A Democracia não é um dado adquirido. Infelizmente, em 2024, entre os exemplos mais radicais da Rússia imperialista de Putin e do regime teocrático de Teerão, ou do exemplo paradigmático da Coreia do Norte, vamos assistindo a uma regressão das democracias, seja na quantidade, seja na qualidade. O que se passou, na última semana, na Venezuela, é demasiado sério para ser relativizado. Em primeiro lugar, porque há precedentes (veja-se a situação de Guaidó); em segundo lugar, porque há ameaça declarada (recorde-se a promessa de “banho de sangue” no caso de derrota de Maduro”); e, em terceiro lugar, porque há – manifestamente – um processo de destruição da democracia em curso e a que vamos assistindo, em direto, todos os dias. Já não se trata da erosão da democracia num regime que, apesar de tudo, organiza eleições; trata-se, agora, da ruína desse único aspeto, o eleitoral, que permitia admitir que em Caracas havia uma réstia de esperança. Não há.

Não é por acaso que a Venezuela tem um valor bastante redondo no que diz respeito a “processo eleitoral e pluralismo” no índice de democracia da revista The Economist. Esse valor é 0 (zero). E não vale a pena apelar ao contexto, porque na América do Sul apenas outros três países apresentam o mesmo valor: Cuba, Haiti e Nicarágua. Acontece que na avaliação global, a Venezuela é mesmo o 142º lugar e, na região, só tem a Nicarágua abaixo por umas cinco centésimas (!). Tudo isto num ranking de 167 países.

O Mundo deu uma oportunidade à Venezuela. Melhor dizendo: o Mundo deu o benefício da dúvida ao regime chavista de Caracas. Ainda tivemos de engolir em seco quando Maria Corina Machado, líder da oposição democrática, foi impedida de se candidatar a estas eleições presidenciais. Torcemos o nariz no episódio da promessa do “banho de sangue”. Revoltámo-nos quando políticos europeus foram impedidos de entrar na Venezuela para apoiar uma candidatura. E revirámos os olhos quando percebemos que a referência da observação eleitoral era José Luis Rodriguez Zapatero, antigo Presidente socialista do Governo de Espanha a quem não faltam fotografias de abraços a Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Talvez lhe tenha faltado a vergonha.

Chegados às eleições, ninguém poderia prever o resultado. Os dados oficiais indicaram uma vitória por pouco, ainda que com a suposta maioria absoluta que reelegeria Nicolás Maduro (vamos ultrapassar o facto de terem sido anunciados resultados sem todos os votos contados e com totais de votação superiores a 100%, o que já indiciaria que algo não estaria bem). Até numa Democracia plena seria justificável pedir as atas das mesas eleitorais, se não mesmo uma recontagem. Tal como numa Democracia é perfeitamente natural essa informação ser pública, transparente e imediata. Na sua ausência, vale tanto a declaração de vitória da comissão eleitoral como a reclamação de resultado diferente da parte do principal candidato da oposição. Ou será que vale? É que, entretanto, o Centro Carter (que de facto observou a eleição) concluiu que não foi nem igual, nem transparente, nem credível. E a promessa do regime de disponibilizar as atas vai sendo adiada de dia para dia, sem que saibamos do paradeiro dos votos. Mais: temos detenções na ordem dos milhares, violência nas ruas, embaixadas de países estrangeiros cercadas (!) e políticos da oposição perseguidos. A sede do principal partido da oposição chegou a ser invadida e praticamente destruída por um grupo de indivíduos não identificado, mas perfeitamente identificável.

Porque quem não deve não teme; porque o regime está a responder com repressão em vez de responder com documentação; e porque o povo não está claramente a reagir como se tivesse ganho a sua escolha; só há uma conclusão natural a tirar. Nicolás Maduro perdeu estas eleições. E esta conclusão tem consequências: nem se deve reconhecer um Presidente ilegítimo, nem se deve abandonar um povo inteiro às mãos de um ditador. O que se passa hoje não é igual ao que se passou há anos atrás. Também por isso a nossa reacção não pode ser a mesma.

A Venezuela é um dos piores exemplos numa América do Sul (região que tem um PIB per capita médio três vezes superior ao do país) que tem democracias plenas como o Uruguai ou a Costa Rica. Um continente em que 16 países (em 24) registou um declínio nos valores democráticos no último índice de democracia. Uma imensidão geográfica e populacional com um potencial gigantesco, mas que precisa de outra atenção e de outra abordagem de uma comunidade internacional demasiadas vezes alheadas dos problemas próprios de Estados jovens. A Venezuela pode ser o nosso “teste do algodão”. Não podemos iludir-nos e pensar que o cinismo político (às vezes simpaticamente nomeado realismo) vai resultar agora onde claramente não resultou no passado. Não abandonemos a Venezuela e o seu povo.

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