Há um facto simples de verificar: Portugal é dos países mais centralizados da União Europeia e está no grupo dos com menor PIB per capita em paridades de poder de compra. Porém, que querer descentralizar não é um programa político.
O PS da era Cabrita tinha apenas uma ideia chave: é preciso aproximar Portugal da média da União Europeia no rácio da descentralização. É poucochinho, não chega para enquadrar nem teórica nem politicamente tão substancial reforma. Tinha também um modus operandi particular: a “grande reforma do Estado” deveria fazer-se em circuito fechado PS-PSD e ANMP. E assim foi. Fez-se um acordo devidamente assinado. Na ausência de grandes ideias destes atores políticos sobre o que fazer em relação à regionalização mandatou-se a AR, para criar uma “Comissão Independente para a Descentralização” que, por seu vez, subcontratou a académicos variados estudos e produziu um relatório. Na incapacidade, pelos obstáculos constitucionais, de se avançar com a regionalização o PS avançou com o que chamou, e continua a chamar, a “democratização” das CCDR. Um eufemismo para uma verdadeira “municipalização” das CCDRs, que são agora um novo minotauro administrativo (imaginem o anacronismo dos diretores regionais do Ministério da Economia serem eleitos pelos autarcas da respetiva região). Politicamente isto significa que o partido que dominar o colégio eleitoral para a presidência da CCDR dominará a afetação dos fundos europeus que a ela forem alocados.
Antes, o PSD da era Relvas fez uma reforma das freguesias com critérios tais que foram criadas mega-freguesias com população superior à esmagadora maioria dos municípios portugueses, sem que desta agregação de grandes freguesias resultasse alguma poupança para o erário público, ou algum benefício, mas obviamente envolvendo custos substanciais de diversa natureza.
A lei quadro da descentralização, aprovada ainda na primeira legislatura de António Costa, foi um claro passo em frente no processo de descentralização. Porém, os diplomas setoriais subsequentes nas várias áreas (educação saúde, cultura, etc.) não foram acompanhados por suficiente debate político e público para os melhorar. É o caso da educação em que se deveria ter uma noção clara do que deve continuar a ser centralizado (!), o que deve ser descentralizado e para que nível (regiões, comunidades intermunicipais, municípios?) e o que deve ser desconcentrado para agrupamentos de escolas que deveriam ter muito maior autonomia quer em relação ao poder central quer em relação aos municípios, embora em estreita ligação com estes num processo desejável de territorialização de políticas educativas. Não se trata apenas de clarificar as entidades adequadas para cada uma das competências nas várias dimensões do sistema educativo (regulação, currículo obrigatório, afetação e gestão de pessoal docente e discente, manutenção e investimentos em equipamentos escolares, etc.). Trata-se de saber qual o custo do exercício dessas competências para que, em processo de descentralização, se saiba quanto deve ser transferido do poder central para o poder local.
Não tendo havendo estudo e debate independente sobre o efetivo custo das novas competências transferidas não é pois de admirar casos como o de Rui Moreira e da Câmara do Porto que deliberaram há dias sair da ANMP – decisão que deverá ainda ser ratificada, ou não, pela Assembleia Municipal – em torno precisamente dos alegados escassos recursos a transferir para a manutenção de escolas do 2º, 3º ciclo e secundário. Luísa Salgueiro (Presidente da ANMP e PS), tomou devida nota, mas considera mais útil a permanência do Porto na ANMP. Antes disso, em Março, Carlos Moedas, que também quer negociar dentro da ANMP, e Rui Moreira, escreveram ao primeiro ministro a solicitar o adiamento do prazo para a transferência automática de competências sobretudo nas áreas de educação e saúde. Precisamente pela complexidade que envolve ao nível dos sistemas de informação, dos recursos humanos e da dimensão financeira. O decreto-lei que estabelece a transferência de competências na educação criou uma comissão para propor fórmulas de financiamento das competências transferidas, mas desconhece-se quais são e que critérios são utilizados. Ficamos assim, como estamos em relação à Parque Escolar EPE, uma empresa pública do Estado pouco transparente que esteve seis anos (de 2016 a 2021) sem contas aprovadas pelas Finanças, e que só disponibilizou as de 2016 a 2018 agora sob pressão mediática do Jornal de Negócios. Aliás o argumento da Câmara do Porto é que o Estado paga à Parque Escolar seis vezes mais do que o governo quer pagar às câmaras para a manutenção de cada escola. Há, porém, três argumentos pelos quais a Parque Escolar não deve servir para benchmarking. Primeiro, uma empresa que, tudo indica, teve uma ineficiente e despesista gestão no passado, não deve servir como referência. Segundo, tem sido sempre dito que as autarquias gerem melhor os recursos públicos que o Estado, pelo que esperar-se-á uma diminuição de despesa pública das administrações públicas associada ao processo de descentralização para se obter os mesmos resultados, ou uma semelhante despesa para melhores resultados. Terceiro, o património da Parque Escolar foi recentemente intervencionado e por isso tem menores despesas de manutenção de escolas mais antigas, agora transferidas para os municípios. Sim, é preciso avaliar os custos, mas não usem a Parque Escolar para esse efeito.
O caso da descentralização na área da educação serve para ilustrarmos vários pontos. Apesar do processo de descentralização em curso ser complexo e dever envolver muitas entidades, ele acaba focando-se apenas na sua dimensão financeira. Deveria antes equacionar o essencial: como aproximar as decisões locais dos cidadãos e optimizar a utilização dos impostos dos contribuintes portugueses no sentido de maximizar a qualidade da prestação de serviços públicos e apoios sociais aos cidadãos? O debate sobre este tema tem sido essencialmente político, envolvendo sobretudo a ANMP, e os seus dirigentes de PS e PSD e o governo. Agora entrou na liça a Câmara do Porto. À margem ficam as Universidades, os centros de investigação e os variados organismos da sociedade civil.
Na área da reforma administrativa e do Estado, o programa do governo é muito escasso. Saliento como positivo corrigir a reforma territorial das freguesias de 2013 ou a proposta de criação da NUTII da península de Setúbal que, a efetivar-se (necessita concordância de Bruxelas), permitirá a essa região aceder a muitos mais fundos comunitários algo que hoje não acontece por estar integrada na relativamente rica área metropolitana de Lisboa. Acho positivo, porque clarificador, que o PS diga ao que vem com a intenção de um novo referendo sobre a regionalização. Porém, deve clarificar que modelo tem em mente para que possa haver um debate esclarecedor sobre o assunto que preceda uma votação. Porque regionalização há duas bem diferentes: o modelo extrativista e de rent seeking e o modelo desenvolvimentista, inclusivo e bem delimitado constitucionalmente. Sobre a descentralização e a desconcentração para o nível local deve haver mais informação, mais estudos e debates antes de se avançar com decisões políticas atabalhoadas
PS. Sobre a temática deste artigo sugiro a leitura do excelente artigo de Fernando Freire de Sousa no Expresso.