É um lugar comum escrever-se que a Justiça é um pilar fundamental da democracia. Faz sentido. E a saúde da democracia depende muito da saúde da Justiça.
Sucede que em Portugal, há tempo demais, a Justiça está enferma, vítima de patologias diversas, para as quais tarda a terapêutica, se é que o diagnóstico feito, já antigo, permite prescrever algum remédio eficaz.
Tal como no Serviço Nacional de Saúde – arruinado por sucessivos erros, aproveitamentos e cativações à sorrelfa –, também a Justiça padece de problemas crónicos que ninguém parece capaz de encarar e de superar.
Um leitor desprevenido, poderá achar a comparação forçada. O certo, porém, é que em ambos os lados se eternizam as listas de espera, seja nos hospitais saturados e carentes, seja nos tribunais, empurrando o desfecho de muitos processos para as calendas. Ou para a prescrição.
Claro que este estado de coisas abala há muito a confiança do cidadão e a credibilidade das instituições. E a democracia ressente -se.
Em ambos os casos também, tardam as reformas, por falta de determinação política, e sobram os remendos, que “atamancam”, mas que nunca resolvem a situação, embora penalizem o erário público. Um desperdício sem o menor proveito.
Sejam manifestos subscritos por 50 ou mais personalidades, ou abaixo-assinados corporativos, com farta adesão de procuradores, a Justiça não sai do mesmo beco, enquanto não houver governo e legisladores capazes de corrigir as distorções existentes e corrosivas do sistema.
Algures em 2021, a procuradora jubilada, Maria José Morgado, dizia que “a legislação tem sido uma máquina de fabricar imbróglios na justiça”. Infelizmente, teve e tem razão. E nada mudou. A “máquina” continua perra, com as corporações felizes por não se sentirem beliscadas no seu casulo.
Se na “rentrée — após o vazio habitual da chamada “silly season” , houver a iniciativa e a coragem de “por ordem na casa”, como prometeu a nova ministra da Justiça — que tanto melindrou a PGR no seu recolhimento -, o governo marcará pontos junto dos portugueses, cansados de adiamentos.
Mas se logo se perceber, que é tudo “farinha do mesmo saco” e que as grandes decisões não ultrapassam o reduto das promessas, a desilusão não levará longe o governo, mesmo que o Orçamento de Estado seja “vendido” como uma espécie de “poção mágica” e passe com a abstenção de um PS comprometido.
Um exemplo paradigmático do estado comatoso em que vegeta a Justiça, é o “folhetim” da “Operação Marquês”, que se arrasta há uma década, envolvendo um ex-primeiro ministro, algo inédito por cá.
Desde que foi detido no aeroporto, vindo de Paris, em novembro de 2014, José Sócrates nunca mais deixou de ser notícia pelas piores razões, primeiro em prisão preventiva no estabelecimento de Évora e, depois, em domiciliária durante quase um ano.
Suspeito de corrupção, branqueamento de capitais, fraude fiscal, falsificação de documento e de outras “ninharias”, Sócrates fez história por não haver memória, pós 25 de abril, de um ex-primeiro ministro preso, indiciado pela prática de crimes sobejamente graves.
Recorde-se que não faltou então a “romaria“ de políticos socialistas e de amigos “indignados” até Évora, incluindo António Costa, que procurou resguardar o partido com a célebre frase “deixemos a justiça funcionar em todos os seus valores”.
Mais tarde, em 2022, Costa diria, mais “terra a terra”, numa biografia sobre Mário Soares, assinada pelo jornalista Joaquim Vieira, que se sentira enganado, concluindo que “ele, de facto, aldrabou-nos [ao PS]”.
A realidade é que a Justiça ainda não conseguiu julgar Sócrates, condenando-o ou inocentando-o, enquanto protagonista de um respeitável rol de acusações (confirmadas pela Relação), perante as quais tem procurado, a todo o custo, evitar o julgamento, apostando tudo no tabuleiro da prescrição.
O truque está nos expedientes processuais, que alguns advogados manejam com destreza, onde avultam os recursos para tribunais superiores (ao todo, em janeiro, totalizavam-se 52, segundo o Eco…), indeferidos em 80% dos casos, mas que atrasam a engrenagem da Justiça. A defesa de Sócrates tem logrado, assim, preciosos adiamentos, fundamentais para” queimar” prazos.
No domínio das curiosidades, seria, aliás, interessante conhecer qual é o montante acumulado em custas judiciais e honorários de advogados. É um tabu, pelo qual Sócrates não tem sido muito incomodado, salvo numa entrevista, em directo, na RTP, quando o jornalista o interpelou a esse respeito – provocando, de imediato, uma reacção intempestiva do entrevistado, que se negou a responder.
E apesar de ser uma figura pública, que devia essa e outras explicações sobre a sua conduta, nunca mais apareceu ninguém que o perturbasse, e nem mesmo o próprio entrevistador insistiu no tema, “encolhendo-se” perante o tom desabrido e ameaçador de Sócrates.
Quem é que paga as despesas em causa, é um segredo bem guardado e um mistério sobre a sua proveniência.
Uma coisa é certa: nem os tribunais fiam, nem os advogados costumam trabalhar de borla …
ucedem-se, entretanto, com prescrições à vista, os imbróglios jurídicos, e os ziguezagues de juízes a “chutarem para canto”, desejosos de evitar “chatices”, e revelações tão surpreendentes como a de a defesa de Sócrates ter sabido, antes da Relação e do Conselho Superior da Magistratura (CSM) – segundo revelou este jornal e não foi desmentido – do veredicto de uma junta médica que observou o desembargador Ivo Rosa, dando-lhe alta clínica, após meses de baixa.
Como é que os advogados de Sócrates souberam, em primeira mão, do boletim clínico de Ivo Rosa e da alta médica, supostamente confidencial, é outro mistério que ficará, como tantos, a pairar sem ser esclarecido.
Percebeu-se logo a importância da informação privilegiada, quando a defesa de Sócrates requereu que fosse, novamente, Ivo Rosa a ocupar-se da revisão instrutória determinada pela Relação, na qualidade de “juiz natural”.
E percebe-se, também, o empenho da defesa em que os processos transitem para Ivo Rosa, depois do que se passou com este juiz, agora desembargador, que “aliviou” Sócrates de boa parte dos crimes imputados pelo Ministério Público.
Só não se percebe porque razão Sócrates – que não se tem cansado de protestar a sua inocência -, evita a todo o custo comparecer em tribunal, o lugar próprio para, se for o caso, “limpar” o seu nome, saindo da sala de audiências de “alma lavada”.
Com a pontualidade de um relógio suíço, começaram, entretanto, as férias judiciais, indiferentes à sorte de vários processos pendentes e muito mediatizados. A “fila de espera” tarda em “emagrecer” …
Em jeito de despedida, e em vésperas da ida “a banhos”, houve um raro sortido de entrevistas, desde Lucília Gago – que falou, finalmente, e de “língua afiada”, colocando no pelourinho a actual ministra da Justiça -, até ao antigo procurador geral, Cunha Rodrigues, em dose dupla. Uma fartura.
E a Justiça, designadamente, por causa abuso das escutas, esteve na ordem do dia, antes de “correr os taipais” para a pausa sazonal.
Como é público, a chamada intercepção telefónica vulgarizou-se, poupando trabalho à investigação no terreno, numa devassa frequente e prolongada, violando a privacidade do cidadão, numa típica atitude de “lançar a rede” para ver se apanha algum peixe distraído…
O método é, obviamente, preguiçoso e colide com direitos e garantias que há muito se julgavam consagrados.
O recurso às escutas tornou-se instrumental, e converteu-se numa ferramenta validada por juízes, que seria suposto não assinarem “de cruz”.
Conforme afirmou, e bem, o antigo procurador geral, Cunha Rodrigues, “é uma matéria que hoje lesa direitos fundamentais das pessoas e que devia ser analisada em profundidade”.
Disse isto e não se esqueceu de mencionar “os meios tecnológicos”, que “evoluíram de tal maneira que os agentes da justiça se sentiram atraídos para, numa linguagem comum, investigar sentados”.
De algum modo, são procedimentos que lembram um certo jornalismo, obcecado pelos telemóveis e pela internet, cujas referências informativas assentam, com demasiada frequência, nas redes sociais e nas fontes anónimas.
Ao lado de uma “Justiça sentada” temos, igualmente, um “jornalismo sentado”, sensível ao jogo de influências, o que não pode dar bom resultado. E se “os magistrados não são ungidos pelo poder divino”, citando ainda Cunha Rodrigues, os jornalistas tão pouco.
Muito se escreveu, também, sobre a inesperada entrevista de Lucília Gago à RTP. Seria “chover no molhado” repetir que a PGR menosprezou o Parlamento, ao furtar-se a comparecer antes de férias, invocando como pretexto o facto de não estar concluído o relatório anual de actividades do Ministério Público, relativo a 2023, que deveria ter ficado pronto até ao final de maio. Digamos apenas que não foi bonito.
Um documento, afinal, de que Lucília Gago não precisou para conceder a entrevista “exclusiva” ao operador público, prioridade que o Presidente da Assembleia da República, Aguiar Branco, criticou, porque” teria preferido que a primeira intervenção tivesse sido no parlamento “, por ser esse “o lugar por expressão de maior dignidade nos órgãos de soberania”. Enfim, adiante.
A oportunidade serviu a Lucília Gago para desobrigar-se de qualquer responsabilidade na demissão de António Costa, não obstante assumir a autoria do parágrafo “aproveitado” pelo ex-primeiro ministro para se libertar da maçada de governar, com uma equipa que só lhe trazia problemas.
Graças ao “timing” da demissão e por não ter sido constituído arguido, Costa pode candidatar-se, sem pruridos de consciência, ao cargo de presidente do Conselho Europeu, com o qual há muito sonhava, embora Lucília Gago, tenha lembrado, sibilina, que “o inquérito ainda corre” e que “não sei, nem poderia saber, se vai haver encerramento de inquérito a breve trecho”.
Em contrapartida, fez questão de enfatizar, que outros políticos, em condições semelhantes, não se demitiram (citando Úrsula von der Leyen e Pedro Sánchez, alvo de investigações judiciais).
Costa que se cuide, não obstante dever “estar grato”, para já, a Lucília Gago e ao parágrafo que esta “assinou” no comunicado da PGR, sem o qual continuaria a aturar um executivo sem chama e sem capacidade para resolver um braçado de problemas.
Doravante, e a menos que o inquérito “tropece” novamente nele, o que é improvável, Costa pode respirar fundo e olhar com bonomia, à distância de Bruxelas, para o pântano do qual o País não descola, e para as “guerras de capoeira” no seu partido e na política à portuguesa…