Em Julho, num grande comício num estádio de futebol, o líder negro de um importante partido sul-africano, cantou uma canção (“kill the boer”) encorajando os presentes a que disparassem a matar sobre os fazendeiros brancos. Na nossa esquerda, sempre tão preocupada, e bem, com o chamado discurso do ódio, não houve ninguém que viesse a público condenar esse líder negro. Porquê? Comecei a responder a essa pergunta no meu anterior artigo no Observador. Concluí, então, “que em Portugal e no resto do Ocidente a esquerda — e também alguma direita, reconheça-se — interiorizou a culpa do homem branco” e prometi — e vou agora cumprir — que, num próximo texto, iria escavar um pouco para indagar de onde vem essa interiorização.
Que é, diga-se, muito comum. Como é do conhecimento geral vivem entre nós muitas pessoas que consideram que os brancos foram e são os causadores de todos os males do mundo. Para os que assim pensam, os brancos são e terão sido perversos exploradores do resto da humanidade, daí decorrendo a tese de que esses explorados ou oprimidos tiveram e têm todo o direito de se vingar e de ser ressarcidos. A violência que já se exerceu ou que venha eventualmente a exercer-se sobre os brancos é ou terá sido, para essas pessoas, justificadíssima e justíssima ou, pelo menos, compreensível e desculpável.
Ao contrário do que poderá pensar-se este modo de raciocinar não é inédito nem recente. Não é, sequer, “africano” ou “ameríndio”, na sua origem. É muito antigo e remete parcialmente para o pensamento de alguns dos padres que acompanharam o movimento de expansão europeia e, depois, de uma forma mais directa, para correntes do Iluminismo e do radicalismo da Revolução Francesa.
Um exemplo concreto ajudar-nos-á a situar e perceber melhor. Suponho que a generalidade das pessoas saiba que a Revolução Francesa começou em 1789 e que dois anos depois, em 1791, houve uma grande revolta de escravos na parte norte da então colónia francesa de Saint-Domingue (actual Haiti). Nesses primeiros tempos da rebelião os revoltosos praticaram enormes atrocidades que, excepção feita à transcrição de um discurso parlamentar que farei adiante, não explicitarei aqui. Basta dizer que os negros do futuro Haiti fizeram coisas impensáveis e arrepiantes aos brancos a que conseguiram deitar a mão, fossem eles homens, mulheres ou crianças, algumas de tenra idade.
Quando a notícia desses horrores chegou a Paris suscitou muitas reacções e como é natural foi abordada na Assembleia Nacional. O influente político e jornalista Jacques-Pierre Brissot de Warville foi um dos oradores nessa ocasião. Brissot era um dos principais abolicionistas franceses, fundador da Société des Amis des Noirs, membro do Clube dos Jacobinos e principal líder de uma das suas sensibilidades ou facções que viria a ser conhecida por Girondinos. Vale a pena seguir o que Brissot disse na sessão de 1 de Dezembro de 1791, ou seja, no dia seguinte a ter sido lida na Assembleia, por um dos emissários vindos de Saint-Domingue, uma exposição dos factos. Brissot tentou desvalorizar de duas maneiras essa exposição e a brutal acção dos negros. Por um lado, atribuiu a sua revolta a manobras dos plantadores locais que quereriam criar o caos na colónia para terem uma justificação para cortarem amarras com a França revolucionária e colocarem-se sob a protecção e tutela política britânica. Ou seja, uma teoria da conspiração na qual os negros seriam apenas executantes e marionetes de forças que os transcendiam e que, na sombra e lá do alto, manejavam os cordelinhos. E, por outro lado — e é esse lado que aqui e agora interessa — desenvolveu uma teoria da desculpabilização dos que cometeram as atrocidades. Vale a pena transcrever uma passagem desse seu discurso:
“Senhores (…) Foram-vos descritos (pelo emissário chegado de Saint-Domingue) actos atrozes que arrepiarão qualquer pessoa. A descrição desses actos foi intencional. Visou suscitar o vosso apoio e desviar a vossa atenção dos crimes da Assembleia Colonial (de Saint-Domingue). Para atingir esse fim o emissário da colónia precisava de ter a certeza de que tocaria as almas sensíveis com a pintura das atrocidades cometidas pelos escravos revoltosos. Tivemos aqui uma descrição de actos cruéis. Dêem-me um animal irracional, costumava Mirabeau dizer, e eu rapidamente farei dele um animal cruel. Mas quem poderemos culpar pelos crimes desse animal, senão aquele que o conserva na sua desgraçada condição? Vós estremeceis e comoveis-vos com a terrível descrição desta criança que foi empalada! Não serieis humanos se as vossas almas não se revoltassem contra o empalador. Mas quem é o verdadeiro assassino dessa desafortunada criança? Será o negro? Não. É o branco que, antes disso, atirou um negro para um forno aceso; o branco que, antes disso, arrancou o negrinho do regaço de sua mãe e o esmagou perante os olhos dela (…) Sim, mesmo que façam a listas de todas as más acções da raça negra ela perde importância ao pé da ferocidade dos monstros brancos, ao pé da ferocidade dos conquistadores do Peru e da própria Saint-Domingue. Um milhão de Índios pereceram debaixo dos seus punhais. A cada passo que dêem tropeçarão nos seus ossos que reclamam vingança, e não obstante vós agora queixais-vos dos seus vingadores! (Repetidos aplausos).”
É claro que, apesar dos numerosos e prolongados aplausos, a posição de Brissot não era absolutamente unânime. Camille Desmoulins, por exemplo, acusou-o directamente de ser ele, por ser um abolicionista e apologista da igualdade racial que se precipitara e pusera o carro à frente dos bois, o causador daquela tragédia: “És tu, miserável, a causa primeira destes males!” — disse. Mas essa acusação era apenas uma transferência de responsabilidades no mesmo carril. Em vez de os responsáveis serem os negreiros ou os plantadores brancos em Saint-Domingue, agora o responsável estava em Paris e era um político e jornalista… branco. Os negros não tinham responsabilidade. Mais. Existia uma desculpa teórica geral que os inocentava de praticamente tudo. Como dizia, nesse contexto, um outro revolucionário, Jean-Paul Marat, os brancos eram “os tiranos dos negros” e estes “tinham o direito de os massacrar”.
É verdade que houve revolucionários e abolicionistas que criticaram a conduta dos escravos, como foi o caso de Madame Olympe de Gouges. Essa senhora afirmou-se profundamente chocada com a brutalidade dos negros revoltosos que, na sua “raiva cega” não conseguiam ou não queriam distinguir nem poupar as vítimas inocentes. É extraordinária essa sua lucidez numa época em que as afirmações tinham peso e consequências, e em que as condenações eram constantes e a morte rondava por muito perto. Aliás, à semelhança do que aconteceu a Brissot e a Desmoulins, também Madame de Gouges foi guilhotinada — Marat, como se sabe, morreu apunhalado na banheira, um fim imortalizado em tela por Jacques-Louis David.
Mas a voz de Madame de Gouges era mais rara no quadro da esquerda jacobina e essa esquerda passou a constituir a matriz do pensamento e da sensibilidade das esquerdas radicais que lhe sucederam e que, de ramal em ramal, vieram desembocar nas que hoje em dia respiram sob os céus culturais e políticos do Ocidente. Os woke que atroam os ares com os seus exageros e absurdos não descendem de Madame de Gouges, mas de Brissot e de Marat, ainda que muitos deles não tenham qualquer consciência disso. São herdeiros de um tipo de abordagem que, fechando os olhos às malfeitorias e atrocidades cometidas pelos desfavorecidos ou oprimidos, atribui sempre todas as culpas pela sua ocorrência a uma entidade maléfica e supostamente todo-poderosa que, no contexto da história colonial, está personificada, de forma geralmente abstracta, no homem branco.
Na revolta de escravos de Saint-Domingue, como em muitas outras situações passadas e presentes, cometeram-se atrocidades de parte a parte. Tal como se viu com os jacobinos de 1791, o erro dos actuais bem-pensantes de esquerda é pôr o ónus de todas elas às costas desse homem branco. Ora, se isso era compreensível num europeu do século XVIII, ainda mal informado sobre as realidades de mundos mal conhecidos como era o caso da África — que o típico homem do Iluminismo imaginava como sendo povoada por gente idilicamente virtuosa e inocente, que vivia, sossegada e pacífica, “nos seus bosques e choupanas” — é absolutamente inaceitável hoje em dia.
Porque acontece, então? Por inércia, por ignorância e porque, no fundo, os que assim pensam consideram, paternalisticamente — tal como muitos philosophes e jacobinos de Setecentos consideravam —, que os outros povos são inferiores, menos desenvolvidos, mais bárbaros, menos responsáveis, equiparáveis a crianças grandes com pouco discernimento e armas na mão. Numa palavra, “bons selvagens” de Rousseau transitoriamente transviados por culpa de outrem. Mas tudo isso é obviamente errado. Os outros povos não são inferiores. Culturalmente diferentes, sim. As atrocidades que cometem e cometeram são responsabilidade sua, não do homem branco.