No dia 22 de Agosto, por lapso ou furto de imagens, foi tornada pública uma conversa em off do Primeiro-Ministro com um jornalista do Expresso. Por crer que as conversas em off the record são de foro pessoal e informais, esquivar-me-ei de tecer qualquer tipo de comentário à visão que o chefe do executivo tem sobre os profissionais de saúde, nomeadamente, dos médicos.

O que me preocupa, é a dimensão que o caso tomou e, sobretudo, as consequências que dali podem advir para o futuro do país.

A situação precipitou uma reacção que todos os que acompanharam a sindicância à Ordem dos Enfermeiros já esperavam. Rapidamente outros membros do Governo vieram assumir a vontade de rever as atribuições das ordens profissionais, levando novo diploma ao Parlamento, já em Setembro.

Fazendo um enquadramento: as ordens são associações de profissionais, que regulam o desenvolvimento e o acesso à profissão. Nas suas atribuições consta ainda que devem fiscalizar a prestação do serviço, por forma a garantir a segurança e a excelência. Significa isto, que há técnicos, democraticamente eleitos, a regular, fiscalizar e promover as boas práticas entre os seus pares.

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Dizer que as organizações profissionais não devem fiscalizar o Estado, é autocrático, pedante e pernicioso. O país não pode depender de organismos de nomeação para fiscalizar as decisões de quem os nomeia, sob pena de poder haver uma supervisão enviesada ou tendenciosa. O Parlamento também não consegue ser o garante da segurança da população, uma vez que o Governo é constituído assentando na representação parlamentar. Não havendo outros organismos com capacidade para examinar os serviços prestados, estamos perante um executivo que, na prática, não na teoria, roça os limites do absolutismo.

A única forma de garantir isenção às ramificações do Estado é acabar com as nomeações políticas para os cargos públicos e fazer deles fóruns de democracia com lugares democrática e publicamente eleitos. Se os mandatos forem atribuídos pelo povo, os decisores nunca mais terão dúvidas sobre a quem devem lealdade.

A sociedade civil precisa de um poder regulador que se encontre fora da alçada do poder, garantindo uma vigilância constante e independente que extravase as eleições legislativas, uma vez a cada 4 anos.

Marta Temido, há dias, sugeria a existência de uma quota de um terço da sociedade civil nas ordens profissionais. A ideia da Ministra da Saúde faz tanto sentido, como exigir ao Governo que entregue um terço dos ministérios a outros partidos. É uma golpada que fere de morte a importância democrática e o sentimento de pertença a uma classe. As ordens não podem ser mais uma montra para boys, sob pena de termos gente a decidir sobre temas que não domina e a condicionar a liberdade e a independência com que as associações profissionais actuam.

Com esta equipa, fizemos mais de duas centenas de visitas de acompanhamento ao exercício profissional. Ninguém gosta menos deste trabalho do que quem o faz. Incomodam-se colegas, geram-se atritos e, sobretudo, ganham-se inimigos. No entanto, no outro prato da balança está o funcionário em risco ou o utente desprotegido. Não deixar ninguém sozinho exige que, por vezes, se travem batalhas contra quem julga que esconder é a melhor forma de resolver. Reguengos é só mais uma prova do que acontece quando se desvaloriza o parecer técnico, mas podia falar também do Lar do Comércio, por exemplo, ou de tantas outras circunstâncias em que as ordens profissionais alvitraram soluções a tempo de ser evitado o pior.

As nossas grandes bandeiras são a segurança e o rigor na execução dos cuidados. Isto só se torna num problema político se não existir investimento e observação que assegure a qualidade do serviço prestado. Ao fiscalizar, não estamos apenas a pugnar pela excelência, estamos, sobretudo, a proteger os cidadãos. Não somos mais do que aliados do Governo, independentemente da sua ideologia política, no desígnio de cumprir um sistema nacional de saúde seguro.

A questão que se devia colocar agora não é: que atribuições devem ser retiradas às ordens no futuro? A questão deveria ser: como reforçar as ordens para evitar os erros do passado?

Não somos arma de arremesso contra o Governo, mas também não podemos ser a sua muleta.