Nas últimas décadas, o conceito de “comunidade educativa” tem-se naturalizado no discurso pedagógico e nos diferentes documentos escolares como um princípio que assume os objetivos de descentralizar as fontes de conhecimento e partilhar a tarefa de formar os alunos com as diversas organizações sociais. O ambiente educativo transcenderia, assim, a escola, tornando-a um espaço de troca de experiências e de saberes entre professores, alunos, pais, empresas, organizações não governamentais, associações e outros atores relevantes na formação e no desenvolvimento dos alunos. Esses organismos deveriam, ainda, partilhar com os professores o centro da produção de conhecimento, potenciando a progressiva descolarização do saber e a consequente descentralização dos poderes de decisão, criando um tecido educacional que respeite as diferentes sensibilidades políticas, ideológicas e profissionais do mesmo modo, tanto na construção dos currículos escolares, como na sua aplicação a contextos heterogéneos.
Todavia, a realidade educacional em Portugal ainda permanece muito distante de tal idealização, sendo o saber disciplinar e as respetivas avaliações formais as principais preocupações dos professores. O quotidiano escolar é uma realidade distópica face ao ideal de uma comunidade educativa que, para ser efetiva, obrigaria a uma inflexão na construção e na abordagem curricular – muito menos técnica e muito mais holística – assente no desenvolvimento de competências e não na mera aquisição e reprodução de conteúdos. Isto não quer dizer que a especialização não seja necessária ao conhecimento, mas, no contexto de uma escolaridade obrigatória universal, as capacidades transversais e associadas a cada área do saber revelam-se muito mais importantes.
As escolas acabam por sofrer com aquilo a que alguns autores chamam de “paradoxo do Estado neoliberal”. Por um lado, temos um Estado-avaliador que mantém o controlo sobre o currículo e que supervisiona as aprendizagens através de exames nacionais; por outro, um Estado-liberal que permite que os resultados educativos sejam transformados em produtos hierarquizados pela lógica de mercado, que, naturalmente, acabam por dar mais importância aos resultados do que às aprendizagens, colocando, ano após ano, os colégios privilegiados (e não necessariamente privados) nos primeiros lugares dos rankings e muitas escolas com trabalhos notáveis nos últimos lugares da tabela.
Isto não se deve unicamente a contextos sociais mais ou menos favorecidos, como é comum justificar, mas, principalmente, ao instrumento de medida que é imposto a todo o sistema educativo e que acaba por contaminar a prática letiva dos professores, que se veem obrigados a adotar, independentemente das características sociodemográficas das escolas, um modelo de ensino focado na preparação de exames. Acaba-se por gastar recursos e tempo na mecanização de conteúdos e na tipificação de respostas, em detrimento de aprendizagens que poderiam ser muito mais significativas, pois, neste contexto, um “bom” professor é aquele que centra o processo de ensino-aprendizagem nos testes de avaliação e que coloca nos mesmos um compêndio de perguntas de exame, mesmo que signifique reduzir o currículo e transformar a sala de aula num espaço de treino pavloviano, em vez de um ambiente de exploração e de compreensão de temas/problemas.
Esta situação prejudica sobretudo aqueles que já se encontram nas margens do sistema educativo e necessitam de respostas alternativas. Muitos alunos não veem na escola um espaço onde possam desenvolver as competências para as quais têm capacidade ou interesse, porque a prática escolar contraria claramente o discurso inclusivo que apregoa. Ao continuar a valorizar conteúdos e métodos de ensino que mobilizam apenas as competências linguísticas e matemáticas, desvalorizam-se o corpo, a arte, a música, as emoções e a capacidade de pensar entre, através e além das diferentes disciplinas. Como resultado, os alunos cuja cultura se encontra muito afastada da gramática escolar dominante acabam por acumular reprovações, resultando, muitas vezes, no aumento da indisciplina e no desinvestimento destes na sua formação, permanecendo na escola somente até cumprirem os dezoito anos da escolaridade obrigatória.
Assim sendo, uma verdadeira comunidade educativa necessita de repensar os métodos de ensino e de criar ambientes educacionais disruptivos que permitam a todos contribuir no processo educativo, envolvendo igualmente as escolas, as famílias e a comunidade. É fundamental promover não apenas os conteúdos tradicionais, mas também alavancá-los em projetos que valorizem a diversidade e fomentem a criatividade.
Um exemplo concreto desse tipo de sinergia é o projeto ao qual me tenho dedicado nos últimos quatro anos. Destinado a jovens com um histórico de insucesso escolar – pelo menos duas retenções até ao 8.º ano – o projeto adota uma abordagem construtivista, incentivando os alunos a atuarem como agentes ativos da sociedade, onde identificam problemas na comunidade e desenvolvem atividades nessas áreas. Esta estratégia, além de recuperar as competências que os alunos já trazem consigo e que tradicionalmente não são valorizadas pelo saber escolar, permite aplicar os conteúdos curriculares em atividades tão diversificadas como produção de documentários, escrita criativa, projetos de arte, fotografia, animações em vídeo, criação de banda desenhada, videoclipes musicais e até na criação de peças de teatro ou na participação em quintas pedagógicas.
Para se aproximar a atual realidade distópica do ensino em Portugal deste ideal pedagógico, mais inclusivo e participativo, além de ser necessário criar comunidades educativas mais pequenas, atualizar programas e valorizar currículos alternativos ao currículo geral, será fundamental transferir para as universidades a responsabilidade de seleção dos candidatos e, tal como a última recomendação do Conselho Nacional de Educação indica, transformar os exames nacionais num modelo semelhante às Provas de Aptidão Profissionais, que deveriam servir apenas para conclusão do ensino secundário e não como critério de seleção para o acesso ao ensino superior. Portugal é dos poucos países europeus onde exames nacionais ainda têm essa dupla função de conclusão do ensino secundário e de acesso ao ensino superior.
Por fim, o ideal de uma comunidade educativa exige políticas de proximidade e a superação do trauma da corrupção presente na sociedade portuguesa, promovendo maior confiança nas estruturas intermédias como garante da justiça no processo educativo. Embora esse trauma possa ter algum fundamento – todos conhecemos casos de favorecimento nos organismos intermédios de decisão -, a realidade é que os exames nacionais apenas conferem uma ilusão de equidade, especialmente quando se considera que todo o sistema pode ser subvertido por alunos, encarregados de educação, professores ou diretores. É fundamental fortalecer a transparência e a integridade nas práticas escolares, mas a centralização do processo educativo nunca será a resposta a tal desafio. Só atribuindo mais autonomia às escolas e aos professores se poderá construir um sistema educativo mais justo e eficaz, que reflita verdadeiramente os valores de uma comunidade educativa ideal e responda às necessidades individuais de cada aluno. O sistema educativo tem de se transformar num conjunto de espaços educativos não condicionados a priori, com métodos de ensino mais ativos e menos transmissivos.
- Resumo das atividades do projeto CEF do Externato de Santa Clara
- Recomendação n.º 6/2024 do Conselho Nacional de Educação
- Ranking das escolas 2023