Os alicerces basilares da sociedade confundem-se com elementos tão intrínsecos à natureza humana que não os distinguimos da mundanidade. Tome-se o exemplo de questionar: questionar é de tal forma natural que o papel fundamental do ceticismo na coesão da sociedade passa despercebido. O mesmo acontece com elementos capitais como são os atos de liderar, decidir ou mesmo de sentir.
Sem prejuízo de que a lista de elementos capitais seja bem mais exaustiva, é certo e sabido que cada um destes elementos desempenha uma função molecular na construção duma harmonia em sociedade que faz com que homens e mulheres, todos eles radicalmente diferentes na sua personalidade – pelo menos personalidade estética -, subsistam e, inclusive, prosperem. É por haver questões que há respostas, é por haver liderança que há direção, é por haver decisões que há ações e é por se sentir que há equilíbrio emocional. São estes elementos, estas peças mecânicas, que garantem a separação da vida na sociedade contemporânea de um qualquer cenário selvagem de luta primitiva.
De todos estes elementos, há um que sempre em mim causou espanto pela construção conceptual que enceta em si mesmo. É o ato de culpar.
Certo dia, em certo lugar e certamente por alguém, se terá decidido que culpar faz falta. Atribuir responsabilidade a alguém por determinado ato ou omissão serviria uma função essencial para a predestinada coesão. Desde então, o papel da culpa institucionalizou-se de tal forma que o humano criou departamentos de alocações de culpas: o que se chamou de tribunais, em sentido lato.
Nota: Culpar deve ser interpretado de forma bilateral, positiva ou negativa. A negativa, claro está, é a culpa por algo dito mau. A positiva é a culpa por algo dito bom ou, simplesmente, a (des)culpa – o ato de eliciar culpa negativa.
A culpa é efetivamente fascinante. Tem o dom de ser capaz de encerrar capítulos e abrir outros tantos novos. Na verdade, é a culpa que norteia a História do mundo – que me perdoem os historiadores. Se não é, é pelo menos uma forma fácil de a contar. A Segunda Guerra Mundial foi culpa do Hitler. O Estado Novo foi culpa do Salazar. A crise de 2008 foi culpa dos bancos capitalistas americanos. Entre outros.
A culpa não é só fascinante, mas tal como os seus pares elementos capitais, é evidente que tem uma função tal que o humano a fez existir. A responsabilização permite, por exemplo num caso criminal, fazer emergir um sentido de justiça aos elementos da sociedade. A culpa, poderá também argumentar-se, é um instrumento essencial na aprendizagem. Ela serve para separar os vitoriosos dos derrotados sob a forma da exaltação do exemplo, enviando mensagens fortes sobre que tipo de comportamentos devem ou não ser replicados. Culpar uma criança por um determinado ato serve para que a criança aprenda a não o cometer novamente. Culpar uma outra criança sobre o mesmo ato serve também para que a criança aprenda a não o cometer. Culpar, de forma auto ou hétero-avaliativa, envia ondas de choque que estimulam os recetores comportamentais do humano a guiar a sua atuação em sociedade. Uma outra discussão, sobre o que deve ou não ser culpado, é profundamente mais complexa e esteve mesmo na base da obra de religiosos e filósofos durante séculos a fio – veja-se o exemplo dos livros sagrados ou obras seculares como A Genealogia da Moral de Nietzsche.
Ou seja: a culpa existe e a culpa tem uma função essencial na sociedade, seja trazendo um sentimento de justiça, seja como instrumento gamificado de recompensa comportamental.
Até aqui, vimos o papel da culpa sobre a perspetiva individual. Essa é em tudo mais relacionável connosco próprios, mas a verdade é que a culpa vive também em organismos que são, por si só, abstrações construídas por homens e melhores. Refiro-me a dois: empresas e Estado.
As empresas são completos artefactos humanos que têm como objetivo algo tão simples como juntar pessoas para realizar tarefas que individualmente seriam impossíveis. É esta, na verdade, a definição de empresa. Pense-se em algo tão simples como a construção. Uma empresa de construção agrega um conjunto de perfis, desde os operários aos engenheiros, que na individualidade não seriam capazes de construir coisa alguma. É da junção de competências que o chamado “valor” – neste caso veja-se “valor” como a construção duma casa – é criado. Ora, a culpa também nas empresas tem um papel darwinista. Existem dois exemplos interligados que o ilustram, um mais óbvio pela semelhança com a perspetiva do indivíduo, e outro menos evidente, mas nem por isso menos relevante.
O mais óbvio é o efeito da aprendizagem. Culpar um colaborador serve para efeitos de exemplificação de comportamento a replicar (ou não) e até mesmo para efeitos motivacionais. O colaborador que tiver um desempenho notável no lançamento de um novo produto deve ser culpado por isso. Todos os outros colaboradores verão neste uma referência a seguir. Da mesma forma, o colaborador que apresentar um comportamento eticamente reprovável deverá ser alvo de culpa para que uma onda de choque seja enviada para toda a organização. Este efeito funciona de acordo com os mesmos mecanismos acima descritos na visão do indivíduo.
O menos óbvio é o efeito da partilha de culpa. Um dos principais problemas das empresas tem que ver com o processo de partilha de culpa – e aqui, por simplificação, pensemos na culpa negativa. Quando algo corre mal numa empresa, se a culpa não for atribuível a ninguém, gerar-se-á um ciclo interminável de atribuição de culpas, sendo muito provável que o efeito de aprendizagem seja corrompido. De quem foi a culpa do lançamento do produto não ter sido um sucesso? Foi da equipa de estratégia que falhou no timing certo do projeto? Ou foi da equipa comercial que não conseguiu concretizar a venda por não perceber o novo produto? Ou foi mesmo da equipa de recursos humanos que recrutou uma equipa de estratégia com pouca experiência em desafios de lançamento de produtos? No final, com toda a erosão causada pelo processo de atribuição de culpa, o potencial de aprendizagem com os erros esvai-se.
Por essa mesma razão, a culpa deve ter um papel central no processo de construção de equipas, garantido que a culpa, seja lá de quem for, é passível de ser atribuída e que todos os elementos de uma equipa partilham do sentido de responsabilização. É essa a razão pelo qual as equipas multidisciplinares são tão relevantes – mais até do que o argumento comummente apresentando e filosoficamente validado pela ideia da unidade da verdade e da multidisciplinaridade da visão sobre a mesma – de que é importante garantir perfis diferentes na prossecução duma melhor resposta a um problema. É que se uma equipa contiver todos os perfis passíveis de culpa, não existirão tantos problemas no momento da sua atribuição. No entanto, se existir uma réstia de possibilidade de atribuir culpas negativas a elementos externos, é muito provável que o ciclo desvirtuoso acima descrito se materialize e o efeito aprendizagem cesse. A culpa, nestes casos, morreria solteira e ninguém aprenderia.
E a culpa morrer solteira leva-nos para o segundo ângulo: o Estado. Para ser mais preciso, tome-se o Estado literalmente como o Governo. O ato de culpar na figura de governo é tipicamente ou mal empregue ou não existente.
Os políticos vivem de facto mal com a culpa. Para si, jamais. Assunção de culpa tem paralelo apenas com contrição e risco de excomunhão. E verdade seja dita, a culpa de não terem culpa não é necessariamente culpa dos mesmos. Talvez seja que reconhecer a culpa – evidentemente que não se fala de culpa positiva – não seja um movimento eleitoral ótimo e, por isso, não têm incentivos a que tal aconteça. O que é importante ter em conta é o que se perde, enquanto sociedade, pelo caminho. O facto de haver uma dificuldade enorme na atribuição de culpa cessa também o efeito de aprendizagem que tão crítico é para a evolução da prática política. Não haver culpa num caso como o “Russiagate” ou não haver culpa pela decadência económica lusitana nas últimas décadas implica quase automaticamente a sua não existência, passando as culpas e os culpados pela espuma dos dias. Tudo por uma falta de cultura de culpa.
Talvez por isso impressione a sociedade civil portuguesa quando vemos entrar na política figuras que compreendem o valor da culpa. Escrevo obviamente do Vice-Almirante Gouveia e Melo. De tantos feitos notáveis já realizados, um dos principais fatores de sucesso foi precisamente trazer a cultura da culpa e da responsabilização para o modus operandi da ação. Para o bem e para o mal, seja lá isso o que for, é inegável a existência duma cultura de culpa. Explicando a sua natureza, diz-se alguém que faz “(…) o que tiver de fazer e sou impiedoso com os malandros. Sou super piedoso para as pessoas que fazem bem, erram, mas deram tudo” – ou seja, tem no reconhecimento do papel da culpa, negativa ou positiva, um eixo norteador da sua condução. Os efeitos, à vista.
Por isso, recorde-se. Da próxima vez que algo correr bem ou mal, pergunte: de quem foi a culpa? Se conseguir responder, estará certamente mais perto de aprender. Reconhecer o papel da culpa, seja a título individual, empresarial ou governamental, é decisivo para que o efeito de aprendizagem que esta permite seja cumprido. Qualquer razão que o impeça é uma razão ao serviço de tudo menos da evolução.