Os recentes resultados desanimadores da sondagem feita pelo ICS/ISCTE na véspera do 25 de Abril, obrigaram-nos a refletir sobre o estado da nossa democracia. Apesar de a maioria ainda acreditar que a democracia é a melhor forma de governo, 74% acha que a classe política não se importa com o povo e com os seus interesses e 72% discorda da teoria de que o Estado é governado no interesse público comum ou de forma a beneficiar toda a população.
Portugal não é caso único. Muitas democracias liberais viram esmorecer o seu vigor e apoio público. Enquanto umas se afastaram das suas características chave, outras abandonaram-na completamente. Países como a Hungria, a Polónia, a Turquia, a India ou o Brasil são governados por líderes autoritários, líderes estes que ameaçam a liberdade de impressa, o Estado de Direito e a coexistência pacífica de grupos étnicos e religiosos.
Mais preocupante ainda é o descontentamento que se sente pela democracia no Ocidente, especialmente a população mais jovem e aqueles que foram afetados pela globalização da economia. No seu livro de 2018, “Povo vs Democracia: Saiba porque a nossa liberdade está em perigo e como a podemos salvar”, o professor Yascha Mounk retrata este cenário na perfeição. Se a democracia é suposto ser “o governo do povo, pelo povo e para o povo” então por que razão é que o povo se vira cada vez mais contra ela?
Se perguntarmos aos americanos, nascidos nas décadas de 1930 e 1940, o quão importante é viver em democracia, mais de dois terços responde “É importantíssimo!” mas se fizermos a mesma pergunta aos americanos da geração milénio (os nascidos a partir dos anos 80) menos de um terço responde que a democracia é fundamental. Se questionarmos sobre as diferentes alternativas radicais à democracia, o caso torna-se ainda mais complicado. Se há vinte anos, apenas um em dezasseis americanos defenderia a ideia de um governo do Exército, hoje, um em cada seis vê isso como uma alternativa possível. Na Europa por sua vez, o populismo tem vindo a transformar-se numa verdadeira força eleitoral.
Sem nunca alegarem serem defensores da democracia liberal, lideres como o Putin e Xi Jinping aproveitaram-se desta onda de descontentamento para aumentar o seu poder demonstrando, assim, que o descontentamento do Ocidente face às democracias liberais nada mais serve senão para reforçar os seus interesses e aspirações e legitimar o seu governo.
Vimemos tempos extraordinários e em tempos extraordinários a importância dos jogos políticos torna-se existencial. Se adiarmos salvar a democracia hoje, corremos o sério risco de perdê-la para sempre; se perdermos as próximas disputas democráticas, poderá não haver outras.
Não é a primeira vez que isto acontece. Já na Grécia e Roma antigas, as formas de governar mais “democráticas” oscilavam, ora aumentavam ora regrediam. Nos últimos dois séculos, cada época teve a sua forma de antiliberalismo. Foi o caso das monarquias despóticas e da Santa Aliança, no século XIX, e dos regimes comunistas e fascistas, no século XX.
No entanto, o maior desafio que a democracia liberal enfrenta hoje não tem origem na subversão externa mas no descontentamento interno. Existem duas ordens de justificação para democracias liberais. Alguns cidadãos valorizam os seus princípios e valores, ou seja, nada substitui viver em liberdade; outros valorizam o seu desempenho. Se a democracia não conseguir resolver os problemas mais urgentes e proporcionar bens como, uma boa qualidade de vida, crescimento económico, emprego, segurança, bem-estar e por aí em diante, o apoio às instituições democratas entrará em declínio, abrindo, assim, caminho a alternativas diversas.
Outra questão que se coloca é até que ponto as nossas democracias conseguem continuar a proporcionar um crescimento económico sustentado e a que custo para o meio ambiente. Ainda assim, até ao momento, nenhuma outra alternativa provou ser tão eficiente economicamente ou viabilizar maior bem-estar social. Basta perguntar a qualquer pessoa que viva na Coreia do Norte, na Venezuela ou em Cuba. A China, uma mistura entre economia de mercado e uma forma iliberal de “democracia” de um só partido, está longe de ser um modelo credível. A verdade é que o vertiginoso crescimento económico foi alcançado com a atribuição de mais liberdades e não de menos.
A que devemos este retrocesso no apoio à democracia? Muito se tem escrito sobre este assunto e aqui posso apenas oferecer uma visão geral muito rudimentar de uma discussão com muitas nuances. O leque das causas é claro e bastante consensual, ainda que a importância dada a cada causa específica possa ser diferente. As acusações contra a democracia liberal tendem a ser de natureza económica, cultural e política.
A primeira é a estagnação económica. Ao longo da História da democracia, assistimos a um rápido aumento dos padrões de vida da classe média. Hoje já não é assim. Desde meados dos anos 80, o ordenado médio no Ocidente manteve-se estagnado. Enquanto a indústria da manufatura migrava para sul, muitos trabalhadores das classes média e baixa tornaram-se vítimas da globalização e do crescimento da economia da informação. A crise financeira mundial de 2008 descredibilizou ainda mais a confiança nas instituições democráticas e nos mercados que, até então, andavam a par e passo. A lenta recuperação e o recurso à austeridade fiscal alimentaram o descontentamento público, assim como o resgate dos bancos e a crescente desigualdade entre regiões e classes económicas nos países. O filme “Nomadland – Sobreviver na América”, o filme mais galardoado este ano nos Óscares, retrata bem esta situação ao contar a história emocionante de uma viúva que perde a sua casa e se vê forçada a percorrer o país numa autocaravana.
O descontentamento público vai muito além das questões económicas. À medida que a globalização se intensificou e a imigração aumentou, as populações dos países tornaram-se mais diversificadas e os imigrantes e seus descendentes exigem, agora, igualdade e inclusão total. Enquanto alguns cidadãos – principalmente os que vivem nas cidades e os com escolaridade mais elevada – aceitam esta situação o mesmo não acontece com outros. A crise dos refugiados europeus de 2015 acentuaram esta divisão de opiniões e os partidos anti-imigração gozaram de uma forte onda de apoio popular. A política externa “America First” de Donald Trump, a construção do muro e a adoção de uma politica migratória mais restritiva, em nada ajudou os EUA a manter um papel de principal guardião da democracia. As redes sociais, como o Facebook e o Twitter, deram mais eco aos que se sentiam esquecidos pelas elites, alimentando o ódio, a xenofobia e o racismo.
Por sua vez, a esquerda mais radical parece ter abandonado a sua tradicional luta de classes e adotou uma política de identidade. Agora, a igualdade é alcançada concentrando-se nos temas de raça, sexualidade e igualdade de género. O movimento woke, procura rescrever a História, censurar a nossa linguagem e forma de pensar. Qualquer pessoa que ouse discordar das suas opiniões é rotulada de reacionária, racista, xenófoba ou no limite fascista. Quem sente que está a ficar para trás num mundo cada vez mais globalizado já não tem quem defenda a sua causa. As fações mais tradicionais, religiosas ou conservadoras da sociedade, sem falar nos que valorizam a sua liberdade de expressão e pensamento, ressentem-se com esta imposição por parte de elites culturais que consideram cada vez mais afastadas do cidadão comum e dos seus problemas.
Por fim, a própria governação tornou-se uma fonte de descontentamento. Nas democracias mais estabelecidas, o duopólio de partidos de centro-esquerda e centro-direita que alternavam no poder deixou muitos cidadãos sem representação. As crescentes desigualdades, a corrupção, o estado do sistema judicial e o poder de instituições e burocratas não eleitos e não representativos que dominam os órgãos reguladores e financeiros fizeram com que muitos cidadãos se sentissem distantes do sistema político. Muitas decisões políticas foram retiradas do parlamento e da «vontade do povo» e entregues a bancos centrais independentes e a instituições internacionais ou regionais. Ao mostrar-se insuficiente para responder às preocupações das pessoas comuns, o sistema fez com que surgissem partidos populistas.
O resultado está à vista. Victor Orban na Hungria, Nahendra Modi na Índia e Jair Bolsonaro, no Brasil, afirmam ser os verdadeiros representantes “do povo”. Todos foram eleitos democraticamente. Uma vez no poder, restringiram a liberdade de imprensa, reprimiram minorias e corroeram o Estado de Direito. Os dois elementos chave das democracias liberais – os direitos individuais e a vontade popular – parecem estar cada vez mais às avessas.
Que medidas podem ser tomadas? A resposta óbvia é a de que nunca é demais lembrar constantemente as pessoas que, por mal que estejam as coisas, as alternativas são sempre piores. Sir Winston Churchill afirmou na Câmara dos Comuns, a 8 de dezembro de 1944 algo que marcou a História: “Muitas formas de governo foram testadas e serão testadas neste mundo de pecados e infortúnios. Ninguém finge que a democracia é perfeita ou totalmente sábia. Na verdade, foi dito que a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras formas que foram tentadas ao longo da História.”
É crucial passar o legado da nossa História às gerações mais jovens, recordar as razões que nos levaram a escolher a democracia liberal como sistema governamental. É fundamental desmistificar as falsas promessas do autoritarismo e do populismo. A democracia liberal garante-nos certos direitos e liberdades, que transcendem a vontade do coletivo ou da maioria popular. Mais, o simples facto de podermos mudar quem nos governa sem recorrer a revoluções sangrentas é uma vantagem sem paralelo que não pode ser menosprezada.
Precisamos de melhores políticas. O elevador social deixou de funcionar. Existe um maior fosso entre uma minoria abastada e protegida e a maioria. Embora existam forças que não podemos controlar, como a globalização e a automação, podemos projetar políticas económicas que garantam que os benefícios do crescimento económico sejam acessíveis a todos. Devemos pôr fim a promessas ocas. Precisamos de reformas judiciais e uma maior transparência. A corrupção não pode continuar a ser recompensada. Para que a democracia liberal sobreviva, a vontade popular e os direitos individuais não podem continuar a chocar entre si.
Não fazemos o suficiente para que os jovens se sintam beneficiados economicamente. Esta é a primeira geração que não pensa vir a ter um nível de vida melhor do que a dos seus pais. A maioria não consegue sair de casa dos pais, outros vivem a horas do local de trabalho. Os que têm a sorte de arranjar um emprego são mal pagos, os outros têm de emigrar para encontrar oportunidades fora do seu país.
Finalmente, quem preze a democracia devia envolver-se na vida política e ser um cidadão ativo. Isto é especialmente verdade para os jovens desiludidos com a política e os políticos. Eles são a geração mais instruída e bem preparada de sempre. Só que a geração milénio nunca soube o que é viver sem democracia. Uns estão a ser seduzidos por outras formas de governo; outros tomam as democracias como garantidas, como se fosse um dado adquirido. Ambos estão errados. A única maneira de derrotar um populista ou um mau governo é vencendo-o nas urnas.
Amos Oz, escritor, romancista, jornalista e intelectual israelita, usou uma analogia notável sobre a forma como podemos fazer a mudança. Perante um grande incêndio, dizia o escritor, temos três opções. Podemos fugir, para o mais longe e o mais rapidamente possível, e deixar os que não conseguem correr morrer queimados – por outras palavras, ignorar as ameaças à democracia. Podemos escrever cartas de indignação ao editor de um jornal e exigir que os responsáveis sejam destituídos do cargo – uma resposta passiva e pouco eficaz. Ou podemos tomar medidas verdadeiramente eficazes como combater o fogo com água. “Alguns terão mangueiras, outros baldes. Talvez nem todos tenhamos um balde mas todos temos uma colher de chá. Uma colher de chá é pequena e sozinha pouca mudança fará mas nós somos milhões e todos temos uma colher de chá…”
Estamos perante um fogo. Precisamos de agir. A democracia precisa de ser salva. A democracia precisa de si.