Se segue os meus artigos neste jornal, certamente conhece as minhas convicções ideológicas. Considero-me como liberal em toda a linha, da vertente económica à cultural, não me colocando em caixinhas “clássicas” ou “sociais”. No entanto, certos tópicos da nossa atualidade política têm-me levado a questionar algumas coisas em que acredito e a forma como as defendo. Eu sei que isto parece um pouco inusitado, nestes tempos estranhos em que ter pontos de vista moderados e imparciais contrasta com opiniões extremadas sobre assuntos, e o espírito crítico para questionar abertamente sobre a nossa própria realidade é associado a se ser um teórico da conspiração (descanse em paz amada filosofia). Mas eu acredito fielmente que o mundo se encontra como está pelo expressivo fanatismo ideológico por teorias políticas redigidas por autores no passado, que com toda a sua inegável sabedoria aplicada ao seu contexto histórico, não conseguiram fornecer a solução para o “mundo perfeito”, nem representam os dilemas e obstáculos que a sociedade do século XXI atravessa.
Gostava de discutir com o leitor duas propostas apresentadas recentemente no parlamento, a rejeitada igualdade salarial entre as seleções de futebol feminina e masculina e a aprovada descida do IVA à taxa reduzida nos espectáculos tauromáquicos. Se forem analisadas com o raciocínio meramente liberal, em ambas as propostas parecem ter havido decisões acertadas. No caso da igualdade salarial no futebol, o liberalismo defende o livre mercado e a meritocracia na compensação de trabalhadores, e é sabido que o futebol masculino tem muito mais procura de espectadores, que consequentemente gera mais patrocínios e recursos para poderem ser oferecidos salários mais elevados a estes jogadores. Já no caso das touradas, os liberais defendem a redução e simplificação fiscal, pelo que os impostos não devem ser utilizados como veículo para impor e perpetuar ideologias numa sociedade de crenças e interesses plurais.
Por sua vez, se for analisar estas propostas com base nos meus valores pessoais, não concordo completamente com estas decisões. Em primeiro lugar, é impossível ser implementada uma verdadeira meritocracia baseada na lei da procura e oferta, se o ponto de partida não é o mesmo. Ou seja, as jogadoras não são menos merecedoras de receber o salário que os jogadores, mas se o mercado do futebol feminino profissional era até há pouco tempo desvalorizado e com poucos apoios para o seu desenvolvimento, é normal que neste momento não tenha tanta expressão como o futebol masculino e por isso mesmo, menos espectadores e patrocínios. Mas indo mais a fundo na questão, colocando noutra perspectiva: será que enquanto sociedade não deveríamos em primeiro lugar questionar qual a meritocracia do valor dos ordenados no futebol comparativamente ao valor acrescentado que outras profissões contribuem no desenvolvimento do nosso país e do mundo? Deveríamos querer igualar ou repensar?
Depois existe a proposta relacionada com a redução do IVA nas touradas, que para mim é um pouco mais complexa. Tentando desassociar o facto de não gostar ou concordar com a existência deste espetáculo, pela defesa dos direitos dos animais, mas também tendo respeito às pessoas que o admiram e o consideram como parte da sua tradição, é impossível negar que hoje em dia se trata de uma actividade de nicho. Logo, nesta proposta é evidente que existe uma tendência parcial de favorecimento a uma minoria, em prol de outras medidas de favorecimento fiscal da pluralidade dos contribuintes portugueses. Colocando novamente a questão em perspectiva: se a gestão de um orçamento de estado se faz com prioridades, baseada em justiça e equidade, será que a redução do IVA nestes espetáculos é mais importante que as chumbadas descida do IVA na construção e reabilitação (sabendo nós que é uma das causas para os valores exorbitantes praticados no mercado imobiliário) e redução significativa de todos os escalões das taxas de IRS dos portugueses?
Quando Rui Rocha, aquando das comemorações do 25 de Novembro na Assembleia da República, referiu que a teoria da justiça social é de deriva totalitária e um “wokismo”, fez-me agradecer ter deixado a militância pela Iniciativa Liberal. Caso desconheça, a teoria da justiça social do filósofo liberal John Rawls afirma que todas as pessoas devem possuir liberdades individuais, equidade de oportunidades e o básico para uma vida digna. Citando o autor, “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”. No caso da IL, é perceptível como o fanatismo ideológico pode levar irremediavelmente à alienação com a realidade, sendo assustador como se consegue misturar conceitos tão díspares, que excluem completamente a própria razão democrática.
Peço ao leitor que, tal como eu, tenha a coragem de questionar visões e decisões, mesmo contradigam as teorias que pregamos. O poder de discordar é a liberdade que conquistamos para expressar a nossa individualidade. Por isso a importância de refletir criticamente sobre o mundo, guiando-nos pelas próprias convicções morais e éticas, principalmente se estas estiverem influenciadas por ideologias teóricas.