra alegremente cantava. De barriga cheia com os verdes que a natureza dava e aquecida pelos ternos raios de sol, enquanto desdenhava do esforço da formiga que, sem saber apreciar a vida, desperdiçando a beleza da inocência, se aprovisionava para o Inverno que estava a vir. Galopante, no seu cavalo de gelo, trazendo o frio, a aridez dos campos e, inevitavelmente, a morte.
Portugal teve tempo para se preparar para a Covid-19 e não o fez. Não fechou fronteiras atempadamente para minimizar o impacto económico, mantendo, pelo menos, a economia interna a funcionar. Houve tempo para comprar equipamentos de protecção individual antes de haver ruptura de stocks, não o fizemos.
Tivemos dois meses para preparar o inverno e, será que há alguém que me consiga explicar o que tem vindo a ser feito?
Vivemos de expediente, do que a jorna nos traz. Com “chapa ganha, chapa gasta”. Sem planeamento estratégico, almofada financeira ou estratificação das dificuldades, resta-nos mendigar à Europa uns milhares de milhões e demonstrar desagrado quando nos querem ensinar a ser precavidos. Somos o filho grosseiro que se afirma independente enquanto pede ao pai a semanada.
O que tem vindo a ser feito, em meio hospitalar, é mais do mesmo. Tentar diminuir as listas de espera que aumentaram durante o confinamento, despachar doentes para cumprir o previsto no Excel, poupar equipamento para o que aí vem e esperar alvíssaras pelo bom comportamento.
Se houvesse planeamento, podia não ser uma má estratégia. O problema é que estamos a esgotar profissionais aos quais vamos pedir muito no Inverno. Não houve actualização de carreiras nem aumento dos vencimentos, o que obriga os profissionais a acumularem funções noutros locais e continuamos com um número reduzido de funcionários. Em resumo, sacrificamos pessoal para poupar material.
Além dos hospitais, existem os Cuidados de Saúde Primários. As consultas nos Centros de Saúde estão suspensas. Os médicos conversam com os utentes ao telefone e os P1 para exames estão reduzidos a mínimos para evitar deslocações de pessoas e, sobretudo, para reduzir os encargos para o país.
Mais uma vez, a ideia não é totalmente descabida, no entanto, as pessoas não morrem só de Covid e sem uma aposta clara e inequívoca na prevenção, haverá que imputar culpas pelos resultados do desinvestimento na saúde, privilegiando a aposta na doença.
A Rede Nacional de Cuidados Continuados é aquela onde ainda vai existindo mais tranquilidade, seja pela dedicação exclusiva à área de grande parte dos profissionais, seja pelo tipo de utentes que lá existem, os nossos receios podem abrandar quando falamos na RNCCI, porém, a falta de camas é tão crónica como a doença de grande parte dos clientes da rede e sabemos que uma segunda vaga pode aumentar exponencialmente a necessidade de reabilitação dos doentes. Isto é, se há carência de camas ao dia de hoje, amanhã, quando aumentar, a necessidade será brutal.
Por fim, os lares. Apesar dos nomes, geralmente carinhosos, muitas das unidades para os seniores, não passam de armazéns de velhos, sentados em cadeiras à espera que a morte lhes termine a desgraça. Parente pobre dos cuidados em Portugal, com tutela de um ministério quando deveria, no mínimo, responder a dois. Os lares, que sofrem apenas vistorias da segurança social, albergam pessoas. Pessoas frágeis que, pela sua idade, pelo que contribuíram para o país e, mais não fosse, em nome do humanismo, mereceriam mais e melhores cuidados de saúde.
A manta é cada vez mais curta e, se antes se destapavam os pés para tapar a cabeça, hoje aconchega-se o tronco, mas deixa as cuecas à vista. E que não restem dúvidas, o sistema nacional de saúde está de tanga!